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juillet/décembre 2011 -janvier /juin 2012  - julho /dezembro 2011 -janeiro /junho 2012

HISTÓRIA, SHOUJO MANGÁ E FEMINISMO: UM OLHAR SOBRE A ROSA DE VERSALHES

Valéria Fernandes da Silva

RESUMO:

No Mundo Ocidental, os quadrinhos têm mantido um diálogo intenso com a História, e no Japão não é diferente.  No caso do quadrinho feminino, ou shoujo mangá, a Rosa de Versalhes, de Riyoko Ikeda, inovou ao entrelaçar história e literatura para narrar os acontecimentos da vida de duas mulheres, a rainha Maria Antonieta e Oscar François de Jarjayes, uma moça criada como homem e se torna chefe da guarda real, tomando parte dos acontecimentos dramáticos que conduziram à Revolução Francesa.  A série de 1972 foi um marco cultural e comercial influenciando obras posteriores, seja na construção ficcional da História, ou nas discussões sobre papéis de gênero.   Neste artigo discutiremos o caráter didático deste quadrinho, e como ele se constituiu em veículo de transmissão da História Ocidental para as japonesas e de discussão sobre a inserção das mulheres no mercado de trabalho e de questões ligadas às demandas feministas.  

PALAVRAS-CHAVE: História, Shoujo Mangá, Revolução Francesa, Feminismo

 

A Rosa de Versalhes, ou Berusaiyu no Bara,[1] foi o primeiro mangá histórico feito para o público feminino no Japão.  Recebida com desconfiança pelos editores, a série de dez volumes revisitou os últimos anos da França antes da Revolução de 1789 e os momentos dramáticos que se seguiram até a execução de Maria Antonieta.  Com sua proposta, a jovem Riyoko Ikeda assumiu uma grande responsabilidade e correu sérios riscos de ver a sua obra cancelada a qualquer momento.  Afinal, como disse a autora em entrevista, ela era abordada por seu editor com afirmativas do tipo “Para as meninas não importa em nada a História”, ou ainda “Que sentido faz contar coisas do passado?”. 

Até então, a experiência com quadrinhos históricos no Japão estava restrita aos temas nacionais, muito mais próximos e familiares, e as obras eram direcionadas ao público masculino.  Os cenários preferenciais dos quadrinhos para meninas eram contemporâneos, mesmo que ocidentalizados, ou reinos mágicos ou imaginários.  Mas A Rosa de Versalhes foi sucesso de público e crítica e assim continua depois de trinta e sete anos do seu encerramento. 

Neste artigo, pretendo discutir a importância desta obra, e a relação que esta mantém com a historiografia e com as demandas feministas da década de 1970. 

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 1: A Revolução Francesa serviu de pano de fundo para o mangá A Rosa de Versalhes.

I. Quadrinhos para todos os públicos

A Rosa de Versalhes é um mangá, nome dado às histórias em quadrinhos japonesas, e, dentro deste texto, uso o termo como um definidor de origem, sem me ater a outras questões em voga em nossos dias a respeito de uma estética dos quadrinhos japoneses passível de ser reproduzida em qualquer outro país. [2] Assim, qualquer História em Quadrinhos é uma forma de arte seqüencial que combina texto e imagem com o objetivo de contar uma história.  Assim, quadrinho é, ao mesmo tempo, uma expressão artística e literária.  Os diversos elementos de uma HQ podem ser lidos em conjunto ou isoladamente, constituindo em si mesmos uma gramática própria e factível aos leitores e leitoras. (EISNER, 2001: 7-12)

O Japão hoje tem o maior mercado de quadrinhos do mundo e aproximadamente 30% de tudo que é impresso no país é mangá e a quantidade de revistas é gigantesca para os padrões Ocidentais. Os formatos e periodicidades podem variar, mas em geral as revistas em quadrinhos são antologias de no mínimo 150 páginas, monocromáticas, com poucas páginas coloridas, e feitas em papel ordinário, o que as torna descartáveis. Dessa maneira, por questões de espaço, boa parte dos japoneses coleciona suas histórias favoritas somente quando elas saem encadernadas em separado.   (GRAVETT, 2006: 17)

No Japão, as revistas com quadrinhos são produzidas para todas as faixas etárias, desde as crianças em idade pré-escolar até adultos de mais de 40 anos e existe toda uma nomenclatura segundo o recorte etário para defini-los.  Assim, shoujo mangá é o nome dados aos quadrinhos feitos para meninas, especialmente, adolescentes.[3] Neste país, a idéia de que somente crianças ou garotos lêem quadrinhos nunca conseguiu se estabelecer como ocorreu no Brasil, por exemplo, assim, o território permaneceu aberto para todos. Também não aconteceu no Japão uma perseguição sistemática aos quadrinhos como ocorreu nos Estados Unidos na década de 1950,[4] o que possibilitou o crescimento da indústria de quadrinhos sem grandes interferências externas a ela mesma.  O fato é que os mangás ajudavam a desanuviar as pressões resultantes do grande esforço de recuperação do pós-guerra, divertiam, informavam e davam esperança.

Outra singularidade do Japão é que há uma fatia desse mercado é voltada exclusivamente para o público feminino. [5]  Além de consumidoras de quadrinhos, as meninas e mulheres japonesas, também são a maioria das autoras de suas próprias histórias. (FUJINO, 1997:15-18) No Ocidente, durante muito tempo, imaginar as mulheres jovens e adultas como consumidoras regulares de quadrinhos era um absurdo e o número de mulheres quadrinistas até hoje é muito restrito.

No entanto, mesmo no Japão, durante um bom tempo não foi assim.  Desde o boom do mangá nos anos 1950,[6] impulsionado pelo esforço de reconstrução japonesa, até finais dos anos 1960, os homens eram os autores da maioria dos títulos para meninas.  Foi a geração da autora da Rosa de Versalhes que ajudou a consolidar a participação das mulheres nesse mercado de trabalho.  Nesse sentido, o ano de 1966 é considerado um marco inicial dessa entrada maciça de mulheres no mercado de quadrinhos japonês,[7] e, a partir daí, as elas passaram a tomar a palavra produzindo quadrinhos cada vez mais afinados com as suas próprias demandas e sonhos.

Linda Hutcheon nos diz que os anos 1960 carregam o signo da mudança, “[...] pois foi nesses anos que ocorreu o registro, na história, de grupos anteriormente “silenciosos” definidos por diferenças de raça, sexo, preferências sexuais ...”  (Hutcheon, 1991: 90).  A entrada em massa das mulheres no mercado de quadrinhos japoneses é fruto de vários fatores, mas aponta para uma espécie de empowerment, isto é, uma tomada de poder, no caso da consciência de suas próprias capacidades e da busca por um espaço profissional que permitisse a igualdade com os homens.  Até hoje, o campo dos quadrinhos é talvez o único no qual isso se realizou naquela nação.

Rompido o silêncio, as autoras de quadrinhos japoneses passam a definir parte das características do produto que seria consumido pelas adolescentes, enfatizo “parte”, pois a maioria dos editores era (e é ainda) do sexo masculino, ainda assim, são as mulheres as “contadoras de histórias”.  Sobre isso, Sandra Pesavento nos diz que “[...] a arte é um registro sensível no tempo, que diz como os homens representavam a si mesmos e o mundo. [...] A arte, como expressão do mundo, diz o real de outra forma, falando por metáforas que se referem a formas de pensar, agir e sonhar de uma época”. (PESAVENTO, 2002:1) As artistas japonesas usaram a sua arte como forma de expressão, e o mangá como um dos seus veículos preferenciais. 

Nesse sentido, a década de 1970 foi um dos momentos mais importantes dessa revolução com a produção de obras de grande sucesso e influência dentro do gênero até hoje, como A Rosa de Versalhes.  A própria Ikeda fala sobre essa questão em uma de suas entrevistas, ao ressaltar que o mangá “[...] até então, era rejeitado pela sociedade, visto como um veneno para as crianças. Quando terminávamos de ler, jogávamos fora. Nós queríamos fazer obras de verdade, que pudessem ser transmitidas de geração em geração.” (IKEDA, 2011: web)

Riyoko Ikeda, autora da Rosa de Versalhes, entrou no mercado em 1967, e era parte do grupo de quadrinistas que ficou conhecido como Nijûyonen Gumi, grupo do ano 24, pois a maioria delas era nascida no ano 24 da Era Showa,[8] o nosso ano de 1949.  Filhas do baby boom japonês, essas autoras introduziram uma série de inovações nos shoujo mangá tanto no campo da estética, definindo um estilo de arte própria que se afastaria tanto do quadrinho infantil, quanto daquele voltado para o público masculino, quanto no quadro das temáticas abordadas. (THORN, 2001: web) As autoras do Grupo de 24 lidaram abertamente com temas políticos, com a questão da sexualidade, com os papéis de gênero, da violência, e levaram ao extremo o desenvolvimento psicológico das suas personagens. 

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 2: Exemplo dos recursos dramático-narrativos presentes no mangá, A Rosa de Versalhes.  A arte como veículo de expressão da angústia da personagem.

O shoujo mangá tornou-se um meio de auto-expressão e, ainda que enfrentando a resistência dos editores, a experimentação marcou a década de 70.  (SHAMOON, 2007: 7) A própria Ikeda fala sobre isso em uma entrevista:

[...] as pessoas da minha geração que queriam expressar um sentimento ou contar uma história e até esse momento só haviam podido fazer isso através dos romances ou da poesia, descobriram um novo modo de expressão igualmente válido: o mangá.  As mulheres também descobriram o mangá e se interessaram por esse novo meio.  (IKEDA, 2002: web)

II. Visitando “este país estrangeiro do passado”: Nasce A Rosa de Versalhes

Riyoko Ikeda inaugurou essa nova fase do shoujo mangá com a publicação de A Rosa de Versalhes (Berusayiu no Bara), na revista semanal Margaret, em 1972. Foi o primeiro mangá feminino com uma temática histórica e os editores não acreditavam que a série poderia ser um sucesso, mas ela tornou-se um hit instantâneo e sobrevive como referência para outros mangás, sendo citado e revisitado, além de transposto para outras mídias como o cinema, o teatro e a animação.

Em seu texto intitulado “Este Mundo Verdadeiro das Coisas de Mentira: Entre a Arte e a História”, Pesavento nos diz que a arte fala muito de seu momento de produção enquanto visita o “país estrangeiro do passado”.  Para uma japonesa, a França do século XVIII era um país duplamente estrangeiro, distante no tempo, distante no espaço, ele precisou ser absolutamente recriado, reinventado, por Riyoko Ikeda.  Em uma entrevista dada para a edição italiana comemorativa dos trinta e cinco anos do mangá, a autora fala do seu desafio:

Entrevistadora: Um mangá histórico era uma coisa um tanto revolucionária nesta época...

Riyoko Ikeda: Sim, em particular em uma revista para meninas. Recordo-me da fortíssima oposição que encontrei por parte do editor e dos redatores, que freqüentemente se expressavam com termos desagradáveis, como “Para as meninas não importa em nada a História”, ou ainda “Que sentido faz contar coisas do passado?”. Recordo-me que estas críticas me fizeram ainda mais resoluta a tornar o meu mangá um sucesso, para demonstrar que também as “meninas” se interessam pela História, quando ela é contada de modo interessante e envolvente. Comecei de qualquer modo a desenhar sob a ameaça de que, se o mangá não entrasse na lista das séries favoritas que as leitoras enviavam para a revista toda a semana, seria imediatamente interrompido. Por sorte, ao fim do primeiro número, o público demonstrou que o apreciava, ainda assim, episódio após episódio, continuava a temer que o capítulo que eu desenhava pudesse ser o último... Por fim, me foi assim mesmo imposto que terminasse a série em no máximo dez semanas a partir da morte de Oscar, e foi isso que fiz fielmente, abreviando um pouco os últimos momentos de vida de Maria Antonieta. (IKEDA, 2010: web)

À primeira vista, Ryoko Ikeda, uma ex-estudante de filosofia, apaixonada por música clássica, tinha como proposta contar a trágica história de Maria Antonieta, última rainha da França.  Nesse intuito, Ikeda tomou o texto de um homem, o austríaco Stefan Zweig, como ponto de partida, como ela mesma disse em entrevista:

 [...] Os eventos da Rosa de Versalhes nasceram da leitura do livro de Zweig, que me deixou apaixonada quando estava no colegial. Todavia, naquele tempo aquele livro contribuiu para despertar meu interesse pela figura de Maria Antonieta, pensando sobre ela criei o nome A Rosa de Versalhes, mas não pela Revolução Francesa em geral. Estas passagens só me interessaram quando eu comecei a desenvolver o projeto do mangá para o que era uma revista comercial, e que, portanto, tive que criar personagens e histórias capazes de atrair a atenção do público. Foi nesta fase que nasceram todos os outros personagens e a rosa deixou de ser uma só! (IKEDA, 2010: web)

Tratava-se da biografia histórica, Maria Antonieta – Retrato de uma Mulher Comum, lançada em 1933 e que alcançara grande sucesso, servindo de base para um filme hollywoodiano de 1938.  Ikeda ao se apropriar dessa narrativa masculina sobre a vida de Maria Antonieta a recria e a insere em toda uma rede de discussões sobre os papéis de gênero no Japão do início dos anos 1970. 

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 3: Em A Rosa de Versalhes, Maria Antonieta é alguém que está prisioneira tanto de papéis de gênero femininos, quanto de sua materialidade                                                                                                                      como  personagem histórica.

Para as leitoras, a maioria do público de Ikeda, a autoria masculina foi completamente apagada e a voz da autora se impôs como a intérprete da tragédia de Maria Antonieta e dos acontecimentos históricos que conduziram à Revolução Francesa. Mais do que isso, Ikeda entrelaçou acontecimentos históricos e ficcionais, de forma que a sua tecitura tornou quase impossível distinguir o que era sua criação e o que era efetivamente “história”.  A resistência editorial, no entanto, colocou a autora sob a estreita dependência do sucesso de público, assim, as leitoras participaram ativamente da construção da história com suas cartas, tomando posse das personagens e ajudando a traçar os seus destinos.  Foi exatamente por conta disso, que a personagem Oscar acabou se projetando como a protagonista, a própria “Rosa de Versalhes”, eclipsando até certo ponto o drama de Maria Antonieta.

 III – A Rosa de Versalhes como Exercício de Metaficção Historiográfica

O conceito de metaficção historiográfica foi cunhado por Linda Hutcheon para denominar um tipo de romance pós-moderno que se apropria da narrativa e/ou personagens históricas com intenção política, muitas vezes buscando deliberadamente o paradoxo. (HUTCHEON, 1991: 142) Em seu trabalho a autora busca demonstrar que,“[...] tanto a ficção como a história são sistemas culturais de signos, construções ideológicas cuja ideologia inclui sua aparência de autônomas e auto-suficientes.” (HUTCHEON, 1991:149) ambas teriam, portanto um substrato comum, mas os construtos históricos, durante décadas, foram sancionados pela noção de verdade, já a literatura, ou a arte, se retomarmos o texto de Pesavento, estaria sempre sob a marca da invenção. 

A noção de “história verdade”, negando as suas próprias contradições e o fato de ser uma também uma construção discursiva, vem perdendo sua força nos dias de hoje e deixando de

[...] esconder ou driblar o conteúdo imaginativo de suas narrativas; ao contrário, reivindica a poderosa força da imaginação para detectar o possível, o silenciado [...]”. (NAVARRO-SWAIN, 2004: web)

A Rosa de Versalhes, apesar de ser um quadrinho, segue fielmente a definição dada por Hutcheon para a metaficção historiográfica.  Segundo a autora, com esse termo ela se refere

“[...] àqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo são intensamente auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de personagens e acontecimentos históricos.” (HUTCHEON, 1991: 21)  

A série de Ryoko Ikeda é marcada pela apropriação da matéria histórica e pela introdução dentro de um contexto duplamente “estrangeiro” para as japonesas dos anos 70, de questões presentes no seu cotidiano.  O maior paradoxo, talvez, é a personagem de Oscar, que se impôs pela paixão das leitoras como a grande protagonista da série.

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 4: Oscar François era a síntese das demandas das japonesas da década de 1970: liberdade de escolha, inserção no mundo do trabalho em pé de                                                                                            igualdade    com os homens, e o amor romântico.

A personagem Oscar François de Jarjayes foi uma criação de Riyoko Ikeda.  Na série ela é filha caçula do General de Jarjayes,[9] uma personagem histórica, e foi educada como homem para satisfazer as ansiedades do pai que não tinha um filho varão, transformando-se em capitã da guarda da Rainha Maria Antonieta.  O mangá abre com três nascimentos, o do conde Fersen, considerado por muitos (e pela própria autora) como amante de Maria Antonieta, o da Rainha e o de Oscar.  Embora Oscar pouco apareça no primeiro volume da série, ela rapidamente se tornou muito popular entre as leitoras que inundaram a editora de cartas e fundaram o “Oscar Club”. 

Para estudiosos do mangá como Deborah Shamoon, o que deu a popularidade à Rosa de Versalhes foi o fato de representar um romance heterossexual adulto entre iguais, no caso Oscar e André.  Esta última personagem é o companheiro de infância da personagem, apaixonado por ela e capaz de todo e qualquer sacrifício, mesmo sem nenhuma esperança de ser correspondido ou poder concretizar o seu amor, já que Oscar é nobre e ele, plebeu. 

Acredito, no entanto, que a extrema popularidade da série ultrapasse a questão do romance, algo fundamental aos shoujo mangá, e esteja muito mais ligado ao fato de Ikeda ter retratado através de suas personagens femininas as inquietações das mulheres de sua geração, discutindo abertamente, e de forma paradoxal, o patriarcado, os papéis de gênero, o direito das mulheres de ocuparem espaço no mundo do trabalho, e, também, como assinalado, a igualdade entre os amantes.  A própria Ikeda afirma que inspirou Oscar em si mesma.  Ela diz em entrevista,

A sua experiência com pessoas que não eram provenientes da aristocracia possibilitando que nutrisse dúvidas sobre os privilégios dos nobres, e creio que o percurso interior de Oscar seja um reflexo da minha experiência juvenil. Cresci no tempo das manifestações estudantis, participando delas enquanto era impossível estudar na universidade ocupada. Assim, apesar de não poder tomar muitas liberdades na construção de uma personagem histórica como Maria Antonieta, Oscar transformou-se em um pouco na representação de mim mesma e da minha experiência. (IKEDA, 2009: web)

O tema da moça travestida de homem, bebendo no mito da donzela-guerreira (GALVÃO, 1981: 9), não é incomum e se faz presente em outros mangás femininos, antes e depois da Rosa de Versalhes. A diferença em relação a outros materiais é que, via de regra, a personagem precisa fingir que é um homem para sua própria segurança ou a da sua família, anulando qualquer traço de feminilidade, e, por fim, sucumbindo – ao ser reintegrada ao “universo feminino” ou aniquilada por sua transgressão – quando descoberta.  Em A Rosa de Versalhes todos sabem que Oscar é uma mulher, e ela se comporta e é tratada como um oficial como outro qualquer. 

Se pensarmos na Versalhes “real” de Maria Antonieta, veremos que Oscar está tão fora do lugar quanto os cabelos e roupas ao estilo anos 70 que Ikeda volta e meia coteja na história, ou das personagens com plaquinhas onde se lê “Oscar Club” para ilustrar a sintonia entre a autora e suas leitoras. Tudo isso permite que lembremos que não se trata de uma narrativa histórica e que o paradoxo está presente.

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 5: O fã clube de Oscar está presente no mangá em diversas referências feitas pela autora.  A placa do “Oscar Club” inserida na história era uma forma                                                                                                                                                     de se comunicar com as leitoras.

Tais fatos introduzem o absurdo dentro da narrativa histórica aparentemente séria da Rosa de Versalhes.  No entanto, como afirma Hutcheon, “[...] a metaficção historiográfica se aproveita das verdades e das mentiras do discurso histórico” (HUTCHEON, 1991: 152) e, assim, há espaço para que Oscar circule, testemunhe e interfira dos acontecimentos de Versalhes, na vida das mulheres e dos homens que povoam a corte de Luís XVI.  E aqui vem a surpresa.  O título do mangá, segundo a própria autora não é “a rosa”, mas “as rosas”.  Como o plural nem sempre fica evidente na língua japonesa, foram as leitoras que decidiram que Oscar ou Maria Antonieta seriam “a rosa” do título, quando, segundo Ikeda, a sua história fala de várias rosas:

Na realidade, desde o momento em que concebi a série decidi que iria combinar uma rosa com todas as personagens: Oscar é uma rosa branca; Madame de Polignac, uma venenosa rosa amarela; enquanto Rosalie é um botão cor de rosa. Jeanne é finalmente uma fascinante e perigosa rosa negra. Então, não se trata somente de uma única rosa. (IKEDA, 2009: web)

De todas “as rosas” da série, a única fictícia é Oscar, no entanto, a autora tece sua narrativa articulando as diversas personagens históricas, da Rainha até Rosalie, a carcereira que atendeu Antonieta nos seus últimos dias na Conciergerie, em 1793, em uma trama complexa e envolvente.  A personagem Rosalie, em especial, até pelas escassas informações, ofereceu grande possibilidade de criação para Ikeda, tendo sido protagonista do único amor homossexual da história, mesmo que não concretizado. Ainda que a Rosa de Versalhes tenha sido a história de várias rosas, para a maioria do público, é a história de Oscar.

Mas o que talvez dê dimensão maior a esta personagem é o fato dela carregar dentro de si as contradições da geração que acompanhava as discussões feministas e que desejava ter voz própria.  Assim, quando a personagem confronta o pai e toma as rédeas de sua vida, seja no mundo do trabalho, na rejeição de um casamento arranjado (algo muito comum no Japão da época) ou ao se dando o direito de escolher o homem a quem amar ou as causas pelas quais lutar, ela estava realizando o sonho de várias leitoras. 

A própria Ikeda enfatiza sua necessidade de independência em suas entrevistas e como a ruptura foi necessária para seu crescimento ao falar de sua opção por ser desenhista de mangá.  Sobre isso, ela diz, “[...] tinha 18 anos, e fazia parte de um movimento no Japão, que criticava os pais e a sociedade. Ao mesmo tempo, eu ainda estava morando com os meus pais, e isso não tinha lógica. Então, eu decidi partir. Eu tinha que trabalhar para viver e fazer mangá era suficientemente bom para mim.”.  Oscar no mangá passa por várias rupturas, todas elas fundamentais para seu crescimento e autonomia como pessoa, todas elas de enfrentamento com o poder patriarcal na figura do pai ou de outra personagem masculina em posição de superioridade ou força.

Na época em que escrevi meu primeiro artigo sobre A Rosa de Versalhes em 2007, deparei-me com uma matéria do jornal do New York Times, que me fez acreditar ainda mais que Ikeda estava atenta à sociedade japonesa de sua época quando criou Oscar e a inseriu no seu século XVIII imaginário.  A matéria tinha como título “Tradição é obstáculo para carreira das trabalhadoras japonesas e falava das dificuldades enfrentadas pelas mulheres japonesas no mercado de trabalho.  No meio do texto havia um caso semelhante ao de Oscar:

Takado Ariishi, 36, conheceu uma versão radical desse fenômeno ao crescer como a única filha do presidente da Daiya Seiki, a pequena fábrica da sua família que fornece peças para a Nissan.  No início, o seu pai, desapontado, cortou o cabelo dela como o de um garoto e proibiu que ela brincasse com bonecas. Quando ela teve o primeiro filho, dez anos atrás, o pai a despediu da companhia e nomeou como seu sucessor o neto recém-nascido.  Mesmo assim, Ariishi assumiu o cargo de presidente três anos atrás, após a morte do pai. Ela afirma ser a única mulher em um grupo de cerca de 160 diretores de empresas fornecedoras da Nissan. A primeira vez em que Ariishi participou das reuniões bianuais do grupo, pediram que ela aguardasse em uma sala junto com as secretárias.

"Ainda tenho que provar o tempo todo que uma mulher pode ser presidente", lamenta Ariishi, uma engenheira que no seu escritório usa o mesmo uniforme azul unissex dos operários. (FACLER, 2007: web)

Poderia ser exatamente a trajetória da personagem de Ikeda.  Takado Ariishi nasceu somente dois anos antes da série A Rosa de Versalhes começar a ser publicada.  De qualquer forma, Ikeda demonstra em seu trabalho através da personagem de Oscar que o gênero através do gênero

“[...] dois tipos de pessoas são criadas” e que dessa construção histórico-social decorrem “[...] divisões e atribuições diferenciadas e (por enquanto) assimétricas de traços e capacidades humanas.” (FLAX, 1991: 228).

  Corpos são moldados, competências aprimoradas.  Assim como a Senhora Ariishi, Oscar gostava do que fazia.  E, quando o pai, reconhecendo “seu erro”, decide que ela deve largar a carreira militar, ela resiste e assume a direção de sua vida em um dos momentos mais dramáticos da série. 

Os mangás no Japão têm uma função pedagógica, eles propagam valores idealizados e gendrados.  Amizade, sacrifício, superação, busca por um objetivo, trabalho em equipe estão muito presentes nos materiais para meninos.  Enquanto isso, nos mangás para meninas a busca do amor romântico aparece como uma das características mais fortes, o que, em um país ainda marcado pelos casamentos arranjados, têm um potencial subversivo, embora aponte, também, para a domesticidade, o lar e a maternidade como valores supremos femininos. 

Nesse sentido, A Rosa de Versalhes representou uma ruptura ao concentrar em Oscar características de gênero que não eram vistas com freqüência nas personagens femininas.  Assim, Maria Antonieta, apesar de princesa, de incorporar todas as convenções estéticas de beleza dos quadrinhos femininos da época, é prisioneira de seu papel de rainha, esposa e mãe, tornando-se depois vítima de sua elevada posição.  Seu romance com Fersen tornou-se secundário diante do relacionamento de Oscar com o plebeu André, e foi a morte de Oscar que produziu a grande comoção entre as adolescentes japonesas, pois:

[...] embora o enredo de Berusaiyu no Bara ocorresse séculos no passado, Oscar e André representavam um relacionamento moderno idealizado para suas leitoras, no qual papéis socialmente pré-determinados entre homens e mulheres estavam sendo discutidos.  (SATO, 2007: 52)

       

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 6: Oscar rejeita o amor de Rosalie, e aceita o amor de André.

Considerações Finais

 [...] Finalmente, ao terminar a guerra as mulheres japonesas já não podiam continuar sendo donas de casa e cuidando dos filhos: sentiam que precisavam trabalhar para levantar o país e contribuir para manter a família.  As que puderam buscaram um trabalho que as compensasse não só economicamente, mas também psicologicamente, um trabalho ao qual se dedicar por toda a vida. (IKEDA, 2002: web)

Apesar de continuar explorando as discussões de gênero e a História Ocidental em seus mangás, nenhuma das obras posteriores de Ikeda atingiu tanto sucesso ou despertou tanta comoção quanto A Rosa de Versalhes.  Ao longo desses trinta e nove anos a série virou peça musical, tornou-se o primeiro filme japonês rodado na Europa, além de desenho animado e uma infinidade de outros produtos midiáticos, continuando muito popular.  Conforme a própria autora disse em entrevista:

Quando o publiquei, os mangás eram livros que se liam uma vez e depois se jogava fora. A Rosa de Versalhes se tornou a primeira obra que fez o público refletir se valia a pena colecionar e tê-la em sua biblioteca. Deste ponto de vista, é um mangá que fez mudou completamente a percepção deste gênero pelo grande público e esta é uma coisa que me deixa extremamente orgulhosa. (IKEDA, 2010: web)

O sucesso da Rosa de Versalhes deriva da qualidade de sua história, da arte que conseguiu dar materialidade aos eventos e sentimentos das personagens.  Esse mérito artístico é ressaltado por qualquer um que se preste a analisar a obra máxima de Riyoko Ikeda.  No entanto, não tenho  dúvida, que o fato de ter dado voz às inquietações das mulheres japonesas de sua época, das ansiedades e pressões pelas quais passavam as adolescentes, foi fundamental para que a obra se tornasse tão contundente.  Ikeda conseguiu trazer para dentro dos quadrinhos, sem romper com a tradição do shoujo mangá, a matéria histórica e as bandeiras do feminismo em uma combinação tão equilibrada que dificilmente será vista em outra obra produzida no Japão.   Segundo Cristiane Sato, Ikeda também agregou à série comportamentos japoneses deslocados do contexto do século XVIII, assim, Oscar é na verdade um samurai, guerreiro fiel a sua senhora, a Rainha Maria Antonieta.  Só que conforme seus olhos vão se abrindo para as misérias do povo francês, ela rompe com sua classe e seus deveres, tornando-se um ronin, um samurai sem mestre, um proscrito, e é assim que morre lutando ao lado do povo na Queda da Bastilha. (SATO, 2007: 52) Essa inserção de valores estranhos, essa releitura, ou mesmo a subversão, não estão em contradição com o princípio da metaficção historiográfica.

Ainda que Ikeda tenha abordado de forma tímida algumas questões, como a homossexualidade feminina, a autora foi exemplar em outras e oferece para suas leitoras de uma só vez o sonho de um relacionamento equitativo entre homens e mulheres, e o incentivo para que as meninas tomassem as rédeas de seu destino, como a personagem fez ao lutar por sua carreira militar, e ao decidir-se contra sua classe e seus deveres por André e, também, pela Revolução Francesa.

Nota biográfica

Valéria Fernandes da Silva é historiadora, doutora em História pela UnB com tese defendida na linha de Estudos Feministas e de Gênero.  Professora de História da Igreja na Faculdade Teológica Batista de Brasília, e de História no Colégio Militar de Brasília, trabalha com mulheres no século XIII, e, também, desenvolve trabalhos sobre as questões de gênero dentro das Histórias em Quadrinhos, e sobre o uso das HQs em sala de aula.

 

Referências Bibliográficas

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SATO, Cristiane2007.  JAPOP – O Poder da Cultura Pop Japonesa.  São Paulo: Nakkosha.

SCHODT, Frederick L.  1983.  Manga!  Manga!  The World of Japanese Comics.  Nova York: Kodansha.

SHAMOON, Deborah.  2007. “Revolutionary Romance: The Rose of Versailles and the Transformation of Shojo Manga”, Mechademia, n. 2, Minneapolis.

THORN, Matt. 2001. “Shôjo Manga – Something for the Girls”, Shôjo Manga, http://www.matt-thorn.com/shoujo_manga/japan_quarterly/index.html.


 

[1] Ou ainda, Lady Oscar como a série ficou conhecida na maioria dos países ocidentais, como França, Itália, Espanha e, mesmo, o Brasil.

[2] No Brasil, um dos termos mais aplicados ás HQs durante muito tempo foi gibi.  Nos dias de hoje, entretanto, as pessoas parecem mais inclinadas a usarem HQ, Quadrinhos ou, mesmo, Comics para as revistas norte-americanas, BD (Bande Dessinée) para os quadrinhos franco-belgas, Fumetti para os italianos e Mangá para os quadrinhos produzidos no Japão.

[3] Os mangás infantis são chamados genericamente de kodomo (criança), mas quando focados no público infanto-juvenil recebem o nome shounen quando para meninos e shoujo, se são para meninas.  Os quadrinhos para jovens do sexo masculino são chamados de seinen, os para o público feminino com o mesmo corte etário são chamados de josei ou de lady’s comics. 

[4] No Ocidente o discurso virulento contra os quadrinhos ganhou corpo impulsionado pelo livro A Sedução dos Inocentes, do psicólogo Frederick Werthan, publicado nos 50 nos.  O Dr. Werthan identificou nos quadrinhos, em especial os de super-heróis e terror, uma ameaça à juventude.  O autor argumentava que os comics estavam impregnados de violência, imoralidade, apologia ao crime e mesmo um incentivo à prática homossexual. (ROBINSON, 2004: 40-46 e 76-80) Essas investidas deram origem, ainda nos anos 50, ao rígido código de ética que passou a controlar a produção norte-americana de quadrinhos, limitando a criatividade, infantilizando as personagens e temáticas, enfim, impondo um conservadorismo que quase imobilizou roteiristas, desenhistas e estúdios. 

[5] De acordo com o antropólogo americano Matt Thorn, mais da metade das mulheres japonesas com menos de 40 anos lêem mangá e mais de três quartos das adolescentes lêem quadrinhos com regularidade.  Ainda segundo este autor, há cerca de 100 publicações de quadrinhos para o publico feminino em publicação no Japão atualmente.  (THORN, 2001: web)

[6] Osamu Tezuka foi o grande responsável pela revolução dos mangás ao introduzir, já no final da década de 1940, os recursos da narrativa cinematográfica e as longas serializações nos quadrinhos japoneses.

[7] Uma moça de 16 anos, Machiko Satonaka, venceu um concurso de mangá e tornou-se profissional, servindo de exemplo para outras japonesas.  Segundo uma de suas entrevistas, o trabalho de mangá-ka “[...] Era alguma coisa que eu poderia fazer por mim mesma, era um tipo de trabalho que permitia que as mulheres fossem iguais aos homens.” (SATONAKA apud SCHODT, 1983: 97)

[8] A Era Showa corresponde ao governo do Imperador Hiroito e se estendeu de 1926 até 1989.

[9] François Régnier de Jarjayes é uma figura histórica que tentou salvar a rainha Maria Antonieta às vésperas de sua execução na guilhotina.    (FRASER, 2006: 452)

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