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juillet/décembre 2012  - julho /dezembro 2012

Sobre os feminismos, o esporte e o potencial pedagógico dessa relação

Silvana Vilodre Goellner

Paula Botelho-Gomes

Paula Silva

Resumo:

O presente artigo analisa a contribuição dos feminismos para o campo das Ciências do Esporte. Destaca a relevância da categoria  gênero como ferramenta analítica bem como o potencial político e pedagógico presente na relação entre os feminismos e o esporte cujos desdobramentos permitiram desconstruir muitas das justificativas que historicamente foram utilizadas  para manter a condição desigual entre homens e mulheres no interior dessa prática cultural.

Palavras-chave: esporte, feminismos, gênero.

“O pessoal é político”! Em defesa de tal afirmação, o movimento e a teorização feminista têm contribuído, desde os anos 1970, para a emergência de novos temas e debates nas diversas áreas científicas, desenvolvendo, inclusive, novas epistemologias.

No campo das Ciências do Esporte[1] ainda é tímida a inserção dos feminismos, principalmente nos países de língua portuguesa. Essa afirmação, no entanto, não nega sua presença. Ao contrário: indica que vários temas hoje possíveis de serem pensados no esporte, tanto na investigação quanto no seu acontecer como uma prática social, se deram em função dos feminismos, sobretudo, porque evidenciaram ser este um espaço atravessado pelas relações de gênero.

Nessa direção, é possível afirmar que os estudos feministas e os estudos de gênero foram determinantes para desconstruir, no âmbito das Ciências do Esporte, muitos discursos e práticas que, pautados pelas ciências naturais e biológicas, afirmavam hierarquias e poderes[2] de uns sobre outros, especialmente no que se refere ao esporte, que desde seus primórdios é considerado como um campo de “reserva masculina” (Dunning, 1992). Na contramão dessa representação, os feminismos reclamaram às mulheres a sua condição de sujeito no esporte, reivindicando, assim, a desnaturalização das essências do humano.

Os feminismos têm sido, assim, ponta de lança para a crítica da ciência, das verdades instituídas, dos valores transformados em leis, apontando para a historicidade absoluta do humano e dos sentidos criados em práticas discursivas, marcadas de tempo e de espaço e por elas universalizadas. Fala-se inclusive de “o feminismo”, ignorando a pluralidade e a riqueza das análises produzidas em milhares de textos, marcando a produção do conhecimento no feminino da mesma essência única que se atribui às mulheres. De fato “o homem” designa o universal, o humano, “os homens”, as suas divisões individuais; a “mulher” aponta para uma espécie do humano, o “outro”, e “as mulheres” apenas o quantitativo (Navarro - Swain, 2004: web).

Ainda que muitas reivindicações feministas possam ser semelhantes, há que se referenciar a impossibilidade de falar de feminismo no singular, porque são múltiplas as suas vertentes e estas operam com conceitos e representações, por vezes similares, por vezes contraditórias. Neste texto, mais do que entender as especificidades teóricas e analíticas dessas vertentes, interessa registrar o quanto a categoria gênero se tornou produtiva para analisar o esporte como um espaço político e, consequentemente, um lugar de resistência e de transformação das relações de gênero (Hall, 2005). Interessa, ainda, sublinhar o quanto sua ampla utilização nesse campo desencadeou novos marcos conceituais e novos temas na análise do esporte, redimensionando, assim, o seu potencial educativo.

A dimensão pedagógica de gênero como categoria analítica

Apesar de ainda serem incipientes os diálogos entre a teorização feminista e o esporte, é inegável que, ao possibilitarem a emergência da categoria gênero como uma ferramenta analítica (Scott, 1986), os feminismos desencadearam novas perspectivas para as investigações no campo das Ciências do Esporte. Um campo cujas pesquisas, em sua grande maioria, analisava o corpo tendo como foco principal seus aspectos anatômicos, fisiológicos, biomecânicos, químicos, psicológicos, ou seja, sob domínio das áreas biológicas e médicas, quase abandonando na obscuridade sua dimensão histórica e social. Desconsiderava-se, portanto, que o esporte se constitui como um espaço atravessado pelas relações de gênero, uma vez que o caráter sexuado dos corpos limita as suas vivências, inclusive as de cunho esportivo.

No esporte, as relações de gênero têm raízes à montante do fenômeno esportivo, sendo, durante muito tempo, uma prática profundamente masculina, associada a uma ideia de herói; uma prática representada como não compatível com o conceito de mulher e feminilidade que, embora sofra cambiantes, dependendo da época histórica e fase da vida, sempre existiu. A explicação da desigualdade entre homens e mulheres, no sentido de tornar essa desigualdade natural, normal, sempre teve como justificativa a biologia. Como se a biologia, por si só, tudo determinasse e explicasse; como se os seres humanos, mulheres e homens, não fossem também socialmente moldados, não se constituíssem como uma identidade para além do seu sexo (biológico).

Fundamentadas em distintos aportes feministas, já nos anos 1980 autoras e autores, em especial nos países de língua inglesa, agregaram em suas análises a categoria gênero, evidenciando que os corpos de homens e mulheres se constroem masculino e feminino também no esporte (Hargreaves, 1986; Messner, 1994; Wellard, 2006). Trouxeram para o campo específico a reflexão de que o esporte é uma prática social não apenas sexuada como também generificada. Sexuada, porque pessoas de ambos os sexos praticam o esporte; generificada, pois nela se constroem e expressam identidades masculinas e femininas (Silva, 2007). Enfim, inauguraram a identificação do esporte como um importante espaço na construção e na incorporação de masculinidades e feminilidades (Theberge, 1994). Em outras palavras: homens e mulheres vivenciavam de modo muito distinto o esporte, sendo que muitas dessas diferenciações, apesar de serem justificadas pelo campo da biologia, estavam assentadas em questões culturais.

Tais teorizações enfatizaram que a predominância do masculino no mundo do esporte tinha raízes históricas, culturais e políticas, grosso modo, sintetizadas na ideia de que as atividades físicas e esportivas mais adequadas às mulheres e as atividades físicas e esportivas mais adequadas aos homens estavam subjugadas a uma arcaica tradição aristotélica, a qual associava os homens às atividades (princípio) mais ativas e as mulheres às atividades (elemento) mais passivas (Silva, 2007).

Os feminismos, portanto, ao descontruirem a representação naturalizada de que homens e mulheres constroem-se masculinos e femininos pelas diferenças corporais e que essas diferenças justificam determinadas desigualdades, atribuem funções sociais, determinam papéis a serem desempenhados por um ou outro sexo, possibilitaram um outro olhar sobre o esporte. Permitiram, sobretudo, identificar que os corpos, as gestualidades, as representações de saúde, beleza, performance, sexualidade são construções históricas que em diferentes tempos e culturas foram associadas aos homens e/ou às mulheres, produzindo, ainda, representações de masculinidades e feminilidades e que estas são sempre históricas, mutantes e provisórias (Goellner, 2007).

Ao privilegiar análises sobre as mulheres, os feminismos inspiraram investigações que desnaturalizaram vários discursos e práticas que justificavam um certo distanciamento[3] das mulheres das práticas esportivas em função da natureza frágil de seus corpos. Contribuíram, assim, para politizar essa representação ao evidenciarem que

[...] a participação feminina no esporte sempre foi alvo de muitas controvérsias. Há algumas décadas, as mulheres eram interditadas de participar de qualquer atividade esportiva, sob diversas alegações, desde sua fragilidade física, passando pela sua condição materna, e até mesmo pelo fato da arena esportiva fortalecer o espírito do guerreiro masculino, sendo apontado como o único local no qual a supremacia masculina seria incontestável. (Hult apud Knijnik e Vasconcellos, 2003: 51).

A lógica que sustenta afirmações desse porte é aquela que vê homens e mulheres como seres diferentes e em oposição, possuidores de corpos que são igualmente diferentes e se constituem, igualmente por oposição[4].

Por entenderem que a oposição binária engessa, fixa e determina comportamentos excludentes entre os sexos, algumas teóricas da segunda onda do feminismo[5] investiram na desconstrução dessa representação, e aqui reside um importante marco para os estudos no campo específico do esporte. Ao afirmarem que o binarismo impossibilita a percepção das pluralidades e das diversidades presentes em cada polo que o constitui, a teorização feminista tornou visível a construção de masculinidades e feminilidades no esporte. Ou seja, desconstruiu os discursos hegemônicos que, fundamentados na universalização das categorias homem e mulher, anulavam as diferenças presentes em cada uma dessas categorias. Tal universalização estava ancorada na ideia de que mulheres e homens têm características distintas e inatas, e estas são imutáveis. E mais: que tais características determinam traços de caráter e comportamento, funções sociais, espaços de pertencimento e possibilidades de socialização para eles e para elas, inclusive no esporte.

Contrapondo-se a essa visão binária, algumas vertentes feministas têm evidenciado que existem diferentes formas de viver a feminilidade e a masculinidade, e estas se constroem dentro de relações sociais, nunca separadamente, nem mesmo em oposição de uma em relação à outra. Constroem-se na relação entre si e na articulação destas com outras categorias, tais como classe, etnia, religião, geração, entre outras, tendo no corpo uma materialização dessa construção. Rompe-se, aqui, com a percepção de que há uma base biológica natural dada (o corpo) sobre a qual são sobrepostas as influências sociais.

Ao analisar a inexistência de uma relação linear entre biologia e socialização, Linda Nicholson (2000: 8-9) indica que não há aspectos comuns emanando da biologia:

A população humana difere dentro de si mesma, não só em termos de expectativas sociais sobre como pensamos, sentimos e agimos; há também diferenças nos modos como entendemos o corpo. Consequentemente, precisamos entender as variações sociais na distinção masculino/feminino como relacionadas a diferenças que “vão até o fundo” – aquelas diferenças ligadas não só aos fenômenos limitados que muitas associamos ao “gênero” (isto é, a estereótipos culturais de personalidade e comportamento), mas também a formas culturalmente variadas de se entender o corpo. Essa compreensão não faz com que o corpo desapareça da teoria feminista. Com ela o corpo se torna, isso sim, uma variável, mais do que uma constante, não mais capaz de fundamentar noções relativas à distinção masculino/feminino através de grandes varreduras da história humana, mas sempre presente como elemento importante na forma como a distinção masculino/feminino permanece atuante em qualquer sociedade.

Ao refutar a assertiva de que a identidade sexual prevê um eu masculino ou feminino detalhadamente diferenciado e profundamente enraizado num corpo diferenciado sexualmente, Nicholson analisa que, embora muitas sociedades e culturas possuam distinções masculino/feminino e também as relacionem, de forma mais ou menos significativa ao corpo, as “diferenças sutis na forma como o próprio corpo é pensado podem ter algumas implicações fundamentais para o sentido do que é ser homem ou mulher e representar, consequentemente, diferenças importantes no grau e no modo como o sexismo opera” (2000: 30).

A dimensão pedagógica dessa teorização aplicada ao campo do esporte implica deixar de observar o corpo como um dado natural e universal sobre o qual se agregam valores, atitudes, comportamentos, gestualidades e performances. Pressupõe entender que, por mais que o corpo possa ser identificado como o local primeiro a designar diferenciações sociais, é nele que residem os princípios de sua ruína. Nesse sentido, as justificações biológicas que fundamentam as recomendações diferenciadas para mulheres e homens no campo do esporte merecem, no mínimo, ser observadas com desconfiança.

Referindo-se ao contexto canadense e norte-americano do início do século XX, a historiadora Helen Lenskyj chama a atenção para algo importante de ser considerado na rede de significações que giram em torno da participação e da permanência das mulheres no esporte.

A habilidade esportiva dificilmente se compatibilizava com a subordinação feminina tradicional da sociedade patriarcal; de fato, o esporte oferecia a possibilidade de tornar igualitárias as relações entre os sexos. O esporte, ao minimizar as diferenças socialmente construídas entre os sexos, revelava o caráter tênue das bases biológicas de tais diferenças; portanto, constituía uma ameaça séria ao mito da fragilidade feminina. (apud Adelman, 2004: 448).

Noutras palavras: os argumentos biológicos que historicamente têm servido para naturalizar as diferenças sociais entre sujeitos perdem força e legitimidade diante da percepção de que se traduzem em construções discursivas atreladas a redes de significação e de poder. O poder, por exemplo, é o de indicar as modalidades que homens e mulheres podem/devem praticar, de classificar níveis de performance possíveis de serem desenvolvidos, de inferir as habilidades e as capacidades físicas de cada um, de nomear aqueles/aquelas que correspondem a essas expectativas ou, ao contrário, quem delas escapa.

Os feminismos e o esporte: uma agenda política e pedagógica em construção

O corpo, central na formação da identidade de gênero, orientou muito da investigação feminista, fomentando uma vasta produção acerca da construção das masculinidades e feminilidades em vários campos acadêmicos. No entanto, no âmbito específico do esporte é necessário registrar que ainda é pequena a atenção que a teorização feminista lhe tem reservado (Hargreaves,1993; Humberstone, 1990; Flintoff e Scraton, 1992;  Hall, 1996;  Botelho-Gomes, Silva e Queirós, 2000).

Sua inclusão tardia pode sugerir um entendimento tácito de que este representa um campo fortemente associado a pensamentos e ações que simbolizam o masculino e, como tal, seriam mais resistentes à mudança (Bennett et al., 1987). Afinal, como já mencionamos, os corpos das mulheres têm sido um tema recorrente na produção teórica feminista, mas os corpos femininos no esporte não (Silva, 2007).

Como movimento social, os feminismos foram responsáveis por uma maior consciencialização sobre a exploração e o controle exercido sobre os corpos das mulheres ao pautarem nas agendas públicas e políticas a discussão de temas como o assédio e os abusos sexuais, a violência doméstica, a interrupção voluntária da gravidez e as tecnologias reprodutivas, entre outros. Os feminismos apresentam como uma das suas mais fortes causas o direito de as mulheres terem o controle sobre os seus corpos e poderem decidir em função de si mesmas, e não de interesses do Estado ou de terceiros. Entretanto raramente as feministas prestaram atenção aos corpos das atletas, tampouco realçaram a importância da prática esportiva como uma forma de empoderamento das mulheres (Hall, 1996).

A dupla marginalidade a que foi sujeito o tema das mulheres no esporte sustenta, ainda, a resistência que o assunto apresenta, tanto no âmbito do esporte quanto dos feminismos. Se grande parte da produção acadêmica sobre esporte parece esquecer a generificação que o estrutura, o feminismo omite a importância social e cultural do esporte (Silva, 2007).

Frequentemente, feministas e investigadoras feministas, estranhas ao campo das Ciências do Esporte, associam o esporte a valores não feministas: a competição, a força, a existência de uma hierarquia de autoridade, a sobrevalorização da vitória, a imperiosa necessidade de um domínio perfeito de habilidades complexas, o caráter agressivo de algumas das suas práticas. Valores estes que repudiam e usualmente ignoram, subvalorizando, portanto, o valor pedagógico e formativo do esporte, pois entendem que essa prática reafirma a produção e a reprodução de discriminações de gênero, privilegiando a hegemonia masculina (Hall, 1996). Ao desprezar seu valor social e simbólico do esporte, os feminismos têm dado pouca atenção à sua dimensão pedagógica, cujo acontecer permite não apenas produzir e reproduzir distintas discriminações, mas também superá-las.

Entendemos que, como fenômeno social de grande visibilidade na cultura contemporânea, o esporte pode ser tomado como uma ferramenta analítica a colocar em xeque discursos e práticas que solidificam relações de discriminação e hierarquia entre os gêneros, principalmente aqueles que asseguram várias das desigualdades relacionadas às mulheres.

Afinal, não é possível ignorar que, embora tenham aumentando as oportunidades de acesso das mulheres à prática esportiva, nomeadamente ao nível da competição, à maioria mulheres continuam a ser negadas ou dificultadas as oportunidades para o desenvolvimento das suas competências físicas e esportivas. Essa diferença pode ser identificada nas mais diversas instâncias em que se pratica o esporte, tais como em competições institucionalizadas, clubes, escolas, áreas de lazer, estádios e ginásios e, ainda, na mídia esportiva, que destina aos atletas homens maior destaque e projeção. Também não podemos esquecer que cargos diretivos de federações e confederações, equipes técnicas de clubes esportivos ou órgãos governamentais estão majoritariamente sob o domínio dos homens.

Construir uma agenda política e pedagógica para os feminismos e as Ciências do Esporte significa potencializar estudos que explicitem que o anátema das mulheres no esporte tem sido historicamente justificado a partir dos determinismos biológicos. Significa, portanto, fissurar essa justificação, tornando visível que essas são questões culturais e que, grosso modo, fazem ver que alguns corpos valem mais que outros porque são mais potentes, fortes, resistentes e, consequentemente, mais capazes de protagonizar a cena esportiva.

Os feminismos também evidenciam sua produtividade no campo da teorização sobre o esporte quando fazem ver que o corpo é uma categoria construída por um discurso particular que, ao enfatizar as diferenciações biológicas, o trata como dado e natural. Isto é, quando anunciam e denunciam que o discurso biológico não passa de uma construção discursiva que se quer repetidamente afirmar, porque, em última instância, ela fundamenta e legitima a representação do esporte como uma “área de reserva masculina” (Dunning, 1992).

Sem negar a existência de diferenças biológicas entre os sexos, os feminismos podem ampliar significativamente a sua produtividade e também a sua dimensão pedagógica quando relacionada às Ciências do Esporte, ao tornarem mais visíveis discursos e práticas que indaguem por que as diferenças biológicas e não outras quaisquer são tomadas como as mais importantes para demarcar a distinção entre homens e mulheres no universo do esporte e suas significações. Afinal, em pleno século XXI, e por mais avanços que diferentes culturas tenham conseguido em distintas áreas e a norma masculina esteja ameaçada, o esporte continua a constituir-se num tempo e espaço em que as relações de gênero e fisicalidade se acentuam (Hills, 2006).

Essa indagação, no entanto, só é hoje possível fazer porque os feminismos tornaram possível entender que não é o corpo em si que define a modalidade esportiva mais adequada para uma mulher (ou um homem), nem mesmo se ela (ele) tem ou não capacidade para dirigir uma federação esportiva ou para treinar uma equipe de alto rendimento. É a discursividade construída sobre a funcionalidade do corpo e sua correlata associação aos processos de socialização que provoca e constrói tais demarcações. Em outras palavras: fizeram ver que o esporte é um local de produção de corpos generificados, não porque são generificados em sua essência, mas porque são assim construídos no interior das práticas, dos saberes e dos discursos que o integram e que estão no seu entorno.

Enfim, ao utilizarem o gênero como uma ferramenta analítica para reclamar às mulheres o direito de reivindicar o esporte como um espaço que também é seu, os feminismos demarcaram sua primeira contribuição ao campo da investigação e da prática do esporte. Sobretudo quando possibilitaram análises reveladoras de que a secundarização, a menor popularidade e a menor visibilidade do esporte feminino (atletas, treinadoras, jornalistas, árbitras, torcedoras) face ao masculino podem levar a desvalorizar a participação de meninas e mulheres no esporte (Botelho-Gomes, Silva e Queirós, 2008).

Essa constatação permitiu que aflorassem, no campo da Pedagogia do Esporte, metodologias de ensino direcionadas para a coeducação e para a igualdade. Afinal, coeducar exige que se perspective quer o modelo feminino, quer o masculino, e que se valorizem os aspectos positivos de um e de outro. Coeducar significa, ainda, adotar uma posição crítica e reflexiva acerca da visão androcêntrica presente no ensino do esporte, visão que enviesa e limita o desenvolvimento de alunos e alunas (Botelho-Gomes, Silva e Queirós, 2008). Tal perspectiva figura em função de minimizar as diferenças, buscando assim a igualdade, cujo principal objetivo é “o de permitir a todas as pessoas a plena participação e o acesso a uma gama completa de actividades, permitindo-lhes assim realizar todo o seu potencial. O exercício da igualdade elimina as práticas discriminatórias que representam um obstáculo à plena participação de raparigas e rapazes” (Associação Portuguesa Mulheres e Desporto, 2009: 13).

Considerando que as diferenças de gênero historicamente têm desencadeado desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres no esporte, tais metodologias de ensino buscaram desenvolver estratégias direcionadas à superação dessa situação. No entanto é importante mencionar que sua inclusão na agenda política e pedagógica das Ciências do Esporte não significou (nem significa) que a igualdade de oportunidades esteja garantida.

O princípio de igualdade de acesso não é suficiente para possibilitar IGUALDADE DE OPORTUNIDADES; oportunidade refere-se à liberdade e à possibilidade concreta, real, de realizarmos nossos desejos e convicções. Mas a ideia da EQUIDADE leva-nos mais longe e comporta outras implicações: envolve a capacidade de ajuizar se uma situação particular é justa; implica a consciência de que respeitar apenas um conjunto de leis ou de regras pode não ser suficiente para assegurar a justiça, o respeito pelas características únicas de cada sujeito. (Botelho-Gomes, Silva e Queirós, 2000: 42).

Enfatizamos, assim, que os feminismos podem contribuir em muito para o campo esportivo, na medida em que fornecem ferramentas analíticas e conceituais que habilitam os agentes do esporte (treinador@s, gestor@s, professor@s, técnic@s etc.) a entender ser necessária uma ação coeducativa que busque a equidade. Ação esta que deve começar pelo questionamento sobre as justificativas que historicamente foram sendo construídas para manter a condição desigual entre homens e mulheres ou, ainda, entre feminilidades e masculinidades no interior dessa prática cultural.

Contudo a construção de uma agenda política e pedagógica que surta efeitos no cotidiano do esporte precisa ir além da percepção e da constatação das desigualdades, para investir na busca de alternativas que se direcionem para minimizá-las ou, ainda, extingui-las (Goellner et al., 2009). Razão pela qual, mais do que necessária, é imprescindível uma maior aproximação entre a teorização feminista e as Ciências do Esporte, visto serem imensos os desafios a enfrentar quando pensamos nas desigualdades não só de gênero mas também de raça, etnia, orientação sexual, geração, classe social, habilidade física presentes no universo cultural do esporte. Pautar esses temas é investir no seu potencial educativo e, principalmente, acreditar que através do esporte é possível educar para a construção de uma sociedade mais justa e democrática. Afinal, como aprendemos com o movimento e a teorização feminista, o pessoal é político!

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.Nota biográfica

Silvana Vilodre Goellner  tem graduação em Educação Física, mestrado em Ciências do Movimento Humano e  doutorado em Educação. É professora do Departamento de Educação Física da da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordena o Centro de Memória do Esporte (UFRGS) e o Grupo de Estudos sobre Corpo e Cultura (GRECCO). Pesquisadora Produtividade Pesquisa Cnpq.

Paula Botelho-Gomes, doutorada em Pedagogia do Desporto pela Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP), é professora associada aposentada desta mesma universidade. Pedagogia  e Didática do Desporto e Estudos de Género e Desporto são as áreas a que se dedica, quer na lecionação, quer a nível da investigação, com trabalhos publicados em autoria e co-autoria. Na atualidade é diretora do curso de Educação Física e Desporto da Universidade Lusófona do Porto (ULP). Presidente da Associação Portuguesa Mulheres e Desporto, desde 2003.

Paula Silva nasceu no Porto, Portugal, e é doutorada em Ciências do Desporto pela Faculdade de Desporto da Universidade do Porto onde exerce funções de docência e investigação no Centro de Investigação em Atividade Física e Saúde e Lazer (CIAFEL) em estudos de género. Vice-presidente da Associação Portuguesa Mulheres e Desporto.


 

> [1] A utilização do termo Ciências do Esporte indica que o fenômeno cultural esporte tem sido analisado a partir de diferentes aportes teórico-metodológicos advindos tanto das áreas biomédicas quando das sociais e humanas.

> [2] Poder, aqui, é tomado a partir da teorização de Michel Foucault (1992), que o percebe como difuso, descentralizado e horizontal.

> [3] Utilizamos a expressão “um certo distanciamento” para afirmar o caráter falacioso dessa justificação pois, desde os seus primórdios, as mulheres se fizeram presentes no campo do esporte. No entanto essa presença foi colocada nas sombras dos registros oficiais de modo a parecer que não participaram da sua estruturação e legitimação como prática cultural.

> [4] Segundo Nicholson “esta tendência de ver as diferenças físicas que separam homens e mulheres em termos cada vez mais binários, aparecia também a nova tendência a ver as diferenças físicas como a causa própria da distinção masculino/feminino (2000, p. 20).

> [5] A denominada “segunda onda do feminismo” tem seu início no final da década de 1960; suas preocupações, além de estarem situadas no plano social e político, voltam-se, também, para as construções teóricas. É nesse contexto que o gênero desponta como uma ferramenta analítica.

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