labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier/ juin / 2014  -janeiro/junho 2014

 

Rompecabezas: O menor como exercício de liberdade feminina no cinema

 

 Maria Célia Orlato Selem

 

Resumo

O filme “Rompecabezas”, da diretora argentina Natalia Smirnoff, é analisado neste artigo por uma perspectiva feminista. Busca-se, a partir desta obra, refletir sobre a possível contribuição do cinema realizado por mulheres na produção de novas subjetividades para o presente.

Palavras-chave: cinema, feminismo, subjetividades.

 

 

1.      Cinema menor e o feminino como ponto de partida

A história de uma mulher comum que descobre, de maneira mais comum ainda, uma forma de se reinventar. Esta é a ideia central de Rompecabezas, o primeiro longa-metragem da diretora argentina Natalia Smirnoff. Um filme de ritmo lento e bela fotografia, que estreou no Festival de Cinema de Berlim em fevereiro de 2011, e segundo a própria diretora, foi inspirado em uma prática bastante apreciada por ela: montar quebra-cabeças nos momentos de crise, atividade que lhe permitia “no final, sair com outro estado de espírito” (Entrevista a Dias de cine).

A narrativa sobre a descoberta de Maria Del Carmen, a protagonista da ficção de Smirnoff, vai em direção da proposta esboçada pela cineasta belga Chantal Akerman. Esta última disse haver ficado impactada quando teve contato com a obra de Deleuze e Guattari sobre Kafka. Era isso que ela fazia quando escrevia os roteiros de seus filmes, constatou: uma escritura menor! E provavelmente essa escritura desaguava em um cinema menor (AKERMAN, 2005:47), mas que em nada coincidia com inferior ou desprezível. Como discorreram os citados filósofos, “uma literatura menor não é a literatura de um idioma menor, mas a literatura que uma minoria faz dentro de uma língua maior” (Deleuze & Guattari, 1990: 29), de modo que essa mesma equação poderia ser aplicada ao cinema.

Para Deleuze e Guattari (1990), existem algumas características inerentes à escritura menor que dizem respeito: à afetação do idioma decorrente de um forte coeficiente de desterritorialização devido à impossibilidade da escrita; ao fato de que, nas literaturas menores, tudo é político - o que faz com que cada problema individual se conecte com o coletivo, isto é, com o econômico, o burocrático, o jurídico; e ao fato de que o todo adquire um valor coletivo, em que evidenciar a escassez de talento pode forjar outra consciência e outra sensibilidade. Assim,

“As três características da literatura menor são a desterritorialização da língua, a articulação do individual no imediato-político, o dispositivo coletivo de enunciação. O que equivale dizer que [...] ‘menor’ não qualifica certas literaturas, mas as condições revolucionárias de qualquer literatura no seio da chamada maior (ou estabelecida). Inclusive aquele que tem a desgraça de nascer em um país de literatura maior deve escrever em sua língua como um judeu checo escreve em alemão ou como um uzbeque escreve em russo. Escrever como um cachorro que escava seu buraco, uma rata que faz sua toca. Para isso: encontrar seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio jargão, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto. (Deleuze & Guattari, 1990:31)

Rompecabezas pode ser analisado, portanto, alinhado à perspectiva de Akerman ao utilizar o conceito de “menor” desses filósofos para o campo audiovisual. O filme privilegia uma história comum, desinteressada, com foco nos pequenos detalhes de uma rotina sem atrativos. Sua aposta recai na gradual desterritorialização da personagem que em determinado momento se encontra esvaziada de si mesma, ainda que a narrativa termine no silêncio, na interrupção, no interminável, como a literatura sugerida pelos mencionados filósofos.

 O filme tem início com planos detalhes curtos que fragmentam a personagem Maria Del Carmen (Maria Onetto) enquanto ela realiza tarefas domésticas: a nuca se projetando para frente, as mãos amassando o pão, o avental. O foco da câmera escapa constantemente do seu rosto para se fixar nos pratos que vão rapidamente sendo preparados: tortas, salgados, assados, e, por fim, no bolo decorado, no qual ela inscreve delicadamente com caramelo: Feliz aniversário.

Alheia ao burburinho da casa, onde ecoam vozes e risadas em um clima ao mesmo tempo caótico e festivo, a personagem prossegue servindo os convidados e recolhendo copos e pratos sujos, em um esmero detalhado e mecânico. Uma espécie de transe, interrompido apenas quando, de maneira muito compenetrada, ela passa a juntar os cacos de um prato que acabara de quebrar, reconstituindo-o cuidadosamente sobre uma cadeira, até perceber que faltara um pedaço para completá-lo. Momento em que regressa à sala movimentada em uma minuciosa procura. Nessa inquietação ela parece não se divertir. E quando a vela de 50 anos é acesa, o/a espectador/a, surpreendentemente, descobre que ela é nada menos que a aniversariante!

 

2.      Cinema, feminismo e subjetividade

A produção audiovisual feita por mulheres foi, muitas vezes, dificultada ou silenciada no passado, mas é difícil ignorá-la hoje. Há um número cada vez maior de diretoras de cinema indicadas e/ou premiadas em várias modalidades de festivais, além daquelas que se ocupam do cinema independente. Sem dúvida, tal aumento e visibilidade do trabalho feminino no processo cinematográfico é um dos impactos sociais e culturais que os feminismos propiciaram para a atualidade, conferindo abertura para as mulheres na vida pública, aumentando sua interferência na produção cultural, antes fortemente marcada pelo patriarcado.

Rago (2001) sugere que, atualmente, nossa sociedade passa por um processo de “feminização cultural”. Isso porque os feminismos, em suas diversas formas de atuação, teriam transformado muitos aspectos da nossa cultura, historicamente edificada sob bases patriarcais.  Embora ainda pouco reconhecido/valorizado e até mesmo rejeitado em muitos espaços,

“o feminismo expandiu sua crítica para as bases de constituição da racionalidade que norteia as práticas sociais e sexuais. Estendeu a crítica às próprias formas da cultura, revelando como a dominação se constitui muito mais sofisticadamente nas próprias formas culturais que instituem uma leitura da política e da vida em sociedade [...]” (RAGO, 2001: 65)

Assim, as reflexões feministas ligadas ao campo audiovisual buscam perceber como a tela pode ser um espaço sensível às experiências das mulheres. Isso porque, segundo elas, o deslocamento do olhar da câmera ante as inquietações socialmente compartilhadas pelas espectadoras propiciou o surgimento de outros sentidos para o feminino no cinema, por meio de narrativas e estéticas influenciadas pelos desejos e subjetividades das mulheres.

A crítica feminista de cinema, tradicionalmente, possui três principais eixos de análise: denunciar as representações sobre o feminino no cinema tradicional/comercial; apontar as lacunas da participação das mulheres nos registros históricos sobre o cinema e discutir a questão da autoria fílmica feminina como interferência na cultura patriarcal. No caso desta última, há um esforço em ressaltar a potência emancipadora e subversiva que ela pode conferir ao imaginário social, enquanto resistência aos poderes historicamente estabelecidos.

Analisar o trabalho das mulheres detrás das câmeras, registrando subjetividades femininas, torna-se, portanto, uma escolha política, pois diz respeito à possibilidade de localizá-las como sujeitos de seu próprio discurso, capazes de compartilhar experiências e desejos por meio de outras estéticas ou narrativas. Como disse Scott, “reivindicar a atuação das mulheres na história significa necessariamente ir contra as definições de história e seus agentes já estabelecidos como verdadeiros” (SCOTT, 1990:77).  

É nesta perspectiva que conferimos destaque ao filme de Smirnoff. Sua câmera é extremamente detalhista, percorrendo em minúcia as porcelanas, flores, fitas decorativas, nos colocando no silêncio do tempo do depois da festa, quando todos se foram e restou apenas a sujeira típica das comemorações domésticas. A confusão do ambiente confere à cena um aspecto desordenado, que sob a luz amarelada e sombria resulta em um cenário envelhecido e melancólico.

A personagem Maria Del Carmen lava a louça após sua festa de 50 anos, em uma cena caótica, escura fechada. Cena do filme Rompecabezas.

 

Ignorando os demais presentes que ganhara de aniversário, Del Carmen interessa-se por uma caixa maior, descoberta sob a pilha de embrulhos coloridos: um grande quebra-cabeça de mil peças! Na tampa da caixa, uma figura feminina desafiadora traz o mesmo olhar distante da personagem que, por alguns momentos, tenta representá-la com gestos altivos, identificando-se com aquela nobre representação de Nefertiti. Esta cena nos coloca diante do primeiro sorriso esboçado pela protagonista na narrativa que, nesta descoberta, permanece acordada até o amanhecer.

A partir daí, entregue à tarefa de montar as centenas de peças do quebra-cabeça até completar a figura da rainha egípcia, ela inicia um processo de construção de um tempo só seu, esquecido diante do papel assumido no projeto de família nuclear. Juntar as peças do jogo significa, assim, dar forma a si mesma, buscar o possível com a pausa na rotina cotidiana na qual se encontrara acomodada por muito tempo, até perceber que completava 50 anos.

As mãos da personagem tateiam as peças do quebra-cabeça encontrado sob a pilha de presentes de seu aniversário de 50 anos. O jogo será um instrumento por meio do qual ela construirá um tempo para si mesma, uma abertura para exercitar o cuidado de si e reelaborar sua vida. Cena do filme Rompecabezas.

 

Smirnoff disse que buscou criar uma personagem que fosse uma pessoa sem grandes predicados. Em proximidade com a noção de “cinema menor” de Akerman, ela prioriza na narrativa uma pessoa que não corresponde às qualidades valorizadas pela atual sociedade do espetáculo e do consumo, tributária do tempo como sinônimo de lucro e prestígio. De certo modo, Smirnoff acredita que fala um pouco de si mesma através da personagem:

“[...] eu não pensava em alguém que jogasse xadrez, que fosse a ‘inteligente do xadrez’. Entediava-me muito o status social que um jogo como esse dá de alguma maneira. O quebra-cabeça qualquer um pode jogar; é uma perda de tempo, uma distração, de certa forma uma tolice. Por outro lado, eu montei quebra-cabeças por muito tempo, e isso sempre tinha a ver com épocas de crise. Trancava-me, e me metia a montar e montar e montar até tarde, como a ordenar um caos. Há uma filósofa argentina chamada Graciela Scheines, a qual eu pesquisei enquanto escrevia o filme, que sustentava que os jogos eram a possibilidade de acalmar as angústias existenciais mais profundas. E eu experimentava isso na minha própria vida. Por algum motivo eu não podia parar de jogar, e busco um pouco disso no roteiro.” (Entrevista à Revista O grito)

Mediante uma comparação de “Rompecabezas” com a película anglo-americana “As horas[1], a diretora concordou que seu trabalho recebera certa influência de Um teto todo seu (A roon of one´sown), da escritora britânica Virginia Woolf, conforme dissera em entrevista concedida à Natalia Barrenha alguns meses antes:

“A coisa fragmentada dos quebra-cabeças é muito parecida ao pensamento de grande parte das mulheres e, principalmente, das mães, que não têm uma linearidade, não se centram em apenas uma coisa. Elas sempre estão observando ao redor, matutando se o marido foi pegar as crianças na escola, se têm que passar no supermercado, o que vai ter para o almoço, olha que bonita a sua bolsa… todas essas coisas estão convivendo. É como um sobrevoar. E é isso que faz com que uma mulher faça as tarefas de casa e que seus filhos permaneçam vivos! Ela está obrigada a prestar atenção em diversas coisas ao mesmo tempo”. (Entrevista a Natalia Barrenha)

As mulheres escreviam mais romances e não tratados ou poesias, constatara a personagem de Virginia Woolf em seu percurso pela biblioteca da imaginária universidade de Oxbridge. Talvez porque elas nunca tivessem meia hora para chamar de sua, concluíra cogitando também que tal situação se devia ao modelo de família da classe média inglesa no século XIX, cujas casas dispunham apenas de uma sala de estar comum, e era justamente aí que as mulheres escreviam, interrompidas pelas pessoas que por ali passavam, e ora ou outra tendo de esconder seus rascunhos não muito recomendados para as chamadas senhoras de família. Um sobrinho de Jane Austin, por exemplo, em um livro de memórias, poderia questionar como ela escrevera tudo aquilo sem um espaço próprio. Provavelmente na sala de estar, sendo interrompida muitas vezes, constatou. (Woolf, 1990)

Um teto todo seu foi escrito por Woolf em 1929 – apenas nove anos após as mulheres conquistarem o direito ao voto na Inglaterra. Considerada ainda hoje um expressivo grito de liberdade feminista, essa obra problematiza os impedimentos e interrupções interpostos às mulheres na produção literária ou científica da época. Por meio de sua escrita marcada pelo gênero, Woolf produziu sentidos contrários aos regimes de verdade estabelecidos e respaldados institucionalmente/socialmente, percebidos depois por Deleuze (1997) como um devir capaz de impregnar a cultura patriarcal.

A história imaginada por Smirnoff, como ela mesma relata, dialoga com a escrita feminina de Virginia Woolf que, diante das sucessivas interrupções às quais as mulheres estão submetidas na esfera familiar, anuncia a necessidade de elas terem “um teto todo seu” como pressuposto para investir e/ou concluir seus processos de criação. Um teto que, nesse caso, tem a ver com o cuidado de si mesma, que envolve o tempo do pensamento e da expressão da subjetividade.

Rompecabezas não é, no entanto, mais uma história de submissão, em que as mulheres limitam-se a fazer pudins, costurar meias, tocar piano ou bordar sacolas - como ironizara Woolf sobre as tarefas femininas que as distanciavam da escrita (Woolf, 1990). Smirnoff não descarta a dimensão das sujeições às normas de gênero explícitas em sua obra, mas explica que esse não foi seu objetivo com o filme, senão apontar para as possibilidades que as pessoas conseguem criar nas condições mais ínfimas e aparentemente imutáveis. Ela ressalta que, apesar de a Argentina ainda ser um país culturalmente machista, com muitas mulheres vitimadas pela violência de gênero (como acontece em grande parte da América Latina), elas não aparecem no filme como tema principal, mas como ideia de fundo. Assim, sua intenção foi abordar a relação da personagem consigo mesma, na direção de seus impedimentos subjetivos, mais do que expor a questão da hierarquia propriamente dita:

“Creio que o problema são as prisões cotidianas, não são as de fora, mas aquelas construídas por cada uma. Então o problema da minha protagonista não é o que pensam dela, mas o que ela pensa de si mesma, do que ela se priva e do que ela se permite.” (Entrevista concedida à pesquisadora)

 

3.      Um teto quase seu

O gosto pelo passatempo que nomeia o filme não determina o total atrelamento da personagem àquele presente de aniversário nem ao espaço doméstico. À medida que adquire o tempo para si com as pausas para o quebra-cabeça, Del Carmen inicia também uma expansão subjetiva, perceptível na composição das cenas seguintes fora de casa. Se antes a sequência dos planos compunha um aspecto escuro e sombrio – no qual a personagem estava sempre envolta por paredes, portas, cercas e pessoas às quais se obrigava a dar atenção, no decorrer da narrativa há uma modificação proposital. Quando Del Carmen sai em direção ao trem que liga o subúrbio onde mora com o centro da capital argentina, a abertura da câmera e a luminosidade do dia nos convocam para, juntamente com a personagem, adentrar uma nova perspectiva, do lado de fora, experimentando a sensação de liberdade e amplitude.

- No trajeto para tomar o trem entre o subúrbio onde mora e o centro da capital, Del Carmen adentra espaços abertos e iluminados que remetem à ideia de expansão e liberdade. Cena do filme Rompecabezas.

 

No percurso até a loja especializada em quebra-cabeças, cujo endereço Del Carmen consegue sutilmente com a tia que lhe presenteara com o jogo, a personagem movimenta-se agora a largos passos pelas ruas, com o balanço do trem, misturando-se com a multidão, e, já na loja, deslumbra-se com a quantidade de jogos, de todas as cores e tamanhos. São caixas que indicam mil, duas mil peças - um tesouro que coloca um largo sorriso no seu rosto, até então ausente desde o início da narrativa.

Após a aquisição dos jogos, Del Carmen detém-se diante de um anúncio improvisado, feito por alguém chamado Roberto, que procura companhia para um torneio de quebra-cabeças. Ao entrar em contato com o responsável pelo anúncio, a personagem começa a construir relações a partir de suas paixões e afinidades, algo que acontecia antes como obrigação familiar. Sua comunicação com o anunciante acaba por ser realizada com a mediação da atendente de um locutório - uma vez que ela mesma não possui endereço de e-mail, o que a evidencia como uma figura deslocada em um mundo tecnológico. “ - Sou muito boa no assunto e posso ter utilidade”, segue ditando a mensagem a ser enviada. Ao perceber que a atendente não a compreende, ela justifica-se: “ – (...) em um dia armei um quebra-cabeças de mil peças”, exibe-se em um misto de simplicidade e orgulho.

Del Carmen acaba conhecendo Roberto, um milionário metódico que vive em um casarão de arquitetura histórica. Conhecedor de aromas, sabores e, principalmente, quebra-cabeças, ele a convida a treinar em sua casa para o campeonato nacional, cujo prêmio seria uma viagem à Alemanha, onde se realizaria a competição mundial. Essa empreitada a leva a realizar o mesmo percurso de trem duas vezes por semana em um clima de clandestinidade, pois omitira o fato para a família mediante a desculpa de que estava cuidando de uma tia recém-operada. Essa omissão, para Smirnoff, compõe o processo de individualização da personagem em busca de um espaço próprio:

“Ela descobre algo novo de si mesma. Ela descobre uma paixão que a leva a descobrir algo desconhecido que até então ela não sabia. E pra mim também é fundamental ter segredos das paixões. Elas são muito frágeis e às vezes têm que ser ocultadas para que possam ser vividas. Por exemplo, se em algum momento criticassem à María del Carmen por montar quebra-cabeças, ela não ia mais poder fazer isso – a única maneira de fazer era ocultando, e por isso toda a mentira [...]”(Entrevista a Natalia Barrenha)

Montar quebra-cabeças torna-se uma atividade à qual a personagem vai dedicar toda sua atenção no decorrer da narrativa, mesmo tendo claro que não iria para a Alemanha caso ganhasse a viagem como prêmio no torneio de quebra-cabeças. Nesse processo, seu esposo Juan (Gabriel Goity) e os dois filhos já adultos começam a estranhar a mudança repentina da mãe: ela atrasa a comida, se esquece de comprar o queijo, passa horas do dia distante, juntando as peças dos jogos. O filho mais novo é o membro da família mais próximo da personagem, à medida que se distancia dos valores sociais e familiares: é mais destituído dos códigos masculinos, não compactuando com o discurso meritocrático, adepto do vegetarianismo e da culinária, tendo por objetivo principal uma viagem a Índia.

Para Smirnoff, o problema de Del Carmen não está exatamente no fato de sua permanência na atividade doméstica, mas no distanciamento de si mesma enquanto se dedicava ao funcionamento da casa e ao cuidado com o outro. Nesse sentido, a personagem:

“É uma mulher que tem essa condição de se realizar dando-se aos demais. O que acontece é que isso tem um custo alto de falta de realização em um plano mais pessoal, não porque sua vida foi horrível, porque ela pode até ser feliz com sua família, se completando na alegria dos demais...A descoberta do quebra-cabeça veio como algo que lhe faltava, e assim ela começa a entrar em um universo que não pode conter, uma vez que tudo o que a tem reprimido era ela mesma.” (Entrevista a Dias de cine)

A poética feminista no filme de Smirnoff pode, assim, ser alinhada à perspectiva foucaultiana do cuidado de si, que seria um ascetismo, não no sentido da renúncia, mas algo como “o exercício de si sobre si mesmo através do qual se procura se elaborar, se transformar e atingir certo modo de ser” (Foucault, 2006ª: 265). Foucault desenvolve o tema do cuidado de si a partir de suas análises sobre o pensamento filosófico greco-romano na Antiguidade, que teria priorizado, durante aproximadamente oito séculos, a ética como prática racional da liberdade, cujo eixo repousava no imperativo “cuida-te a ti mesmo” (Ibidem, p.268). Nesse sentido, cuidar de si implicava conhecer a si mesmo e também cuidar dos outros, embora o primeiro tenha prioridade na análise do filósofo, pois, como ele mesmo explica, “não se deve fazer passar o cuidado dos outros na frente do cuidado de si; o cuidado de si vem eticamente em primeiro lugar, na medida em que a relação consigo mesmo é ontologicamente primária” (Ibidem: 271).

A experiência das antigas práticas de si encontradas por Foucault (2006) foram escamoteadas com o advento do cristianismo e das formas jurídicas. As análises sobre ela servem de inspiração para interrogarmos as relações dos indivíduos com a verdade e vislumbrarmos modos de viver mais livres, apesar dos discursos médicos, políticos e religiosos que interpelam os sujeitos nas sociedades contemporâneas. Nessa direção, Rago (2008:166) lembra que também as questões feministas encontraram guarida em tais análises, pois o leque de problematizações aberto por Foucault, ao trazer elementos para interrogar os códigos dominantes e para a construção de novos modos de subjetivação, convergiu com os objetivos da política feminista.

Se a insegurança ante a independência dos filhos compõe as angústias de mulheres como Maria Del Carmen, é possível ver a dissipação gradual de seus temores em cenas como o momento em que ela propõe ao marido um fim de semana em Chascomús, a fim de empreender a venda de um terreno, na intenção de ajudar os filhos a adquirirem suas casas. Na mesma viagem ela revela a Juan que irá participar de um concurso de quebra-cabeças, e quando ele, como resposta, cai em uma gargalhada incontrolável, ela o desafia, impondo-se como uma pessoa de vontades e desejos próprios. Como propôs Smirnoff, ali a protagonista já havia iniciado o princípio de sua autodescoberta e estava mais segura, podendo confrontá-lo em suas escolhas, algo que, em outro momento, a teria destruído.[2]

Diante de tais análises, é possível dizer, ainda, que Rompecabezas digladia com o que Betty Friedan  (1971), na década de 1960, chamou de “mística feminina” – em sua imposição de opor casamento e profissão - ao distanciar a personagem do imaginário da dona de casa ideal, sem, no entanto, fazer do “mal sem nome” o centro do seu conflito [3]. Sua história não passa pelo investimento em uma libertação, mesmo porque a diretora não acredita que a personagem estava presa às atividades domésticas ou que vivia a contragosto realizando tarefas que lhe causavam aversão. Sua abordagem vai por outra perspectiva, constituindo-se em uma história minimalista, que investe no tempo do cuidado de si como possibilidade de pequenas transformações, que ao iniciar no âmbito subjetivo, tem o poder de afetar aqueles/as que estão ao seu redor e, ainda, aquelas/es que recebem a mensagem do filme. Na contramão dos ideais românticos hollywoodianos, o filme vai ao encontro dos passos sugeridos por Friedan às mulheres que vivem a cena doméstica para traçar um novo plano de vida; dentre eles estaria “encarar o casamento como ele de fato é, pondo de lado o véu de glamour imposto pela mística feminina” (Friedan, 1971: 294).

 Apesar de acabar envolvendo-se rapidamente com o parceiro de jogo na noite em que vencem a competição, a personagem não é interpelada por discursos românticos ou por ideais de amores salvacionistas. Ela não vai para a Alemanha, despedindo-se do mundo luxuoso do colega, do qual ela nunca fizera parte realmente. Para a diretora, a ideia era que a personagem pudesse se reinventar com o que ela mesma construíra no decorrer da vida e que, de alguma forma, a fazia sentir-se segura:

" A mim me parece que ela era feliz em sua casa. O que acontece é que ela precisava de espaço, que teve uma crise, algo que irá passar. Assim ela decide pela vida que é verdadeira, sem muita complexidade. Viver com alguém não é fácil, o amor não é fácil, não é um namoro - que é apenas uma fase passageira. Para mim o envolvimento dela com o milionário nunca aconteceria, sempre foi totalmente falso." (Entrevista à pesquisadora)

Para Smirnoff, o que lhe chama a atenção são as histórias simples, cotidianas, os detalhes, que sempre possuem uma grandeza pela importância das conexões que proporcionam, inclusive com suas próprias experiências. Poetizar a simplicidade cotidiana de uma dona de casa de 50 anos é relatado por ela como um repensar sobre si mesma, seus valores e prioridades, que passam pela reelaboração do ideal de feminilidade e pela mudança de concepção sobre a vida, que vão interpelando as mulheres com o passar da idade, o que as leva a eleger algo novo a partir do que já existe:

" Aos 30 eu passei a desfrutar da totalidade das coisas, com calma. E observando a mim mesma fico imaginando as mulheres de 50 e essa mudança. Ainda me preocupa ou me sobrevoa a ideia de ser linda, não ser linda, ou de ser gorda ou não ser gorda, enquanto as mulheres de 50 começam a pensar em outros assuntos, pois já viveram certas coisas, já se foi a ansiedade, já se passou pela decadência. Parece-me que é outra sabedoria (...) Eu acho que ante essa mudança elas devem ver uma oportunidade de eleger algo novo, e assim transformar algo profundo de si mesmas." (Entrevista a Natalia Barrenha)

Como ressaltado por Kaplan (1995:18) sobre a importância das mulheres no cinema, não se trata de abordar a filmografia feminina para tentar construir uma narrativa paralela à história tradicional masculina, mas de defender

“[...] a possibilidade da experiência sensual/física ser capaz de ‘abrir brechas’ no discurso patriarcal, deixando aberta uma possibilidade de mudança”.

Essa é uma tarefa que perpassa a intenção desta análise, na qual se tenta construir aberturas possíveis por meio dos discursos cinematográficos dominantes, atravessados pela hierarquia de gênero.

É nesse sentido que a poética feminista adentra sutilmente a narrativa de Natalia Smirnoff, de forma silenciosa e muito preocupada com os detalhes. O tempo transcorre lentamente e há o esboço de uma política do silêncio, próximo ao que foi observado por Kaplan em sua análise sobre os filmes feministas europeus das décadas de 1970 e 1980, nos quais o silêncio foi observado por ela como estratégia de resistência feminina.[4]

A personagem de Rompecabezas, ao vencer o campeonato, segue consolidando seu processo de construção de um espaço particular. Na simplicidade de sua vida suburbana ela não poderá ter uma sala de jogos equipada como a do ex- parceiro de campeonato, mas pôde transformar o quartinho de despejo de sua casa em uma espécie de estúdio particular, livrando-se do caos que ali havia se estabelecido devido aos objetos sem uso acumulados durante anos. Ela passa a depositar paulatinamente os pertences - que adquirira durante seu recente investimento em si mesma - sobre a desgastada estante de metal, e desse modo vão se constituindo nos objetos mais significativos para ela. A caixa decorada com a imagem de Nefertiti, o livro sobre o antigo Egito, os quebra-cabeças, a caixinha com a passagem para a Alemanha (viagem da qual ela desistira, mas cujos bilhetes são válidos por dois anos) e o troféu conquistado no torneio compõem, agora, seu pequeno espaço de autonomia conquistado dentro da casa.

 

  


A personagem admira seus pertences pessoais dispostos no quarto-refúgio que construíra como um espaço de autonomia possível. Cena do filme Rompecabezas.

 

“Rompecabezas” não trata, portanto, de grandes transformações, mas de pequenos gestos em direção ao cuidado de si, a relação com a verdade e a constituição da experiência. Nesse sentido, os percursos da personagem Maria Del Carmen compõem a poética feminista no filme de Smirnoff ao emergirem como abertura aos aprisionamentos que perpassam a constituição do sujeito feminino nas sociedades impregnadas também pelos discursos que apostam na meritocracia, estabelecendo a figura das mulheres como incansáveis profissionais bem-sucedidas, sem questionar o projeto de sociedade que nos tem sido imposto pelo acirramento do capitalismo, sob o qual acabamos nos tornando “empresas”, vigiadas por nós mesmas/os [5].

A personagem distancia-se, portanto, das qualidades valorizadas nas “sociedades de controle” (DELEUZE, 1992). Embora permaneça na família, sua inadequação expõe também a crise pela qual passa essa instituição, como qualquer outro “interior”: profissional, escolar, entre outros espaços institucionais, que integram um contexto de seres humanos “endividados”, nunca suficientemente bons diante do modelo ideal de “cidadão”.

Em sua saída possível, Del Carmen desobriga-se: da esposa e mãe ideais, da vencedora da competição, da amante do milionário. Ela busca apenas um espaço reservado para dispor das memórias acumuladas, para montar quebra-cabeças ou para simplesmente desfrutar de alguns momentos de contemplação, como sugere a amplitude desta última imagem do filme.

Maria Del Carmen desfruta dos silenciosos momentos consigo mesma, em pelno processo de cuidado de si. Cena de Rompecabezas.

 

Referências:

entrevistas

BARRENHA, Natalia . 2012. “As regras do jogo. Cineasta argentina que já trabalhou com Lucrecia Martel, estreia na direção com Quebra-Cabeças, longa sobre o poder que as pequenas coisas têm na vida”. In: Revista O Grito. Disponível no endereço http://www.revistaogrito.com/page/blog/2011/03/11/perfil-natalia-smirnoff-diretora-de-quebra-cabecas/ Acesso em dezembro de 2012.

'Rompecabezas' de Natalia Smirnoff. Días de cine. Entrevista realizada em 06 de maio de 2011. Vídeo disponível em http://www.rtve.es/alacarta/videos/noticias/dias-cinerompecabezas-natalia-smirnoff/1092767/ Acesso em dezembro de 2012.

SELEM, Maria Célia Orlato. Entrevista com Natalia Smirnoff. San Telmo, Buenos Aires, em maio de 2011.


AKERMAN, Chantal . 2005. “La heladera esta vacía. Podemos llenarla”. In: Chantal Akerman. Uma autobiografia. Buenos Aires: Malba.


BARRENHA, Natalia . 2012. “As regras do jogo. Cineasta argentina que já trabalhou com Lucrecia Martel, estreia na direção com Quebra-Cabeças, longa sobre o poder que as pequenas coisas têm na vida”. In: Revista O Grito. Disponível no endereço

http://www.revistaogrito.com/page/blog/2011/03/11/perfil-natalia-smirnoff-diretora-de-quebra-cabecas/ Acesso em dezembro de 2012.


DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1990. Kafka. Por una literatura menor. Segunda reimpressão. México: Ediciones Era.


_________ 1997. “Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível”. In: Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Editora 34.


_________ 1992. "Post-scriptum sobre as sociedades de controle". In: Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34.
'Rompecabezas' de Natalia Smirnoff. Días de cine. Entrevista realizada em 06 de maio de 2011. Vídeo disponível em

http://www.rtve.es/alacarta/videos/noticias/dias-cinerompecabezas-natalia-smirnoff/1092767/  Acesso em dezembro de 2012.


FOUCAULT, Michel. 2006. Ética, sexualidade, política. Ditos & Escritos: Forense Universitária, Volume V.


FRIEDAN, Betty. 1971. Mística feminina. Petrópolis: Editora Vozes Limitada.


KAPLAN. E. Ann. 1995. A mulher e o cinema. Os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco.


RAGO, Margareth. 2001. “Feminizar é preciso. Por uma cultura filógina”. São Paulo em perspectiva, Scielo, vol 15, n. 03, jul/set. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392001000300009  Acesso dezembro de 2009.


_________ 2008. Novos modos de subjetivar: a experiência da organização Mujeres Libres na Revolução Espanhola. Revista Estudos Feministas, v. 16.


SCOTT, Joan. 1990. “Gênero. Uma categoria útil de análise histórica”. Revista Educação e realidade. Porto Alegre. Jul-dez, V. 16, n.02.


SELEM, Maria Célia Orlato. Entrevista com Natalia Smirnoff. San Telmo, Buenos Aires, em maio de 2011.


WOOLF, Virginia. 1990. Um teto todo seu. Circulo do Livro. Tradução de Vera Ribeiro.

nota biográfica:

 Maria Célia Orlato Selem é doutora em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Campinas e mestre em Estudos Feministas e de Gênero pelo PPGH da Universidade de Brasília. Publicou “ ‘Que tan lejos’: Uma viagem rumo à descolonização do feminino” no livro Paisagens e tramas: O gênero entre a história e a arte.


 

[1] A diretora refere-se à comparação realizada pela imprensa quando da apresentação de “Rompecabezas” na Espanha. Seu filme teria sido comparado com a película anglo-americana “As horas”, de Stephen Daldry, correlacionando-o, ainda, a outras produções que abordavam momentos de angústia existencial feminina. (Entrevista à pesquisadora realizada no café Britânico, bairro de San Telmo, Buenos Aires, em maio de 2011)

[2] Em entrevista à pesquisadora.

[3] Profundamente incomodada após um encontro com ex-colegas do Smith College, quando constatou que suas antigas companheiras de escola haviam se tornado donas de casa insatisfeitas, Betty Friedan desenvolveu uma pesquisa a fim de perscrutar o fenômeno que ficou conhecido por meio da imprensa da época como “mal sem nome” - que seria essa insatisfação ou sentimento de incompletude das donas de casa norte-americanas após o retorno ao lar com o evento do pós-guerra. Interrogando os discursos midiáticos da época, que atribuíam o problema a eventos superficiais e reforçavam a patologização das angústias femininas, utilizou-se das entrevistas com as mulheres que vivenciavam tais crises, identificando, então, a "mística feminina" como a principal causa de tais problemas. A mística feminina consistia no ideal da mulher sadia, bonita, educada que “dedicava-se exclusivamente ao marido, aos filhos e ao lar, encontrando assim, sua verdadeira realização feminina”. (FRIEDAN, 1971, p. 19).

[4] Isso porque a questão colocada pelas feministas da época, segundo a autora, era driblar a linguagem masculina, identificada como um instrumento que aliena as mulheres de si mesmas (KAPLAN, 1995, p.136). Assim, as diretoras feministas independentes utilizavam da imobilidade e do silêncio das mulheres como resistência ao sistema patriarcal que operava também pela linguagem.

[5] Utilizando-me da discussão de Deleuze sobre as sociedades de controle.

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier/ juin / 2014  -janeiro/junho 2014