labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier / juin 2013  -janeiro / junho 2013

 

 

Maria Sibylla Merian: artista-naturalista

   Norma Telles

 

­Resumo

O texto acompanha a jornada de vida de Maria Sibylla Merian, uma mulher talentosa e curiosa que sondou mistérios do ser no mundo estudando metamorfoses de insetos por toda a vida, fazendo mesmo uma grande viagem para completar seu trabalho exposto de forma artística incomum. Suas andanças e buscas sugerem questionamentos sobre nossa relação com os insetos e preocupações atuais com mundos não humanos.

Palavras-chave: artista, insetos, viagem

 

Maria Sibylla Merian (1647-1717) foi uma mulher de múltiplos talentos e, sem dúvida, uma mulher de aventuras nos campos da arte, do saber e do comércio. Uma mulher notavelmente autoconfiante e independente, foi mestra de inúmeras alunas e especialmente ensinou e treinou suas filhas nas artes do desenho e da gravura, assim como despertou nelas a curiosidade pela ciência, com o que deram continuidade a uma das casas editoras mais renomadas da Europa.          

Na sua época era comum que naturalistas fossem reconhecidos pela adição ao nome do local em que viviam; mas Merian, ao contrário dos notáveis de então, embora prestigiada como eles, não se prendeu a um só lugar, morou e trabalhou em várias cidades alemãs, em Flandres e até mesmo viajou para a América do Sul com o intuito de prosseguir suas pesquisas que constituem um dos caminhos do que seria a futura disciplina da entomologia, aliadas ao talento artístico para reproduzir e divulgar os resultados de suas observações. Ela não expõe só com palavras, mas, especialmente, com aquarelas e gravuras surpreendentes, deslumbrantes.  

Gravuras ou aquarelas são imagens e estas são incapazes de repouso, segundo Bachelard (1884-1962), o filósofo que criou paralelamente uma nova epistemologia da ciência e uma poética da imaginação, formulando uma fenomenologia que diz respeito às nuances do ser. A arte é sempre criação de novas imagens, sugestão de novos caminhos a partir de sua complexidade polissêmica, relação de significados que incluem eventos históricos, humores, possibilidades expressivas e interpretativas que não se esgotam. Montagens e desmontagens, as imagens, nessa concepção, não só formam, mas especialmente deformam as formas pragmáticas da percepção.

Merian viveu em uma época em que ciência e arte ainda não haviam se separado nas áreas de conhecimento. Ela foi uma artista-naturalista quando esses saberes ainda estavam próximos, o que termina quando se firmam tendências que desde o final do século XVII apontam para o surgimento de uma nova ciência, quando a história natural deu lugar às ciências naturais e a arte passou a ocupar outro nicho. Quando também se firmou a separação das visões de mundo popular e erudita da natureza. O que, por seu lado, estimulou pesquisadores cultos e favoreceu uma postura científica agressivamente racionalista diante dos “erros vulgares” dos saberes populares, que acabaram por se modificar ao abandonar noções muito arraigadas (Thomas:1988:94).

O ímpeto classificatório no início da era moderna acabou por cavar um abismo entre modos populares e eruditos de ver o mundo da natureza; desapareceram os coloridos nomes vernáculos usados para identificar plantas ou animais, substituídos por uma nova terminologia latina fragmentada em categorias estanques de fixação para os diversos elementos.  Foucault (1968) discorre longamente sobre essas alterações e afirma que foram também essas condições que fizeram surgir, entre outros, um Linneu que transformou, com sua taxonomia, a natureza em um imenso catálogo.

A obra de Maria Sibylla Merian não se inscreve no empenho de muitos estudiosos de então de concretizar o projeto de Descartes – que vivera anos nos Países Baixos - e submeter tudo a determinado escrutínio da razão. Sua obra é significativa nesse contexto por ser “de caráter fundamentalmente fenomenológica (Wettengl:1998:8)”, sua visão da natureza se aproximava mais da de outro filósofo nativo de Amsterdã, Spinoza, a respeito de quem deve ter ouvido falar, uma vez que ele foi também um exímio, e renomado, fabricante de lentes. Merian observava, descrevia, ilustrava sem, no entanto, classificar ou tipificar.

Podemos lembrar para seu método a dupla conotação desse termo que Bachelard sempre nos lembra: método sugere o rigor do procedimento, mas também a indeterminação contida nas raízes gregas da palavra, hodos, que significa caminho. Assim, qualquer método é sempre necessário e perigoso ao mesmo tempo, porque pode se tornar a fórmula morta de um sistema que se tornou ditatorial e paralisar as descobertas. Merian, em época de pensadores universalistas, foi uma especialista cuja perspectiva era situacional.

Por isso em suas gravuras podemos observar juntos insetos que a biologia posterior colocou em diferentes ordens e que ela mostrava como uma comunidade ecológica tal qual observava na meio ambiente. Merian, ao que tudo indica, parece não ter usado o microscópio em suas pesquisas, ele era ainda muito pesado e de difícil manejo, mas ela própria relata que usava lentes de aumento. O microscópio apareceu em torno de 1600 e trouxe mudança radical no estudo dos insetos a partir dos anos 1670, pois a visibilidade da anatomia levou a novos conhecimentos. Os naturalistas usavam o microscópio para penetrar o interior dos insetos. O olhar de Merian permaneceu focado na superfície, o que não deriva de algum escrúpulo religioso ou por ser mulher. Ela narra processos de dissecação que fazia para corrigir noções errôneas sobre os espécimes. Ela não transpôs essas experiências em dissecação estética, embora o microscópio tenha influenciado o desenho de suas imagens, como na falta de plasticidade e marcante estilização de assinaturas estéticas de suas superfícies em ornamentações, onde praticamente todos os campos possam ser atribuídos a visão do microscópio.

“E isso certamente também se aplica a distorção visual de proporção relativa de plantas e insetos [...] os motivos de insetos são tamanho natural [...] os detalhes de plantas são radicalmente diminuídos em tamanho. [...] O importante aqui é a flexibilidade da artista e sua receptividade a diversidade dos aspectos parciais e descobertas contraditórias resultantes da dicotomia entre a percepção ‘natural’ e sua realização técnica. Ela mesma identificou a qualidade enganosa de suas ilusões óticas nos próprios objetos [...] Merian não fez tentativas de conseguir comando visual da pletora confusa de aparências constantemente mutantes [...] ou de analisá-las em seções esquematicamente longitudinais e cruzadas arrumadas em grades geométricas (Schmidt-Linsenhoff:1998:215) ”.

Foucault, em A palavra e as coisas, assinala que o microscópio não levou a uma intensificação da percepção sensorial na historia natural na era clássica, levou a restrições e substituições análogas através de um sistema de classificações, julgamento que não se aplica a Merian cuja experiência visual do microscópio é expressa por intensidade de cores e ilustração da superfície na ilustração. A referência a mudanças de percepção através das lentes exigem do observador a reconstrução de cadeias de associações visuais e que estas sejam levadas ainda mais longe, como Meriam comenta:

“Vistas através da lente de aumento, a poeira nas asas pareciam como as penas marrons, brancas e pretas de galinhas multicoloridas. O corpo é coberto com pelos, como os do urso...A proboscídea tem aparência de pescoço de ganso ou pato” ou ainda “Sob a lente de aumento a borboleta azul se assemelha a telhas azuis que tem o mesmo formato que as do telhado e estão em um arranjo muito regular e bem ordenado (apud Schmidt-Linsenhoff:1988:216).

A abordagem diferenciada de Merian, que não invoca a objetividade como critério, seria referida por Donna Haraway como o que faz a nascente ciência, pensa Schmidt-Linsenhoff, como ‘malestream da ciência moderna’, uma perspectiva que se inscreve miticamente nos corpos, marcados ou não, representados ou não, e descreve a não assinalada posição dos brancos e dos homens. Haraway invoca uma perspectiva personificada, a ‘localização’ do observador no espaço e o reconhecimento de uma variedade de perspectivas inter-relacionadas.

As descrições de Merian expõem sensações, qualidades de gosto e aroma, ligando o sentido visual ao restante do aparato sensível qualificado em assim em posição privilegiada.

“Se o abacaxi for cortado muito fino, ‘pequenas fibras permanecem nele e quando comido elas penetram na língua causando muita dor. O fruto sabe como uma mistura de uvas, damasco, passa de Corinto, maças e peras, cada sabor identificado na língua ao mesmo tempo. O gosto é doce e forte. Quando o abacaxi é descascado e aberto, toda a sala se enche com seu aroma (apud Schmidt-Linsenhoff:1988:218)”.

 

Por outro lado, Merian deliberadamente abandonou as classificações medievais. No século XVII ainda se acreditava que os insetos e lagartas não eram aparentados, surgiam espontaneamente da terra pútrida, ou do suor. Estranhava-se também a progênie dos insetos ter formas tão diferentes dos adultos. Em decorrência, eram tidos como coisas do demônio, o que poderia tornar suspeitos aqueles que se interessassem por eles. A área de atuação de Maria Sibylla era perigosa, embora ela pareça nunca ter se sentido ameaçada ou ter estado sob suspeita.

Esse tipo de associação, porém, demorou a desaparecer e vamos encontra-la no Fausto [II, 2,1], de Goethe, de 1808, onde um coro de insetos saúda Mefistófeles que comenta como aquelas ínfimas criaturas aqueciam seu coração, acrescentando que o Senhor das Moscas, Belzebu, o Demônio, ama os insetos, diabinhos do ar que são seus filhos.

“De todas as criaturas de Deus, grandes ou pequenas, nenhuma parece provocar fúria igual à provocada pelos insetos. [...] Nada iguala nossa paixão assassina para erradicar esses seres incomodativos (Hillman:1997:77)”.

A própria palavra carrega sentido de ansiedade, vem do latim, insector, perseguir encarniçadamente; atormentar, atacar. Nossa aversão pode ser explicada, segundo Hillman, ao menos por quatro fontes de fantasias assustadoras: multiplicidade, monstruosidade, autonomia, parasitas.

Multiplicidade, as colônias podem ter mais de mil membros, as de formigas podem chegar a meio milhão; a fertilidade em geral é extraordinária, mas a questão é mais como encaramos a multiplicidade do que como encaramos esses seres através da única lente unitária de ser humano.

A segunda fantasia gira em torno da monstruosidade desses seres, o homem mosca, a viúva negra, termos que atualmente caracterizam pessoas não humanas dos filmes de terror. E mais, esses monstros nos arrancam do ego, dos humanismos, não é esse o ponto apavorante do conto de Kafka? Ou a indagação cifrada da barata de Clarisse Lispector ou das aranhas de Louise Bourgois? O monstruoso pode estar em formas minúsculas e o tememos tanto que isso dá medida de quanto nosso mundo humano se distanciou do cosmos não humano.

Autonomia é a terceira: é preciso destruí-los porque não se submetem, porque disputam comigo as maçãs ou as flores; a autonomia deles abre feridas em mim, me enlouquece; sua radical autonomia em relação ao controle humano o transforma no Grande Inimigo.

Parasitas, é a quarta dessas possíveis fantasias. Não só elas invadem nosso campo, como vivem de nossas propriedades e partilham nossos corpos, e o de nossos animais de estimação. Um organismo microscópico pode entrar em nosso corpo e alterar o comportamento; a contrapartida é que o medo de alteração da personalidade por poder alienígena dá conta do pânico algumas vezes associados com parasitas (Hillman:1997:79-81).

Sem dúvida, em outras culturas que não a Ocidental, o sentido dos insetos é outro, mas isso não nos diz respeito aqui. Quero lembrar que ainda usamos o termo inglês bug (inseto em português) para defeitos de programas em nossos computadores; falou-se tanto no bug do milênio que iria destruir em um instante tudo que havíamos armazenado por décadas!

Maria Sibylla Merian não se incomodava com lagartas, formigas, borboletas, aranhas, mariposas e parasitas, ao contrário, desde sempre as amou e estudou. Inventou e adotou o método de mostrar a história de vida dos insetos e parasitas do ovo à maturidade – foi sempre apaixonada por metamorfoses. Ela atribui importância ao racional e ao estético, entrelaça arte e ciência, seu pensamento se desenvolve à margem do particular e do global. Seguir as várias formas em suas transformações foi sempre sua meta.

Merian foi muito respeitada e reconhecida durante sua vida, porém no século XIX a artista-naturalista foi bastante criticada. Não importam essas críticas, ou mesmo alguns erros pontuais, hoje voltamos a admirá-la por sua arte e por suas pesquisas enquanto estudiosos contemporâneos assinalam que seu método faz de sua maneira de expor uma alternativa fenomenológica à ciência moderna.  

  

 

Frankfurt am Main

Maria Sibylla Merian nasceu em Frankfurt, à beira do rio Main, uma das cidades imperiais livres em 1647, em uma família de classe média alta formada por artesões, homens e mulheres educados. Formou-se nesse ambiente onde as mulheres tradicionalmente, desde o século XV, estiveram envolvidas no processo de produção. Ser treinada nessas práticas oferecia-lhes uma das melhores maneiras de adquirirem conhecimento e erudição. Maria Sibylla foi a primeira filha do segundo casamento de Mätthus Merian, o Velho, tido como o mais influente editor de sua época.

  

Mättus Merien, gravador suíço, após muitas andanças pelas oficinas europeias, entrou para o reputado atelier fundado por Theodore De Bry, no século XV. De Bry pertencia a uma família protestante originária de Liége, Flandres, que com a tomada do poder pelos espanhóis, se refugiara em Frankfurt para fugir à dominação católica. A sua era uma próspera oficina de impressão de livros e gravuras que manteve inúmeras conexões com a Inglaterra e outros centros europeus através da publicação da famosa série de livros sobre as viagens de descobrimento e volumes sobre as Américas que empregavam matérias trazidas por pessoas de diversos lugares. Theodore morreu em 1598 e foi sucedido pelo filho Johann Theodore que contribuiu para o sucesso dos negócios e aumentou o prestígio daquele atelier.

Johann Theodore, ao que parece, simpatizava com um movimento que surgiu em torno do Eleitor Palatino, Frederico V, a partir de seu casamento, em 1613, com Elizabeth, filha de Jaime I da Inglaterra. Por um curto instante reuniram-se representantes de várias correntes de pensamento e vieses políticos em torno do casal real que, de Praga, intentou reformas protestantes mais liberais, contrapondo-se ao domínio católico espanhol. A firma De Bry foi uma das associadas a corte de Heidelberg e Johann Theodore mudou sua sede para Oppenheim no Palatinado.

O famoso desenho dos jardins do castelo de Heidelberg é assinado por um dos melhores artesões do atelier, Mattäus Merian, que havia se casado com  uma das filha de Johann Theodore, Maria Magdalena De Bry enquanto a irmã desta casou-se com William Fitzer, editor inglês que publicou o sistema sanguíneo descrito por Harvey, o que faz perceber a rede de relações entre os editores de vanguarda da época.

  

 

Em sentido histórico limitado esse período agitado pelos acontecimentos no Palatinado, corresponde ao intervalo entre o Renascimento e o surgimento do Iluminismo e da ciência moderna em meados do século XVII, período que se desenrolou sob a atmosfera de buscas de novos avanços e conhecimentos que pareciam estar por toda parte distribuídos por vários canais.

A derrota da corte de Heidelberg, em 1620, pelas forças de Spinola na famosa batalha da Montanha Branca resultou na derrocada total daquele grupo: a corte fugiu, as pessoas se espalharam, o castelo e a biblioteca com sua incontável variedade de obras dos mais diferentes autores, foram destruídos e os manuscritos e livros queimados em grandes fogueiras pelos espanhóis. A derrota, porém, não afetou a firma DeBry que retornara a Frankfurt um pouco antes e continuou publicando com o nome De Bry/Merian (Yates:1978).

Mätthus Merian ficou viúvo, com filhos, de Mary Magdalena De Bry e se casou em seguida com Johanna Sibylla, nascida Heim, de uma família Wallon, isto é, família de fala francesa que vivera na Bélgica e emigrara dos Países Baixos para Hanau, cidade alemã próxima a Frankfurt. À filha Maria Sibylla ele ensinou os primeiros traços de desenho e predisse que traria ainda mais brilho ao nome Merian. Ele morreu quando a menina estava com três anos de modo que sua influência sobre ela se deu principalmente através de seu legado artístico.

Merian, o velho, foi sucedido na administração da oficina pelos dois filhos mais velhos, Mättus, o Jovem e Caspar. A viúva Johanna Sibylla logo se casou novamente, desta vez com um pintor suíço de naturezas mortas e de flores, Jacob Marrell, nativo de Basel, que tinha um avô francês que se mudara para Frankfurt. Sua família, portanto, também era de imigrantes e se assentara primeiro em uma cidade do Palatinado e depois vivera em Utrecht para onde ele continuou a ir e vir durante toda sua vida.

Maria Sibylla foi beneficiada pela posição da família e recebeu uma educação complexa e rica que lhe deu a autoconfiança necessária para se tornar editora e comerciante, aprender o oficio, além de proporcionar-lhe um aprendizado artístico digno de seu talento. Ninguém tentou barrar suas tendências para a arte e para ciência, embora tenha ficado registrado que Johanna Sibylla, a única da extensa família que não manifestou pendores artísticos, não apreciou essas artes da filha.

De qualquer modo, não houve resistências ou impedimentos à formação da menina. A longa dinastia de pintores, editores e gravadores que produziram e nutriram Maria Sibylla Merian era muito cônscia de seu status artístico. Colocado seu trabalho ao lado dos livros ilustrados tanto de Theodor de Bry e Mättius Merian quanto das pinturas florais de Jacob Marrel, as criações de Maria Sibylla refletem a riqueza de seu meio e,

“sua própria individualidade emerge sem sombra de duvida – em cores vibrantes. Não há duvida que era uma artista. Sua visão inquieta da vida em todas as suas formas cuidadosamente, inteligentemente, moldam cada uma das imagens que parecem, tão enganosamente, apresentar íntimos e desapaixonados instantâneos da realidade (Rowland:2009:5)”.

Merian não cursou uma universidade, mas há apontamentos de leituras e indícios que demonstram estar sempre atualizada com os tópicos de sua época. Assim Maria Sibylla Merian se tornou uma artista-naturalista, mestra, mercadora de pinturas e gravuras assim como de espécimes raros preservados, editora, e mãe de duas filhas. Maria Sibylla Merian e filhas, mulheres de arte e ciência* deram continuidade ao atelier De Bry/Merian até o final do século XVIII. No único retrato que temos dela, um quadro pintado a partir de um esboço de seu genro, Maria Sibylla Merian aparece rodeada de livros, instrumentos, gravuras de conchas e flores, tendo atrás de si um quadro redondo cujo centro é ocupado por uma cegonha, o símbolo da casa editora Merian.

 

Maria Sibylla fez o melhor uso possível das oportunidades que se lhe apresentaram e abriu um roteiro de viagens que não era usual para mulheres. São conhecidas outras botânicas e pintoras de flores renomadas suas contemporâneas, como Maria van Oosterwyck e Rachel Ruysch, mas elas não conduziram nenhuma pesquisa científica, o que faz dela, pesquisadora e naturalista, uma exceção especialmente pelo campo escolhido. Outras mulheres, como

“Maria Cunitz (1610-1664), Elisabetha Koopmann (1647-1693), Maria Eimmart (1676-1707), para nomear apenas algumas, voltaram sua atenção para a astronomia, outra disciplina científica intimamente associada com o empirismo dos artesanatos manuais (Wettengl:1998:14)”.      

O telescópio, invenção de um neerlandês em 1608 e aperfeiçoado por Galileu em 1609, abrira a profundidade do espaço longínquo para o olhar humano. Sua contrapartida, o microscópio, inventado em meados do século XVII por um holandês fabricante de tecidos, Antonie van Leeuwenhooel, mostrou elementos invisíveis não nos céus, mas na terra ou até mesmo dentro do corpo humano como constatou horrorizado o inventor ao contemplar sua saliva sob as fortes lentes e enxergar o que denominou “animalcules”, e que nós chamamos bactérias, vivendo muito bem dentro de sua boca. 

Uma das confusões que essas pequenas criaturas, surgidas de ovos apresentavam era o lugar que ocupariam na ordem animal e vegetal. É Maria Sibylla Merian quem nos conta, em uma das poucas notícias que escreveu sobre si mesma, que desde cedo foi fascinada pelo que seria a paixão de sua vida, a metamorfose dos insetos.

“Desde minha juventude me dediquei ao estudo dos insetos. Comecei com os bichos-da-seda na minha cidade nativa, Frankfurt am Main; depois observei as muito mais bonitas borboletas e mariposas que se desenvolvem de outros tipos de lagartas. Isso me levou a colecionar todas as lagartas que pude encontrar para estudar suas metamorfoses...e trabalhar com minha arte de pintora de modo que esbocei-as ao vivo e representei-as em cores semelhantes as da vida (apud Davis:1995:144)”.

Começou observando os bichos da seda com os quais provavelmente entrou em contato através da indústria da seda dos imigrantes holandeses em Frankfurt. “E comecei esse estudo, Deus seja louvado, em 1660”.

“O gosto pela metamorfose não existe sem o gosto pela pluralidade de atos (Bachelard:1995:23)”.  O único não possui propriedade poética, a mente poética faz um diagrama, que não é o mesmo que o objeto real, que deve “suscitar uma decomposição de forças, rompendo com o ideal ingênuo, o ideal egoísta da unidade de composição (Bachelard:1949:181)”. 

Merian descreve um diagrama, no sentido bachelardiano:

“Um dia penetrei longe por locais ermos e encontrei, entre outras coisas, um árvore que os nativos chamam nêspera...Ai encontrei uma lagarta amarela...Levei-a comigo para casa, e logo se transformou em uma pupa de cor clara. Quatorze dias depois, quase no final de janeiro de 1700, uma linda borboleta emergiu [...] indescritivelmente bela. Sua beleza não pode ser mostrada com um traço de pincel (apud Schmidt-Linsenhoff:1988:218)”.

A deformação de imagens designa um grupo de metáforas naturalmente ligadas a metamorfoses, pois no reino da imaginação as metamorfoses de um ser são já um ajustamento ao meio imaginado, de modo que o meio e o ser se tornam coerentes: a planta é transformada, ela nutre a lagarta; e ao contrario, a lagarta vai sumindo, se envelopa.

A metamorfose é o meio de realizar imediatamente um ato vigoroso, é, sobretudo, “a conquista de um novo movimento, isto é, de um novo tempo. O tempo deve então ser concebido como um acúmulo de instantes decisivos, sem grande necessidade da duração da execução (Bachelard:1995:17)”. As várias formas são vividas concomitante e rapidamente.

A escolha de um aspecto da matéria se assemelha a uma expansão da subjetividade, a escolha das metamorfoses da matéria, das montagens e desmontagens, formações e deformações é ação de tomada de posição diante do mundo e de si mesma.

 

Nuremberg

Maria Sibylla Merian casou-se, em 1665, com Johann Andreas Graff, um dos aprendizes de seu padrasto no atelier da família, e o casal permaneceu ainda cinco anos em Frankfurt antes de mudar, com a filha Johanna Helena de dois anos, para a casa patriarcal dos Graff localizada em Nuremberg. Ali o pai de Graff havia sido um poeta laureado e diretor de um ginásio; não era um patrício, mas era um notável. Em 1678 nasceu a segunda filha do casal, Dorothea Maria e todos viveram ali até a morte de Jacob Marrel, em 1681, quando Maria Sibylla retornou com as filhas à Frankfurt para ficar com a mãe viúva. Essa foi uma caminhada pela domesticidade para Merian, e os obstáculos que encontrou só podem ser percebidos através de indícios deixados em outras peregrinações.

 

Joachim von Sandrart, historiador da arte, coloca a jovem esposa pintora de flores, cujos trabalhos mais importantes ainda estavam por vir, numa hierarquia das artes:

“Ele a menciona como esposa de um pintor de Nurembergue, Johann Andreas Graff e filha de Mattäus Merian, posicionando-a na moldura econômica da família de classe média na qual das mulheres esperava-se que contribuíssem e o fizessem muito naturalmente. Pintar flores e insetos em pergaminhos e tecidos, riscar padrões florais para bordados, ensinar outras jovens mulheres, a pericia da preparação do cobre para as gravuras, a publicação de livros de modelos – nenhuma dessas atividades era tida como estranha ao sexo feminino (Schmidit-Lisenhoff:1998:205)”. 

Durante todos esses anos o casal trabalhou bastante e frequentou ampla roda de amigos. O marido completou inúmeras gravuras da cidade e ela se envolveu em vários projetos artísticos ou científicos e em atividades educacionais. Em 1675 saiu publicado em Nuremberg seu primeiro catálogo de flores. Merrian era também exímia bordadeira – essa arte talvez tenha aprendido com a mãe - e os catálogos visavam prover modelos para bordados ou para pinturas em seda ou linho que eram então muito apreciadas. Joachim von Sandrart, que também era pintor e amigo da família relata como era a vida de Merian aos vinte e oito anos:

“ [...] ela pintava com óleos e aquarelas e se especializara em flores, frutos, pássaros e especialmente insetos que observava com seus próprios olhos [e] pintava tecidos com cores a prova d’água, bordava motivos florais e animais e reunira um grupo de estudantes ao seu redor para o qual produzia gravuras em cobre com modelos para bordar [...] ela também comprava e vendia, em pequena escala, pinturas e instrumentos para pintar e supria esses itens para estudantes de seu círculo ao qual se referia como a ‘companhia das donzelas’ (Wettengl:1998:18)”.

O grupo de donzelas chegou mesmo a ter uma encomenda bem estranha, um general pediu-lhes para pintar sua tenda de campanha com as estampas florais que empregavam. Eram muitas suas atividades e poderia ter tido dificuldades se pretendesse seguir pintando profissionalmente uma vez que em Nuremberg o Código da Pintura, de 1596, previa que pinturas a óleo de naturezas mortas e ilustrações botânicas eram domínio exclusivo dos homens, e assim permaneceu inalterada essa instrução até o século XVIII.

Em 1679, Merian publicou o primeiro volume do Der Raupen wunderbare Verwandlung, und sonderbare Blumen-nahrung (As metamorfoses assombrosas da lagarta e sua particular nutrição de flores, em tradução livre). A segunda parte foi publicada em Frankfurt em 1683 e a terceira postumamente em 1717. Esse primeiro livro sobre os insetos da Europa, foi muito bem recebido pela comunidade cientifica É um de seus trabalhos mais importantes, discorre sobre a alimentação e crescimento das lagartas europeias. Além das ilustrações, esses volumes contêm mais textos, fornecendo indicações e informações o que o torna uma fonte primária preciosa para os estudiosos a respeito de uma pintora e é um documento sobre a popularização da história natural no inicio do período Iluminista.  

  

A arte na Europa do norte, diferentemente da italiana, se voltou no século XVII para o lar e a orientação da classe media protestante contribuiu para novos papeis para o artista e novos tipos de conteúdo. Não se distinguia a pintura de outras tradições artesanais que provinham mobília para a casa. As pinturas eram identificadas pelos temas: cenas da vida cotidiana que iam do banquete ao interior de bordeis, grupos familiares, mulheres ou serventes engajadas em atividades do dia a dia.

Chadwich lembra que o protestantismo eliminou as Virgens Sagradas como modelo feminino e a ausência de correntes neoplatônicas de pensamento no norte fez com que não houvesse identificação entre a mulher e um tipo feminino ideal. Central nessa arte foi a iconografia do lar, um microcosmo da comunidade devidamente administrada, emblemático da domesticação dos sentidos, alertando contra a sexualidade feminina desenfreada. Ao mesmo tempo, a imagem do interior das casas permitia expor, e observar, a crescente riqueza da sociedade (Chadwich:1994). 

            No Raupenbuch Merian menciona que chegou a ilustrações de insetos via a pintura de flores,

“como sempre fui encorajada a embelezar minhas pinturas florais com lagartas, pássaros de verão [borboletas] e pequenos animais do tipo, da mesma maneira que os pintores de paisagem fazem em seus quadros, avivar um pelo outro, por assim dizer: E assim eu muitas vezes fazia esforço enorme para apanhá-las antes de chegar às mudanças da lagarta por meio dos bichos-da-seda (apud Ludwin:1998:58)”.

Merian aplicou o método costumeiro de combinar motivos com sua própria maneira de formar a cena. A obra não continha alegorias, somente observações de seres vivos. E, neste livro, ela atesta ter criado algo novo: desenvolvera um tipo de cenário adequado para mostrar metamorfoses que não tinha precedentes,

“no qual por meio de uma invenção inteiramente nova, a origem, a alimentação e o desenvolvimento de lagartas, vermes, borboletas, mariposas, moscas e outros pequenos animais, incluindo tempo, local e características...são diligentemente examinados, brevemente descritos, pintados da natureza, gravados em cobre e publicados independentemente (idem)”.

Ela também enfatizava o efeito estético que colocava em suas pinturas, mesmo se desviando em alguns casos da exposição acurada de seus temas em favor da apresentação. Preocupação com estética e com a clareza influenciaram as ilustrações e os textos. “A prosa é eufônica, e seu conteúdo fácil de apreender [...] As ilustrações ajudam o leitor a identificar os insetos na natureza e provêm deleite estético ao mesmo tempo enquanto os textos servem para facilitar um entendimento intelectual do processo das metamorfoses (Ludwin:1998:61)”.

Várias entradas no Studienbuch, o seu Livro de Estudos, mostram que Merian realizou estudos sistemáticos de insetos em Nuremburg. Ela possuía um jardim, “vizinho das igrejas do castelo” que visitava com o objetivo de examinar as flores e procurar lagartas. Através de sua aluna Clara Regina Imhoff (1664-1740), filha de uma família patrícia, ganhou aceso ao jardim do médico e naturalista J.G.Volckamer com quem continuou a se corresponder depois de ter deixado Nuremberg. E, fez descobertas nos jardins dentro e fora das muralhas da cidade,

“eu encontrei grande numero dessas lagartas grandes, douradas, amarelas e pretas...  na relva e no fosso em Altdirff (onde está localizada a universidade de Nuremberg) (Wettengl:1998:20)”.

Os jardins, na época, eram extensões vivas da sessão botânica de uma coleção. Desde o século XVI, com as viagens de descobrimento, junto aos soldados, marinheiros e negociantes, funcionários, artesões partiam para as colônias e, além de seus deveres, estudavam as plantas, colhiam sementes, capturavam animais e enviavam tudo para a Europa. Havia interesse em botânica, mas especialmente na medicina e farmacêutica visto que todo esse batalhão de pessoas precisava ser mantido saudável em locais desconhecidos e para os quais os remédios europeus eram de pouca valia. Assim, as coleções e os jardins foram se enchendo de espécimes do Oriente e das Américas, os Jardins Botânicos dos reis e das cidades cresceram, assim como muitos cidadãos mantiveram jardins particulares, maiores ou menores, dentro e fora das cidades.

Na Holanda desenvolveu-se o gosto pelo exótico devido ao contato permanente com o Oriente e as Américas, e especialmente com o suprimento constante de itens que podiam ser encontrados em todas as casas o que é refletido na pintura da época. Em relação às coleções, havia coleções de moedas, medalhas e pedras cortadas em um primeiro momento; depois coleções de arte, pinturas, mas também “artes em papel”, isto é, gravuras e desenhos. Os jardins e as coleções davam prestígio (Van Gelder:1988:140-41).

Merian também conseguia algumas lagartas pelo correio, mas não obtinha sucesso na criação de todas. Conta que um espécime recebido pelo correio, vindo da esposa de um fazendeiro, perdeu-se porque, na época, ela não sabia como tratá-la. As entradas em seu Caderno de Estudos mostram a paciência, detalhamento e dificuldade de seu método de trabalho que formou a base de seus livros.

    

Era um trabalho empírico meticuloso em diversas etapas diferentes. A seguir fazia esboços da composição da gravura até atingir seu conceito estético e criou imagens inovadoras ao juntar determinados insetos com flores ou vegetações particulares. A diferença entre ela e outros pintores era que perseguia um objetivo cientifico e apresentava os animais não só em sua fase completa, mas através de todas as fases e formas pelas quais passava, mostrava insetos em transformação.

Ela usava o nome alemão das plantas e suplementava com termos latinos; assim se referia as borboletas como “pássaros de verão”, uma expressão do sudoeste alemão para designar o estágio imago. Porém, não nomeava todas as espécies individuais, como seus contemporâneos, não tinha nomes para todas elas. Cada gravura era organizada em torno de uma planta única que mostrava as folhas sobre as quais as lagartas colocavam seus ovos. E acrescentava os outros estágios da transformação. “Suas descrições exibiam historias de vida individuais (Davis:1995:147)”.

Muitas vezes pintou abelhas, vespas e moscas agrupadas com outras espécies de insetos, ou junto com mariposas e borboletas. “Ao representar diferentes ‘ordens’ em uma única prancha, Merian prestava tributo à comunidade de diferentes insetos que observava na natureza e aos quais parasitas, que ela nem sempre reconhecia como tais, também pertenciam (Wettengl:1998:22)”. Pode-se dizer que esse tipo de abordagem mostra uma ‘visão ecológica’.  A jornada a Nuremberg foi muito proveitosa em termos profissionais, certamente refletidos em transformações da própria autora que permanecem à sombra.

 

Frankfurt, retorno

A morte de seu padrasto fez com que retornasse com as filhas, em 1681, à cidade onde nascera para ficar com a mãe. O marido veio mais tarde. Os meios-irmãos mais velhos lá estavam também. Ela prosseguiu seus estudos sistemáticos até outras mudanças se introduzirem. “Quando voltei para Frankfurt am Main (depois de 14 anos de residência em Nuremberg, como quis Deus) em 1662, encontrei nas sebes do abrunheiro ao longo de Bockenheimer Weg, bem cedo na manhã de 14 de maio, uma grande rede sobre a qual todas as 70 lagartas, que eram ainda muito pequenas, estavam muito juntas em um círculo”. Ela leva as lagartas consigo, cuida delas e observa seu desenvolvimento. Prossegue com sua vida de pesquisas, artes e comercio até decidir partir novamente, desta vez com as filhas e a mãe.

Frísia

A base das crenças religiosas de Merian deve ter sido assentada desde a infância pelas atitudes da família, onde prevaleciam o primeiro pietismo, na época uma vanguarda da emancipação das mulheres, e atitudes do Protestantismo reformado. Os protestantes reformados holandeses formavam círculos de estudo para discutir a Bíblia e Deus e promover o crescimento de uma fé religiosa mais pessoal e autoconfiante. Tal postura derivava da família de sua mãe e também do pai de Maria Sibylla, que com seu primeiro sogro, DeBry, se associara, como vimos acima, às formas mais liberais de pensamento da corte de Heildeberg.

Maria Sibylla “estava interessada em ganhar as almas não pelas Sagradas Escrituras, mas com o livro da natureza (Liber naturae), venerando Deus através das pequenas criaturas (Ludwig:1998:62)”. Ela manteve a postura de reverência pelo Criador e sua Criação e paralela a ela, uma postura de iluminismo crítico durante toda a vida.

Ora, aconteceu que Caspar Merian, o meio irmão a quem Maria Sibylla era muito chegada, fora aceito como membro em uma comunidade Labatista já há algum tempo quando em 1685 ela com duas filhas e a mãe se juntaram àquela comunidade no Castelo de Waltha, na Frísia, província ao norte dos Países Baixos na fronteira com a Alemanha, seguindo a costa do Mar do Norte. A terra era gélida, mas com belas paisagens, florestas e uma rede de lagos interligados. Essa foi a jornada de busca, ascetismo e meditação de Merian.

  A comunidade labatista, ou dos ‘filhos da luz’, havia se formado em torno de Jean de Labadie, depois sucedido por Pierre Yvon, e viviam em um castelo pertencente as irmãs de Cornelis van Sommelskijk, nobre muito rico e governador holandês da colônia do Suriname. As regras eram rígidas, exigia-se completo abandono da violência, orgulho e concupiscência do mundo para poderem viver a vida de um regenerado, em total arrependimento. Por outro lado, tratavam como iguais mulheres e homens, Labadie se casara com Anna Maria Schurmann, erudita e filóloga renomada e uma feminista, “uma mulher a quem os poetas holandeses se referiam como sua “Safo ou Corneille”, voz importante do chamado por mulheres independentes (Chadwick:1994:110).

A aceitação de Merian na comunidade significou também o fim de seu casamento com Johann Andreas Graff. Alguns estudiosos contemporâneos indagam se a separação do marido não havia sido um bom motivo para ela se juntar aos labatistas. Especulações a parte, o que se sabe é que ele foi até Waltha tentar levá-la de volta, mas sem resultados. A comunidade só reconhecia casamento entre labatistas de modo que não fizeram a esposa seguir o marido. Anos mais tarde Graff conseguiu se divorciar e casou-se novamente.

Merian, porém, nunca se reconheceu como divorciada, apresentava-se como viúva. No final da vida recebeu o título informal que regularizou seu status anômalo: ela se tornou Mistress Merian “comumente termo para se dirigir a uma jovem solteira, mas em casos especiais um título de honra para uma mulher madura que vivia sozinha (Davis: 1995:199)”.

Em relação aos estudos de Maria Sibylla a comunidade não contrapôs nenhuma objeção; alguns estudiosos quando aderiam à seita abandonavam suas pesquisas, como fez Schurmann que deixou de lado seus estudos lingüísticos em favor dos de doutrina cristã. Meriam pode continuar suas explorações da vida dos insetos, aproveitando-se inclusive do laboratório e experiência de um médico que lá estava e aprimorava métodos de conservação dos espécimes. Foi ali também que travou conhecimento com objetos trazidos do Suriname.

Interessou-se por sapos, como anotou em seu Caderno de Estudos, observando que em abril um macho e uma fêmea colocaram uma grande quantidade de pequenos ovos; ela dissecou a fêmea e, 

“encontrei nela uma matriz como a que todos os animais possuem (assim, eles não têm os filhotes pela boca como muitos escritores pensaram) e no estômago encontrei tais pequenos animais dos quais a fêmea n. 202 é uma; na matriz encontrei uma quantidade de sementes como as que eram vistas na dita fêmea. Em maio, peguei alguns dos mencionados ovos de sapo que encontrara à beira d’água e desenterrei um pouco da relva nova com terra e a coloquei na tigela, aguei e joguei pão, e fiz isso diariamente; depois de vários dias os pequenos pontinhos negros começaram a mostrar vida e se alimentavam do limo branco que os rodeava; mais tarde cresceram-lhes caudas de modo que podiam nadar na água como um peixe; em meados de maio desenvolveram olhos; 8 dias mais tarde dois pequenos pés  irromperam através da pele para a frente; pareciam pequenos crocodilos; depois disso a cauda caiu, e então ficaram verdadeiros sapos e pularam para a terra (apud Wettengl:1998:28)”. 

Maria Sibylla Merian passou uns seis anos na comunidade, seguindo depois para Amsterdã, em 1692. O que pensou ou o que viveu naquele lugar, ela nunca mencionou, não disse nem escreveu uma palavra a respeito dessa aventura espiritual. Wettengl pensa que durante essa estadia ela adquiriu melhor domínio do latim, e presumivelmente, entre outros estudos, trabalhou em uma série de aquarelas conhecidas pelos estudiosos como as Kräuter-Serie (Série das Ervas), tidas como preparação para um livro que nunca chegou a completar. Dezessete dessas aquarelas, que estão em São Petersburgo, mostram ervas medicinais, especiarias e suas raízes. E, mais importante, continuou o Studienbuch,

“Hoje esse manuscrito representa um documento da história da ciência que oferece discernimentos sobre os métodos de trabalho usados pela artista e naturalista Merian – e as datas e entradas com nomes de lugares também se tornaram uma fonte importante para o estudo de sua vida (Wettengl:1998:29)”.

 Além de ser um documento na história da ciência com poucas informações sobre a artista, esse manuscrito tem outras conotações. Davis pensa tratar-se de um Diário espiritual, embora esse tema não aflore na escrita. Foucault talvez possa nos auxiliar a entender melhor do que se trata ao lembrar das técnicas de si antigas que estudou e que requeriam um treino de si para si mesmo. Esse treino tomava inúmeras formas como abstinências, memorizações, silêncio, escuta e escrita, dependendo do meio em que se realizava. A verdade é que a exata circunstância de sua estadia em Whalta permanece trancada nas sombras do tempo.

Caspar morrera em Waltha em 1686 e quando sua mãe faleceu em 1690, Maria Sibylla, tendo negociado o retorno de ao menos parte dos bens que doara a comunidade, partiu com suas filhas, não para sua cidade natal, abrira mão de seu direito de cidadania, mas para Amsterdã onde passou a residir.

 

Amsterdã

 

Amsterdã então era uma cidade cosmopolita, com uns 200.000 habitantes, porto movimentado para mercado de bens e centro financeiro. Sediava, entre muitas outras, duas companhias de comércio a longa distância que pertenciam a alguns de seus cidadãos: a das Índias Orientais, muito próspera, e a menor das Índias Ocidentais, que transportaram incontáveis soldados marinheiros, negociantes, pastores, artesões para as colônias de ultramar, assim como pessoas envolvidas em estudos científicos, alguns interessados nos lugares, outros em fauna e flora, outros ainda nas várias línguas. A cidade possuía bancos, estaleiros para a construção naval, que prosperava desde a invenção da serraria, inúmeros armazéns; uma infraestrutura digna deste século XVII conhecido como século de ouro holandês.

Maria Sibylla Merian instalou-se com as filhas, abriu as portas do seu atelier e logo retomou suas pesquisas. “No ano de 1691, dia 28 de setembro, encontrei em Amsterdã essas lagartas, que estavam bem envoltas em seus casulos, como pode ser visto no fundo, e em abril do ano seguinte, moscas pretas como essas apareceram”. Para ganhar seu sustento que não provinha das pesquisas demoradas, ela viu-se obrigada a comerciar com vários itens como se apreende de suas cartas. Ela continuou ou reassumiu o comércio de pinturas e começou a lidar também com insetos preservados.

As filhas agora podiam ajuda-la, Johanna Helena se casou com um ex-labatista, Jacob Hendrik Herolt que comerciava com o Suriname e Índias Ocidentais, começou também a vender gravuras e foi contratada como uma das pintoras de aquarelas do Jardim Botânico de Amesterdã. Maria Sibylla retomou o ensino e a pintura com ‘grupos de donzelas’, como ela dizia, atividades que a haviam sustentado em Nuremberg e Frankfurt. E teve compradores importantes como Agnes Block.

“Por volta de 1698, ela podia gabar-se de ter uma casa bem mobiliada em Kerkstraat e contar com a amizade e ajuda do pintor Michiel van Musscher que morava alguns canais de distância (Davis:1995:166)”.

Durante esses anos, os volumes de seu Raupen chegaram as bibliotecas da Inglaterra e foram muito bem recebidos. Seu trabalho entomológico também prosperava, ela nutria lagartas da área de Amesterdã e estendeu suas observações para as formigas e outras espécies. E, o mais prestigioso de tudo, ela foi bem recebida nos círculos de naturalistas e colecionadores de Amsterdã. Visitava seus jardins e seus gabinetes de curiosidades, como o de Frederick Ruysch, botânico e anatomista eminente cuja filha Rachel, pintora renomada, foi sua aluna. Ela conta que ali viu as conchas de insetos “estrangeiros” e outras “maravilhas da natureza”.

 

Gabinetes de curiosidades surgiram pela Europa entre os séculos XVI e XVII, a partir das viagens de reconhecimento dos diversos continentes pelos europeus. Eram locais onde se colocava e colecionava os mais diversos objetos dos três ramos da biologia: animália, vegetalia, meneralia, além de realizações dos humanos, objetos técnicos, osso e até mesmo repreentates de crenças medievais como sangue de dragões ou dentes de unicórnio. Os donos dos gabinetes faziam catálogos ilustrados de suas preciosidades o que permitia sua divulgação. No século XVIII, com o surgimento da ciência natural e dos museus, os melhores espécimes, ou os objetos significativos, dessas coleções foram colocados em museus de história natural enquanto o restante se dispersou ou virou poeira.

 

A denominação, pelos conquistadores europeus, de plantas, animais, minerais organizou o olhar sobre a paisagem das terras conquistadas, ao mesmo tempo em que a coleta sistemática de plantas, conhecidas como ‘ouro verde’, destinava-se a Europa para estudo e eventual comercialização. Viajando por todo o planeta, naturalistas europeus, fazendeiros, missionários e comerciantes encontravam todo o tipo de frutos estranhos, vegetais, medicinais, especiarias e outras valiosas fontes econômicas. Esse movimento acompanhou, cimentou e promoveu a expansão e colonização global europeia. As plantas foram isoladas do meio cultural nativo e colocadas em esquema compreensível principalmente por europeus que adotaram a nomenclatura de Lineu.

As potências coloniais guardavam zelosamente os recursos naturais que coletavam. Os monopólios e segredos tinham uma contrapartida na biopirataria e na bio-espionagem. A quem pertencia a natureza no século XVIII? As potências e companhias comerciais europeias proclamavam direitos exclusivos sobre os recursos naturais dos territórios que podiam manter militarmente, mas precisavam primeiro extrair o conhecimento nativo o que nem sempre ocorria, pois o silêncio e o segredo foram armas de resistência por toda parte. 

Os viajantes do século XVIII moldaram suas explorações em narrativas que serviam para engrandecer uma nova e muito louvada imagem da masculinidade: a do cientista-aventureiro que encontrava natureza ameaçada por nativos selvagens e colonos hostis à ciência. A Europa dos jardins e gabinetes de curiosidades, das pequenas e grandes coleções, se colocava como protetora da flora e fauna globais.

O maior colecionador de Amsterdã era o burgomestre Nicolas Witsen, presidente da Companhia das Índias Orientais. Ao examinar a coleção dele,, especialmente  um desenho que encomendara de plantas e insetos do nova colônia no Cabo da Boa Esperança fez Merian comentar, “examinei com assombro os diferentes tipos de criaturas que haviam sido trazidas das Índias Orientais e Ocidentais (apud Davis:1995:167)”.

Merian constata que algo muito importante estava faltando em todas aquelas coleções, as origens e subsequentes transformações dos insetos. Aos belos espécimes faltava mobilidade, processo. “Então me senti impelida a fazer uma longa e custosa jornada até o Suriname”, comenta Merian no prefácio do livro sobre os insetos daquelas paragens, que fará quando de sua volta. Suas jornadas pelas pesquisas, pela arte e pelo comércio haviam sido bastante proveitosas e a havia colocado em um lugar de respeitosa proeminência, mas ela desejou seguir em frente, aventurar-se mais uma vez.

Suriname

Há unanimidade de opinião entre os inúmeros autores contemporâneos que escreveram sobre Maria Sibylla Merian: ela foi muito audaciosa ao empreender aquela que seria a última grande jornada de sua vida. Estava com cinquenta e dois anos e viajava acompanhada da filha caçula, Dorothea, de vinte e um anos, sem a companhia de nenhum homem e visando estranhos assuntos. A viagem não era somente incomum, era também bastante perigosa, levava de dois a três meses em mares tenebrosos e infestados de piratas. O perigo era tão real que antes de partir, em 1699, ela fez seu testamento, beneficiando suas duas filhas e nomeando o genro e o amigo Michael Musscher como agentes para continuar a venda de suas coisas.

 

Os médicos, na época, tinham opiniões divergentes a respeito dos efeitos do clima tropical sobre a fisiologia das mulheres. Alguns pensavam que os ares das Índias Ocidentais ser-lhes-ia agradável e benéfico, até mesmo facilitariam o parto, enquanto outros, mais frequentemente, enfatizavam os perigos da viagem para a Zona Tórrida. Muitos acreditavam que cruzar o Equador provocava infertilidade. Afirmavam que as mulheres levadas para climas tropicais poderiam sucumbir a copiosas menstruações; avisavam que envelheceriam mais rápido, o ciclo menstrual terminaria mais cedo deixando-as expostas a todo tipo de enfermidades.

Merian não deu ouvidos a essas opiniões, ou a exigências de proteção. Ela se aventurou sem ser comissionada pela realeza, ou qualquer outro grupo. Precisou ela própria levantar recursos, para o que chamou um corretor para vender o que tinha em seu atelier, as pinturas, as gravuras, os insetos, a mobília e assim poder arrecadar fundos que lhe permitissem viajar. Noticias e informações sobre o Suriname, colônia holandesa, ela deve ter tido desde a estadia com a comunidade no castelo de Waltha, pois os irmãos, antes de sua chegada, haviam tentado duas vezes sem sucesso estabelecer ali um núcleo de povoamento. Também seu genro, que comerciava com o Suriname, deve ter-lhe fornecido orientações.

Em abril de 1699 partiu com Dorothea pelo vasto oceano, esperando cobrir o que faltava dos custos da viagem com a venda, na volta, de espécimes raros. Como muitos naturalistas homens, ela agregava interesses comerciais aos de pesquisa e se propunha a procurar, no Suriname, variedades de lagartas semelhantes ao bicho-da-seda, mas que tivesse um fio mais forte  para a fabricação da seda, item importante na manufatura colonial. Ela encontrou um potencial bicho-da-seda que se alimentava de uma árvore que chama de “arvore da China”. “A lagarta produzia um “fio ocre” que ela acreditava poderia produzir boa seda e dar bom lucro (Shienbirg:2007)”. Enviou amostras da Rothschildia aurota para a Holanda, embora, ao que se sabe, nunca chegou a produzir a partir desse bicho.

Merian também não tinha nenhuma conexão formal com o governo ou as instituições religiosas do Suriname aonde chegou, no final do verão, sem maiores percalços. A colônia era habitada há milênios por povos ameríndios, sendo os Aruaques os mais próximos dos europeus e outros de língua caraíba. Os nativos haviam sido deslocados pelos invasores europeus que se estabeleceram pela costa, com algumas plantations entrando um pouco para o interior às margens do rio Suriname.

Havia uns oito mil escravos africanos, a maioria originária de lugares entre Guiné e Angola. E uns seiscentos holandeses protestantes, da Holanda e da Zelândia; outros ainda eram judeus portugueses, uns poucos judeus alemães; huguenotes franceses chegavam à medida que a repressão na Europa aumentava contra eles (Davis:1995). Havia também algumas famílias inglesas que haviam permanecido mesmo depois da colônia ter sido cedida para os holandeses, através de um Tratado que concedeu aos ingleses, em troca, a colônia conhecida como Nova Holanda, na América do Norte, cujo nome eles mudaram para New York. 

A colônia holandesa era propriedade da Sociedade do Suriname e administrada por ela. As ações da empresa eram divididas igualmente entre a Companhia das Índias Ocidentais, a cidade de Amsterdã e os herdeiros de Cornelis van Sommelsdijk. Açúcar era o produto de exportação da colônia, e Merian comentou que as pessoas a ridicularizavam por procurar outra coisa que não o açúcar, ao que ela contrapunha ríspida critica a respeito dessa monocultura. Plantavam também café e colhiam cacau. O trabalho era escravo, homens e mulheres africanos na maioria, mais pequeno numero de ameríndios. O tratamento dos escravos ali era tido como o mais brutal dentre todos os países escravagistas da época. Alguns conseguiam fugir e estabeleceram aldeias “maroons” que incomodavam os europeus, pois faziam incursões às fazendas em busca de mulheres, mantimentos, armas que causavam bom prejuízo.

 

Maria Sibylla e Dorothea se estabeleceram em uma casa em Paramaribo, a capital, e em outubro de 1699 ela estava pintando sua primeira metamorfose. Tinham algumas conexões, inclusive com famílias da elite que as ajudaram. Ela comprou, ou mais provavelmente ganhou, alguns escravos, um índio e uma índia entre eles (Davis:1995). E Merian mergulhou no trabalho, na procura de lagartas para alimentar e observar as mudanças. Os africanos e os ameríndios foram muito mais úteis a ela do que os europeus, e ela penetrava a floresta cheia de pássaros fora da cidade “enviando meus escravos na frente com machado na mão para abrir passagem” e quando encontrava uma planta muito delicada, ela “fazia meu índio” cavar até a raiz e transplantar para o jardim para estuda-la (apud Davis:1995:176)”.

Em busca de novas espécies as duas mulheres, seus africanos e ameríndios, percorreram as fazendas as margens do rio Suriname; em casa ou em viagens falava sempre sobre as plantas e os insetos de modo que logo se tornou conhecida, e como entre os africanos e indígenas as mulheres em geral desempenham a tarefa de colher e selecionar espécimes, elas logo começaram a trazer plantas, insetos, aranhas, pássaros, lagartos, cobras, sapos para Merian que os esboçava ao vivo os espécimes e logo que conseguia pintava em pergaminho as lagartas, as crisálidas e sua alimentação.

Merian pretendia ficar cinco anos, mas depois de dois, vencida pelo calor e pela malária, voltou para Amsterdã carregada de espécimes e tendo deixado em Paramaribo um homem  encarregado de enviar-lhe objetos continuamente. Partiu em junho de 1701 levando também uma “mulher índia”.

 

Amsterdã

 

As Merian voltaram do Suriname em dezembro de 1701, e logo Dorothea Maria se casou com o cirurgião Philip Hendriks, de Heildelberg. O casal e Maria Sibylla foram morar em uma casa em Kerkstraat a qual deram o nome “ Roozetak” (Rosa Branca). No ano seguinte Johanna Helena, a filha mais velha, acompanhou o marido em viagem para o Suriname.

A preparação do livro, sua obra prima, levou cinco anos. Apesar das dificuldades financeiras desse projeto, e das dívidas dos empréstimos feitos para a viagem, ela trabalhou incessantemente, editou livros de outros autores, vendeu espécimes que trouxera do Suriname, buscou financiamento e assinantes; e planejou para quem enviar um exemplar. Em uma carta para James Petiver, em que fala dos mesmos temas indaga se não deveria enviar um livro especialmente acabado e com dedicatória para a rainha Anne da Inglaterra, “vindo de uma mulher para uma personagem do mesmo sexo? (Davis:1998:182)”.

Havia, assim, exigências de ordem econômica e as do próprio trabalho que requeria o cumprimento de várias etapas, selecionar, ordenar, acrescentar estudos separados, pintar aquarelas. Finalmente, quando ficou pronto, Metamorphosis Insectorum Surinamensium apareceram em holandês e latim, sendo que a parte em holandês foi escrita por Merian enquanto para a latina provavelmente teve alguma assistência, pensam estudiosos. Era uma edição em folio de sessenta gravuras em cobre, com cópias avulsas para venda em branco e preto ou coloridas por ela mesma. Uma obra prima, o comentário foi geral. E,

“[...]mais uma vez, como nos dias de seu pai e de seus meios-irmãos, o nome Merian tomou conta da primeira página: ela era editora assim como autora, os gravadores e tipógrafos haviam trabalhado em sua casa, em Kerkstraat. E ela negociava o livro que também era vendido por outro distribuidor [...] (Davis:1988:182)”.

 

Os naturalistas saudaram a obra como sendo a mais bela jamais pintada sobre a América. Aqui também seu modo de mostrar a natureza era em processos e relações, as metamorfoses dos insetos e as plantas que as alimentavam e nutriam aplicadas a criaturas e plantas desconhecidas dos europeus: mandioca, goiaba, batata, mamão e outros para os quais nem os nativos tinham um nome. Os insetos sul americanos que até então haviam recebido pouca atenção, eram expostos através de um olhar conhecedor e descritos por alguém que estava em contato com a comunidade científica europeia. Um ou outro naturalista havia recentemente feito o mesmo para as plantas das Antilhas Francesas e para a flora e fauna da Jamaica.

“Maria Sibylla Merian (com sua expertise de editora e amizades em Amsterdã) estava desempenhando este papel para os insetos do Suriname, mesmo sem o benefício de ser um Botânico Real ou um Membro da Royal Society (Davis:1988:183)”. Mesmo sem ter patrocínio, Maria Sibylla Merian viajou, pesquisou, pintou e editou uma obra prima tudo por si mesma, resultado de uma longa e diversificada jornada.

Merian se apresenta como dona de escravos ao mesmo tempo em que critica enfaticamente o tratamento por eles recebido dos colonos holandeses, mas, por outro lado, aceita a legitimidade dos holandeses no Suriname. “Não obstante, a construção de sua relação com africanos e ameríndios teve alguns traços bastante incomuns, que (como suas representações de insetos e plantas) abriu fissuras no solo dos argumentos para o domínio europeu (Davis:1988:187)”.

Outros autores, embora reconheçam a posição diferente de Merian, não concordam com a ideia de Davis da abertura dessas fissuras no pensamento europeu. A botânica e a entomologia desempenharam papel apreciável na cultura visual do colonialismo europeu. Merian esteve envolvida no processo de dar formas a essa visão no Novo Mundo. Schmidt-Linsenhoff destaca esse envolvimento de Merian “na historia da visão e crescimento de um assunto hegemônico de conhecimento que é constituído pela visão distinta do ‘outro’(Schmidt-Linsenhoff:1998:218)”. Ao mesmo tempo afirma o lugar especial dela nesse processo.

 

Ao não se colocar como observadora objetiva, separada de seu objeto, a pesquisadora comunica sua “perspectiva parcial” como suplementar a outros modos de ver, distinguindo sua percepção da dos indígenas, dos africanos e dos proprietários das plantations. Suas representações visuais e textuais não tentam forçar um colosso de impressões sensoriais em taxonomias que negam essas percepções. Ela continua descrevendo sabores, odores, toques. Então sua abordagem tende a incluir, não a excluir, o leitor ou o observador, instruem divertem ao invés de exibir dominação. Com suas descrições ela afeta o sentido dos leitores com a intensidade dos trópicos, não com exotismos e estranhezas.

“Em última instância, os textos de Merian são também estórias sobre as origens das gravuras, relatos explicando a metamorfose da percepção individual em uma imagem coletiva. Eles são narrativas – no sentido de Haraway – personificando e localizando a perspectiva da artista-cientista, traçando seus movimentos através da topografia social da sociedade colonial (idem)”.

 

FLOS PAVONIS

Outro elemento que distingue sua exposição é o relato em forma de conversações. Um exemplo disso é o caso da Flos Pavonis, apresentada como diálogo entre a autora e outras mulheres, “que a instruíram de suas próprias bocas” sobre as virtudes daquela planta. Foram as ameríndias que identificaram para ela essa planta abortiva que pode também apressar o parto. Escreve Merian:

“Suas sementes são usadas pelas mulheres durante o parto para promover um final rápido. As Indígenas, que não são bem tratadas em sua servidão pelos holandeses, usam-na para abortar suas crianças de modo a não se tornaram escravos como elas. Os escravos negros da Guiné e Angola precisam ser tratados com benignidade, de outro modo não produzirão prole em seu estado de escravidão. Não têm nenhuma criança. Em verdade eles chegam mesmo a se matar devido ao tratamento brutal ao qual estão submetidos. Porque pensam que vão nascer de novo com seus amigos, em um estado livre em seu próprio pais, assim eles me instruíram de suas próprias bocas (apud Schmidt-Lisenhoff:1988:210)”.

 

Merian reporta suas qualidades e do mesmo modo que não classifica plantas e insetos, não classifica ou adjetiva os costumes dos ameríndios ou dos africanos. Não adjetiva moralmente a questão do trato da própria fertilidade. Outros viajantes relataram esses atos de desespero, e frades no inicio do XVII mencionam que as índias se referiam a práticas abortivas, mas a colocação de Merian é diferente, ela escuta sem interferir, e anota. Londa Schiebinger (2007) comenta que a informação de Merian vai contra a corrente do inicio da era Moderna, que pretendia apagar vestígios do saber antigo a respeito de fármacos para  tratar a fertilidade. Este corpo de conhecimento, que por muito tempo pertencera às mulheres, que o passavam de mãe para filha, ou entre vizinhas, não estava destinado a se tornar parte da botânica acadêmica conforme ela se formou nos séculos XVIII e XIX.

O que autora está dizendo é que existe um paralelo entre a colonização dos corpos das mulheres na Europa e a colonização de culturas não europeias. Todas as mulheres sofreram com a modernização europeia e a obsessão masculina de controlar toda a natureza.  A diferença no uso de abortivos indica a abordagem e prática diversa das diferentes culturas. Se, para as europeias, o uso de abortivos pode significar liberdade, para as ameríndias e africanas “escravas não significava liberdade, eram atos de resistência contra a mobilização, trabalho forçado e exploração sexual. A economia global transatlântica fez de seus corpos bens móveis; o trabalho forçado fora do lar destruiu as estruturas familiares e removeu sua sexualidade da esfera marital (Schmidt-Lisenhoff:1988:212)”.

A flos pavonis cresce em inúmeros locais do mundo, da Florida às Américas, na Ásia e na África.  Merian emprega o termo latino para uma planta que tem vários nomes, em português, cabelos de Vênus, nigela dos jardins, dama-de-verde, entre outros. Supõe-se então que possa ter visto a planta no Jardim Botânico de Amsterdã, pois a planta viajou inúmeras vezes para a Europa, o que não foi levado foi o conhecimento de seu uso. Importa ressaltar que como outras tantas plantas abortivas dos vários continentes, nunca foram testadas para entrarem na lista de possíveis medicamentos.

Hoje a flos pavonis que em inglês ou francês recebe tantas denominações quanto em português, é conhecida somente pela nomenclatura latina de Lineu, que a fixou uns cinquenta anos depois da morte de Merian. Ela é a ponciana pucherrima, porque dá belas flores. O que era anteriormente entendido com o poético ‘cabelos de Vênus’, se tornou incompreensível para a maioria e a receita de como usá-la, se o caule, ou as folhas ou a flor, e em que ponto de sua formação, se perdeu nesse processo.

 

Legado

Maria Sibylla Merian, depois da viagem e da edição de sua obra prima, tornou-se uma das figuras internacionais de Amsterdã, alguém que se deveria conhecer. Quando Pedro, o Grande, czar da Rússia visitou a cidade, seu médico foi até Kerskstraat e comprou várias pinturas para o czar e também o Caderno de Estudos. Estão todos preservados na biblioteca e no Instituto Botânico da Academia Russa em São Peterburg. Logo depois, em janeiro de 1717, Merian, que sofrera um derrame três anos antes, faleceu.

Dorothea Maria mais tarde viajou para São Peterburg, a convite do czar, onde foi nomeada pintora da corte e diretora da nova galeria que então se construía. A coleção de obras de Merian ali exposta foi acrescida durante aqueles anos. Antes de se mudar para a Rússia, Dorothea Maria vendeu as placas de cobre do livro sobre o Suriname para um editor de Amsterdã que publicou outras edições, mas com modificações introduzidas por ele. Depois ficaram com Jean Fredéic Bernard que também possuía as placas para o Raupenbuch. Dezenove edições das obras de Maria Sibylla Merian apareceram entre 1675 e 1771.

Johanna Helena, a filha mais velha transferiu seu legado através de Sir John Sloane para a coleção do Museu Britânico e através de Richard Mead para a Biblioteca do Castelo de Windsor, onde hoje fazem parte da coleção da Rainha Elizabeth II. Gravuras e aquarelas de Merian atualmente estão distribuídas entre coleções privadas e públicas na Europa, nas Américas, em São Paulo. As duas filhas de Maria Sibylla Merian seguiram carreiras solo de pesquisadoras e gravuristas.

Uma vasta literatura sobre a artista-naturalista, derivada de estudos das mais variadas áreas, provê sólida base para estudos sobre Merian e sua obra, de modo que hoje se reconhece não só seu talento artístico como também suas realizações no campo da ciência.

 

O paradigma dos insetos

Contemplando as gravuras de Merian, percebemos que seu trabalho, inserido na tradição do norte da Europa, reflete a incomparável precisão de Dürer, mas ao mesmo tempo, com sua versão do vermelho de cochinilha – um tipo de besouro de cuja carapaça ela fazia uma mistura - podia atingir uma intensidade elétrica quase sem igual (Rowland:2009:7). Ela desenha com precisão, a linha é franzida, e cores saturadas colidem em ousadia, fazendo desmoronar a linha do tempo em contrastes. Flores aparecem no mesmo galho que os botões, flores totalmente abertas e frutos maduros. Também os insetos são vistos em todos os estágios do seu ciclo de vida enquanto as folhas aparecem, florescem, ficam amarelas e morrem comidas pelas lagartas. Ela registra a passagem de tempo e chama a atenção para o efêmero em tudo.

A beleza que emana das gravuras não decorre de adornos, decorações. Não é também, simplesmente, a da estética dos críticos de arte. A beleza aqui não é um atributo, mas um estado da exposição de cada ser, inseto, ou planta, ou fruto. E vão surgindo aranhas, o exército de formigas, baratas, formigas trabalhadoras ou mariposas e borboletas, nenhum inseto é monstruoso, como os de nossas fantasias ou os do cinema, nenhum apavora, nenhum desperta o mal estar kafkiano. Talvez sugiram mais a estranheza e desconhecimento que nos envolvem diante da barata de Lispector ou das aranhas de Bourgeois, que as considerava reflexivas, inteligentes, pacientes, apaixonadas, razoáveis, delicadas, refinadas, indispensáveis, ordenadas e úteis, como sua mãe, por isso as intitula Maman.

Nas gravuras percebemos que cada inseto está em um mundo próprio - são inúmeros os mundos dos vivos – e demonstram autonomia em relação uns aos outros. As parasitas não são sempre reconhecidas por Merian como tais, mas estão ali, minúsculas, partilhando situações. A reação do espectador não é de ira ou medo, bem ao contrário, os arranjos, as cores, as variedades são um convite à admiração, a um outro olhar partilhado por todos os sentidos.

  

As fronteiras com o não humano estão sendo discutidas atualmente. Braidotti sugere que o inseto, ou o tornar-se um inseto nômade, fornece moldura materialista para zoe ressaltando imanência e vitalidade – e ao mesmo tempo “vida” – perspectivas centradas – “situando ambas fora dos limites do antropocentrismo (Braidotti:2011:100)”.  Lembra que outro modo de dizer isso é afirmar um novo paradigma, um modo de relação “viral”, ou “parasitário”, como sugeriu Shaviro, em 1995. Essa noção destaca como co-extensivos corpo e meio ambiente, ou território. “E insetos/vírus/parasitas constituem um modelo de relacionamento simbiótico que desafia oposições binárias”, por isso podem ser modelo inspirador para novas reflexões (idem:101).

Os insetos, pedacinhos de matéria viva alternativa, forma radical da “alteridade”, são invisíveis para nós o mais das vezes, não “conseguimos percebe-los, envelopados como estamos em nossos hábitos, que são o locus de nossas limitações estruturais (idem:102)”. Outros aspectos que os tornam paradigmáticos são a rapidez de suas metamorfoses, os talentos para o parasitismo, o poder de mimetismo ou de misturar-se com o território, a rapidez de movimento. Eles desafiam a gravidade e incorporam uma temporalidade específica própria, com rápidas taxas de recombinação genética; afirmam a questão da alteridade radical em termos biomórficos, isto é, “como metamorfoses do aparato humano sensorial, cognitivo e perceptivo. Nesta perspectiva o inseto provê um novo paradigma para transmutações descontinuas no interior de uma entidade estável (idem:104)”.

            “Os insetos são poderosos indicadores que o antropomorfismo está sendo descentrado e apontam para sensibilidades e sexualidades pós-humanas (Bridotti:2011:105)” que misturem o orgânico e o inorgânico. Braidotti pensa que o poder afirmativo da Vida é vetor de transformação, um portador de mudanças profundas. Enquanto tal atualiza um conjunto de interações sociais e simbólicas que inscrevem o elo humano/não humano no centro de nossas preocupações. 

A metamorfose dos insetos mostrada nas preciosas gravuras de Maria Sibylla Merian conduziram essas reflexões e nos levaram por caminhos inusitados na indagação a respeito dos seres e de seus mundos.

 

Nota biográfica:

Norma Telles, bacharel em História pela USP, Mestre em Antropologia é Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP onde foi professora entre 1978-2006. Pesquisadora independente trabalha a obra da escritora Maria Benedita Bormann que pode ser encontrada no site www.normatelles.com.br. Publicou Ronda das feiticeiras (2007), “A escrita como prática de si” (2009), “Memórias do fundo do poço (2010)” “Retratos de mulher(2011)”; Encantações, escritoras brasileiras e imaginação literária no Brasil, século XIX (2012).

 

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URL

www.nybooks.com/articles/archives/2009/apr09/the-flowering-g

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* Título da exposição na Rermbrandt House, Amesterdã, e no Paul Getty Institut, Los Angeles, 2008.

 

 

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janvier / juin 2013  -janeiro / junho 2013