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janvier/ juin / 2014  -janeiro/junho 2014

 

Da gordinha à obesa. Paradoxos de uma história das mulheres

                                                                       Denise Bernuzzi de Sant’Anna

Resumo:

O texto trata de alguns aspectos da transformação histórica, ocorrida ao longo do último século, entre os significados atribuídos às várias mulheres gordas e a definição de obesidade. Destaca a tendência em naturalizar os regimes emagrecedores e a insistência em considerar o corpo feminino um território propício aos investimentos publicitários.

Palavras-chave: corpo, obesidade, mulheres

 

 

Numa matéria recente da revista Glamour, intitulada Manual de autoajuda das férias, um dos conselhos para as mulheres que pretendem ir à praia com “quilos a mais”  é o seguinte:

“Enturme-se com crianças e fique o tempo todo fazendo castelinhos de areia com elas usando um vestidinho leve. Se sentir muito calor, peça para uma das criancinhas encher um balde de água e jogar em você, mas se o calor não passar, faça os pequenos cavarem um buraco e te enterrarem. Só com a cabeça para fora da areia, ninguém percebe que você ganhou uns quilinhos, além de ser a tia mais legal da praia.” [1]

A famosa “prova da praia” reprova todos os anos um mar de mulheres. Nunca ninguém soube ao certo quem aplica a suposta avaliação. E, felizmente, muita gente vai à praia sem constrangimento de expor um corpo considerado fora dos padrões. Entretanto, a publicidade de cosméticos investe massivamente nessa imaginária prova, aguçando e necessidade de vigiar a própria aparência com uma tenacidade de fazer inveja aos policiais.

Numerosos conselhos destinados às mulheres e divulgados pela imprensa e pela televisão concordam com a necessidade dessa vigilância, especialmente quando o corpo se expõe em trajes de banho. Supõe-se que nada escaparia aos olhares dirigidos às silhuetas banhadas pela luz solar: qualquer ponta de celulite, todos os quilos a mais ou músculos a menos, além de manchas e flacidez estariam flagrantemente expostos à crítica alheia. O pior é que, segundo aqueles mesmos conselhos, esta revelação da aparência física ainda corre o risco de dar lugar a outras, mais profundas, tais como a suposição de que corpos fora do padrão estariam em desacordo com a vida moderna, indicando uma vontade fraca, “baixa autoestima”, alguma doença, pobreza ou mesmo falta de higiene. 

Fica a impressão de que, de dentro das páginas ilustradas de revistas dedicadas à melhoria física, soa um toque terrorista a cada verão, junto com uma espetacular publicidade de produtos e serviços. Por isso, a fórmula “prepare-se para o sol” - que poderia ser um aviso com gosto de descanso e contentamento, pois coincide com férias, calor, possibilidade de se divertir e repousar - evoca um rol imenso de tarefas a cumprir, com muita disciplina e inabalável esforço: é preciso fazer dieta, nutrir a pele e os cabelos, empenhar-se em exercícios físicos, decidir por cirurgias plásticas, depilações, escova progressiva, ingestão de cápsulas para melhorar o bronzeamento e tantos outros tratamentos que incluem diferentes intervenções no corpo, externas e internas, muito gasto de dinheiro e tempo. Ou seja, para tirar a roupa e expor o corpo quase nu em praias e piscinas é preciso um longo e custoso preparo. Até recentemente na história, era necessário um longo e custoso trabalho para se vestir. Atualmente, o fardo também é de peso para quem quer se despir.

Especialmente depois da década de 1960, o verão vem sendo anunciado como a época áurea para provar a excelência física valorizada pela publicidade. Evidentemente, os homens não são poupados de tal tarefa. A busca de uma aparência jovem e obediente aos padrões da moda tende historicamente a recair sobre ambos os sexos. Entretanto, é sobre as mulheres que as inúmeras expectativas de ter um corpo “em forma” e sem as marcas da velhice, recaem com maior naturalidade e rigor.

Há mais de um século, o corpo feminino transformou-se em figura preferencial para a venda de cosméticos, além de equipamentos e serviços relacionados aos cuidados com a aparência. Diversos estudos reconheceram o quanto essa tendência ameaçou a liberação feminina. Para a autora americana Naomi Wolf, por exemplo, a beleza vendida pela mídia é um mito que não tem relação com as mulheres e acaba por ameaçar a sua autonomia, duramente conquistada (Wolf, 1991:17). Já a jornalista Alex Kuczynski defendeu que as mulheres são incessantemente ameaçadas pelo risco de se tornarem viciadas em embelezamento, numa época na qual a cirurgia plástica se tornou o principal sonho americano (Kuczynsky, 2006:6). Em outro estudo, também sublinhamos as implicações da longa história do dever de ser bela, transformado em direito banalizado e num trabalho cada vez mais dependente de grandes empresas de produtos para o rejuvenescimento (Sant’Anna, 1994; 2012). No texto que se segue, propomos uma reflexão sobre um dos aspectos desse antigo dever, progressivamente transformado num dos piores inimigos, tanto da beleza quanto da saúde: a obesidade.[2]

Da cintura de pilão à barriga zero

No começo do século XX, a prova da praia ainda não era conhecida. Mas existiam outras exigências referentes à silhueta feminina, tais como uma postura ereta e uma forma física semelhante à das ampulhetas, admirada nos passeios públicos, saraus, bailes e outras ocasiões nas quais as roupas e os espartilhos eram os grandes responsáveis pelo embelezamento. O uso dos produtos de beleza devia ser acompanhado por uma boa dose parcimônia, uma rígida observação moral, além de limitarem-se às jovens em idade de encontrar um bom partido. A cintura fina era uma exigência antiga, procurada especialmente nas jovens solteiras. “Cintura de pilão” foi uma qualidade amplamente admirada durante décadas, até ela ser atualizada por outras necessidades: a partir dos anos 60, tornou-se feio ostentar alguma saliência e um pouco de flacidez logo abaixo do umbigo. Mas o mais inusitado foi o fato dessa exigência abarcar mulheres de todas as idades.

Mesmo antes da invenção da “barriga negativa” atualmente divulgada em textos e imagens como modelo de excelência corporal para ambos os sexos ( o vocabulário desta exigência é criativo, pois há também a “barriga zero”, a “barriga chapada”, a “barriga tanquinho”...), houve uma história de progressiva desvalorização dos vários tipos de gorda, paralelo ao aumento de expressões designando as barrigas julgadas belas porque praticamente inexistentes. Percebe-se isto, primeiramente, pelo empobrecimento do vocabulário sobre as gordas. Na primeira metade do século passado, lia-se na imprensa sobre gordinhas, rechonchudas, robustas, verdadeiramente gordas, obesas, mas também tipos “mignon”, roliças, cheinhas de corpo, além de haver gordas leves e lépidas, gordas más e gordas boas, gordas em algumas partes e não em outras. Não havia por assim dizer “a gorda”. Existiam gordas de vários tipos e personalidades, saudáveis ou não.

Em segundo lugar, as gordas nem sempre eram associadas à obesidade. Esta última, por sua vez, ainda referia-se preferencialmente à uma grande e pesada barriga. Na década de 1920, um dos primeiros anúncios de remédios para o emagrecimento, chamado Pílulas Galton, costumava mostrar o desenho de um casal, ambos com uma barriga proeminente. A gordura a ser reduzida dizia respeito em grande medida ao volume do ventre. Nessa época, os exercícios localizados para reduzir a barriga eram mais difundidos do que aqueles, aeróbicos, para a perda geral de peso. Entretanto, as referências cinematográficas e publicitárias que valorizavam um corpo feminino longilíneo e leve tornaram-se cada vez mais importantes. A atriz Louise Brooks foi um marco da voga dos corpos aerodinâmicos, presentes em toda a propaganda da moda, ilustrando uma nova liberdade dos movimentos, cuja exposição supunha uma ousada descontração moral. Corpos volumosos não cabiam nessa voga de silhuetas que lembravam a leveza dos vestidos retos e a velocidade dos modernos bólidos de corrida. Tudo se passa como se a liberação feminina exigida por algumas mulheres que reivindicavam direitos iguais no sexo e no trabalho, fosse interpretada pela indústria da moda como tendo uma aparência mais magra do que gorda.

Na década seguinte, quando o primeiro número da revista Marie Claire foi publicado na França, as silhuetas femininas da “última moda” já exibiam pernas mais longas e finas do que as beldades representadas nas décadas passadas. Segundo Vigarello, doravante, a cada estação, uma silhueta nova será valorizada na vulgata publicitária. (Vigarello,2012:116) As roupas terão de seguir as linhas e os volumes do corpo, mais do que moldá-lo. De fato, um intenso trabalho de modelagem física será cada vez mais exigido dos exercícios e das dietas. Mas, como é óbvio, entre as imagens publicitárias e a realidade de milhares de mulheres há não apenas uma distância. Há inúmeros descompassos. Entre eles, destaca-se a tendência em resistir ao abandono das cintas, no Brasil traduzidas pelo nome de “cinturita”, uma espécie de pequeno espartilho utilizado para forçar a cintura a afinar. Ou, ainda, a permanência, ainda hoje, do uso de cintas maiores, de calças-cintas, que comprimem uma parte do abdômen e do quadril, escondendo por trás das roupas volumes do corpo considerados feios.

Assim, a mudança maior talvez tenha sido a quantidade de mulheres progressivamente incluída na necessidade de ter uma aparência “enxuta”. O livro da americana Veronica Dengel, traduzido no Brasil com o título “Agarre seu homem”,  foi um entre os vários especializados em dar o aviso: “o seu talhe ditará o tipo de cinta que mais lhe convém, entretanto, não vá pensar que, por ser jovem e esbelta, você não precisa de nenhuma. Um talhe sem cinta raramente é sedutor”(Dengel, 1949:116). Ou seja, todas as mulheres devem usar cinta, assim como hoje é proclamado que todas devem fazer ginástica ou outra atividade física e esportiva. Christian Dior, dois anos mais tarde, ao lançar o New Look, consagrou a associação entre cintura fina, elegância e feminilidade no terreno da moda internacional. Aqui, também, a atenção à cintura fina foi confirmada.

Permanência histórica conhecida: a valorização da cintura fina indica também uma certa pureza, aproximando as mulheres da imagem de menina ou da jovem que ainda não teve filhos. Poesias e músicas evocaram as mais variadas cinturas finas como se estas fossem um convite irrecusável ao enlace e aos aconchegos do amor. Conforme uma popular canção de Luiz Gonzaga, “vem cá cintura fina, cintura de pilão, cintura de menina”.

Mas, a partir de 1960, ocorreram várias transformações na maneira de perceber aquela parte do corpo assim como toda a sua estética. No mundo da moda, por exemplo, as calças no estilo Saint Tropez soltaram a cintura convidando-a juntamente com a voga dos biquínis a exibi-la nua, em contraste com os quadris e nádegas presos dentro de jeans desbotados e enfeitados. Calças de cintura baixa, que voltaram à moda em 2000, exigiram, segundo as manequins dos anos 60 e 70, uma barriga firme, magra e, de preferência, bronzeada. Deixava de ser suficiente uma cintura de pilão. Era preciso que abaixo da linha da cintura, toda a forma do ventre fosse desprovida de qualquer traço de flacidez ou volumes que ousassem avançar para além do cós das calças, abaixo do umbigo.

Isto pode parecer um detalhe sem importância mas é nele justamente que se pode observar uma mudança curiosa na história da busca pela excelência corporal feminina: com o cós baixo e a cintura livre, era preciso criar um espartilho natural, às custas de dieta e ginástica. Os biquínis confirmaram tal necessidade. A barriga feminina precisou de cuidados estéticos inusitados, exigindo uma vigilância cotidiana, quase tão tenaz e rigorosa quanto aquela tradicionalmente dirigida ao rosto.

Na década de 1960, ainda tratava-se de fazer mais dieta do que ginástica. Não demoraria muito para que a exigência do exercício físico aumentasse e fosse considerado tão natural quanto a adoção de um regime emagrecedor. É quando a difusão de receitas para emagrecer e acabar com a gordura abdominal foi significativamente intensificada. É, também, quando foram produzidos os primeiros adoçantes artificiais, assim como os alimentos “diet”. Desde então, a propaganda sobre as delícias dos alimentos diet e comidas light generalizou-se entre as várias regiões do país.

O fim de uma época e o antigo problema da obesidade

Em 1970, Sérgio Jockyman escreveu a novela intitulada "A Gordinha". Tratava-se da história da personagem chamada Mônica, interpretada por Nicete Bruno, uma mulher de temperamento dócil e extrovertido. Monica morava com a mãe, e trabalhava como secretária. Ela tinha um problema singular: sempre que comia pipoca, seu comportamento era radicalmente alterado. A novela não sublinha as patologias da obesidade, hoje amplamente divulgadas. A gordinha correspondia a um tipo físico que não escapava à normalidade devido a um suposto excesso de peso, mas sim porque a pipoca lhe provocava uma reação esdruxula. Mônica era singular devido a esta reação e não por causa de seu peso ou volume corporal.

Esta novela coincidiu com o fim de uma extensa época na história das gordas: durante séculos, elas viveram sem saber o que era o controle diário do próprio peso. Deduzia-se a magreza ou a gordura pelas roupas largas ou apertadas, ou seja, pelo volume corporal, especialmente na altura do ventre. As costureiras testemunhavam as mudanças nas aparências físicas, muito mais do que um instrumento técnico chamado balança. Entretanto, com a massificação da “roupa comprada pronta”, paralela à banalização da experiência de pesar o corpo e controlar o seu peso cotidianamente, criou-se uma nova faceta da identidade individual, baseada na quantidade de quilos ganhos ou perdidos, e nos números de cada peça do vestuário. Assim, por exemplo, a informação de que alguém pesa 60 quilos e veste tamanho 44 deixou de ser uma abstração para se tornar uma realidade identitária. Esta tendência floresceu no Brasil juntamente com a divulgação do biquíni, da moda das calças Saint Tropez e do estabelecimento das balanças da marca Filizola nas drogarias. A presença dessas últimas, cada vez maior dentro e fora das residências, contribuiu para aumentar o receio de engordar.

Conforme já foi sugerido, em antigos elogios à mulher brasileira, vindos da imprensa e da literatura, cabia uma multidão de corpos roliços, baixinhos, gordinhos, cheinhos, ou, ainda, imagens de mulheres robustas, “fortes como touros”, corpulentas, expressando valentia e uma dose considerável de saúde. Podiam ser associadas ao pecado da gula, ao exagero nos prazeres à mesa; algumas eram vistas como balofas e debochadas, outras, ainda, tendiam a ser consideradas apenas gordinhas, rechonchudas, bem alimentadas. Às vezes, a gordura traçava desenhos muito formosos em meio às curvas, tradicionalmente elogiadas em publicações de natureza erótica, ou sugeriam um temperamento generoso e alegre.  Entre 1908 e 1915, por exemplo, gordas de vários tipos foram motivos de elogio na coluna intitulada Esbocetos, da revista mundana Fon-Fon, publicada no Rio de Janeiro. Em outras revistas, também se considerava normal ter ciúmes das gordinhas, pois algumas podiam ser muito apreciadas pelo sexo oposto.

> Entretanto, a história das aparências físicas é complexa e pouco linear. A aversão aos gordos é antiga, tanto quanto a prescrição de regimes emagrecedores. Por exemplo, nos Estados Unidos um médico chamado Leonard Williams (1861-1939) escreveu um livro intitulado “Obesidade” no qual as pessoas muito corpulentas eram associadas a um caráter ávido e repulsivo (Williams, 1926). Para Williams, ninguém tinha o direito de ser gordo. Ele confirmava, desse modo, a tendência, mais tarde generalizada, de que os gordos deviam ser excluídos dos espaços dentro da lei e da norma. Por estarem demasiadamente submetidos às vontades e gulas próprias, eles não sabiam, nem queriam respeitar as regras da cultura na qual estavam inseridos. Ou seja, os gordos seriam avessos à partilha cultural, à vida em comum.

> O termo obesidade  teve um de seus primeiros usos no século XVII, num livro sobre dietas e humores de Tobias Venner, para quem ela era uma doença (Gilman, 2008:19). Depois de meados do século XVIII, a comparação entre a corpulência das diversas culturas foi analisada por médicos europeus. No século seguinte, o livro La Physiologie du goût, de Brillat-Savarin, publicado em 1826, garantiu uma parte significativa da escrita para uma reflexão sobre o assunto. Assim, o que de fato marca a época contemporânea não é a aversão aos obesos ou a necessidade de combater a obesidade, mas, muito mais, uma intensa naturalização das dietas emagrecedoras e do controle do peso corporal. Ocorreu uma medicalização crescente do corpo e, principalmente, da experiência alimentar que transformou radicalmente a gravidade do problema.

> Ao mesmo tempo, a precisão hoje comum com a qual os corpos são medidos, pesados, observados e submetidos a tratamentos, é uma novidade da época contemporânea. Precisão progressiva dos instrumentos e técnicas inventados desde o final do século XIX e, principalmente, no século seguinte: Adolphe Quételet – 1796-1874 – estabeleceu novos tipos de mensuração para conhecer o peso de cada um e, desse modo, melhorar a produtividade no trabalho de todos. Quételet estabeleceu a noção de “homem médio”, integrando o peso e a altura de um corpo num mesmo cálculo. O Índice de Massa Corporal tem sua origem com Quételet e, mais tarde, será por meio dele que muitos gordos tenderam a ser vistos como obesos.

Mas foi sobretudo depois do século XX, que diversos relatos pessoais sobre as penas de ter um peso excessivo começaram a aparecer com maior frequência na imprensa, expressando o sofrimento de viver uma situação paradoxal: “dentro de um corpo” historicamente transformado em algo tão precioso como outrora havia sido a alma, mas, ao mesmo tempo, enfrentar o sentimento ter sido traído por ele, na medida em que a aparência física foge do padrão de beleza e elegância vigentes.  Exemplar a este respeito é o famoso livro do francês Henri Béraud, intitulado “Le martyre de l’obèse”, de 1922. Marco na literatura dos obesos, o autor narra as desventuras de ser pesado e volumoso numa época em que o sucesso e a alegria já pareciam habitar unicamente os corpos magros e leves. Várias vezes, as narrativas referentes aos sofrimentos do obeso incluíram a dor de “carregar um corpo”, especialmente quando se tem a prova de que o emagrecimento exige mudanças radicais no modo de vida.

Todavia, antes do livro de Béraud, o sentimento paradoxal de viver comprimido entre o corpo que é tido como um bem individual precioso e, ao mesmo tempo, um fardo a ser carregado solitariamente, não era completamente evidente.

Regimes e protestos

A obesidade foi declarada uma pandemia pela OMS em 2005. Evidentemente, as indústrias farmacêuticas têm um enorme interesse nessa declaração. Se há uma pandemia da obesidade, divulgada de modo espetacular pelos meios de comunicação de massa, ela não ocorreu sem provocar uma outra: trata-se de uma pandemia das dietas. E o dever destas recaiu principalmente sobre as mulheres. Na década de 60, nascia nos Estados Unidos o que Claude Fischler nomeou como sendo a “lipofobia”, dedicada a diabolizar a gordura de origem animal e a promover a silhueta feminina magra como modelo de beleza e saúde (Fischler,1993: 309). Em 1979 foi desenvolvido o Eating Attitudes Test (EAT), para testar e diagnosticar transtornos alimentares, em particular, a propensão à anorexia que, como se sabe, é mais acentuada entre jovens do sexo feminino. O EAT sofreu mudanças, se tornou maior e mais complexo na década seguinte.

Antes disso, a década de 30 foi um dos momentos áureos de consagração das silhuetas femininas magras, apoiadas por diversos nutricionistas autores de manuais para a redução do peso. Nessa época, o cardiologista americano Robert Atkins era ainda uma criança. A dieta proposta por ele alcançou, nos anos 70, uma imensa  popularidade, quando então diversos “gurus” das dietas conquistaram fama e sucesso.

Entretanto “a febre das dietas” ocorreu em paralelo com a popularidade do “fast food”. Popkin mostrou que um diretor de marketing da rede Mc Donald’s dos anos 70 percebeu que uma porção maior de alimentos - especialmente de batatas fritas e uma dose maior de refrigerante - teriam um custo menor e deviam formar “o mantra” dessa empresa, pois tratava-se de uma fórmula bastante atraente e lucrativa(Popkin, 2009:36). A estranha combinação entre ênfase no fast food e voga do emagrecimento desencadeou como consequência um leque variado de protestos e também de adesões. Em meio à transformação da alimentação num dos temas mais polêmicos da atualidade – a rivalizar com aquele do prazer sexual – foi criado o movimento Fat is beautiful, uma tentativa de contrariar a norma do corpo leve e magro.

Na década de 1970, nos Estados Unidos, foi criada a National Association to Advance Fat Acceptance e, em 1979,  a expressão Big Beautiful Women foi cunhada por Carole Shaw , fundadora de uma revista para as mulheres gordas. A partir daí, surgiram os concursos de misses “plus size”, blogs e sites de valorização dos gordos e gordas de vários tipos e nacionalidades. Surgiram, também, diversas organizações em torno dos estudos e tratamentos da obesidade, tais como a Abeso, - Associação brasileira para o  estudo da obesidade e da síndrome metabólica – fundada em 1986 e filiada à Flaso - Federación Latinoamericana de Estudios sobre la Obesidad) desde 1987, assim como à IASO (International Association for the Study of Obesity) desde 1996.

Trabalhos acadêmicos que criticam a transformação da obesidade em experiência de exclusão, ou que sublinham as causas sociais e econômicas das compulsões alimentares contemporâneas tenderam, desde 1970, a conquistar um espaço inusitado em vários domínios das ciências humanas. Por exemplo, Kathleen Lebesco, escreveu um livro sobre a transformação da obesidade em patologia que atinge sobretudo mulheres de descendência africana e mexicana nos Estados Unidos (Lebesco, 2004). Estigma racial, proximidade com a paisagem eugênica conhecida no passado, a obesidade passou a ser um importante objeto de estudos nas ciências humanas, um tema chave para perceber os limites da sociedade industrial contemporânea.

Um dos aspectos mais instigantes desses estudos está na relação entre obesidade e cultura alimentar. Claude Fischler, por exemplo, trabalhou principalmente as relações entre obesidade e comida. Desde a década de 1980, este sociólogo vem estudando os significados culturais da alimentação e da estética corporal. Recentemente ele mostrou o quanto as “alimentações particulares”, que dão lugar, por exemplo, às novas fobias diante da “comida saudável”,  chegam a atingir altos níveis de ortorexia, comprometendo a vida em comum (Fischler, 2013:11). Numerosos problemas relacionados à comida e às formas de alimentação contemporâneas são indicativos de outros, que ultrapassam o espaço da culinária: Fischler associa a recusa alimentar baseada nas dietas atuais à recusa de relacionar-se socialmente.

Este aspecto da atual pandemia dos regimes é essencial para questionar a relação entre comida, obesidade e sociabilidade. A duplicidade do ato alimentar - cultural e natural - explica-se, segundo Fischler, pelo fato dos alimentos nutrirem e significarem ao mesmo tempo. Seu livro intitulado “L’Homnivore”, hoje uma referência mundial sobre os temas da alimentação e da estética corporal, resume uma parte de seu trabalho e indica uma perspectiva teórica e metodológica partilhada por outros pesquisadores, tais como Georges Vigarello e Michael Pollan. Este último, dedicado a mostrar de que maneira a comida separou-se da natureza, analisa como vários alimentos tornaram-se não apenas artefatos industrializados mas foram integrados a um sistema internacional de produção com a presença de novos tipos de ingredientes químicos (Pollan, 2009:119)

Diversos textos críticos sobre a alimentação contemporânea foram publicados nas últimas décadas, aguçando a transformação da comida num tema cada vez mais problemático. Um desses complicados problemas está justamente na percepção das diferenças entre homens e mulheres considerados obesos. Caberia a pergunta: será que a obesidade, especialmente em seus estados mórbidos, dissolveria as diferenças sexuais e confundiria os gêneros? Será que por meio do peso e do volume do corpo, homens e mulheres estariam, enfim, mais próximos?

Evidentemente essas perguntas são extremas, mas são úteis para estabelecer algumas diferenças entre homens e mulheres obesos. Isto porque a obesa possui atrás de si uma trajetória histórica muito antiga, embora descontínua, que alcança a histérica do século XIX e, bem antes disso, as mulheres possuídas pelo demônio. Nessa longa história, as mulheres tenderam a beirar a não-humanidade, devido a vários excessos: primeiro pelo excesso de contatos com as forças do mal, depois pelo excesso de desejo sexual, e, agora, pelo excesso de peso e gordura. Conforme já escrevemos em outro texto, a possuída, a histérica e a obesa, apesar de suas imensas diferenças, teriam em comum uma suposta familiaridade com o que excede e ameaça jogar os homens para fora de um suposto aconchego conjugal. Hoje, ainda há o agravante de existir uma ampla economia de mercado, dentro da qual todos os desejos e quilos de um corpo precisam ser úteis e, principalmente, devem existir como investimentos lucrativos( Sant’Anna, 2013). Se assim for, no limite, pode-se ser gorda, desde que totalmente “fashion”.

Mas, dessa vez, diferente das histéricas e possuídas do passado, as obesas integram a cultura de massas, vivem nos meios populares, dentro e fora das praias. Muitas fazem regimes de tempos em tempos, pois a separação entre a norma e a revolta não é tão evidente como foi na época das mulheres possuídas, quando muitos acreditavam que o demônio estava no inferno e os anjos do bem habitavam o céu. Mas há quem não emagreça. Esta resistência ao corpo em perder peso pode ser interpretada como uma falência da antiga ambição humana de controlar a si mesmo, de resistir aos prazeres. Entretanto, segundo a maior parte dos estudos a este respeito, a obesidade concentra-se hoje nas classes sociais pobres. Aumento de peso e má alimentação forma, portanto, um par produtor de corpos volumosos e fracos.

Ou seja, a obesidade traçou laços cada vez mais fortes com a escassez de recursos, revelando ser mais facilmente produzida quando há pouca possibilidade de comer alimentos saudáveis e quando não há quase nenhum tempo para prepará-los adequadamente. A relação entre pobreza, obesidade e fast food é hoje comprovada.[3] E ela atinge sobretudo as mulheres que trabalham mais de oito horas por dia, gastam mais de uma hora diária nos transportes públicos, alimentam-se mal, pois consomem o que é mais barato e de fácil acesso. Ao chegarem em casa no final de cada dia, estão exaustas, tendo pela frente, muitas vezes, uma segunda jornada de trabalho. Não admira portanto que elas esperem da comida e da bebida tudo o que o dia lhes roubou. Não espanta que a ingestão de um refrigerante, por exemplo sirva como uma compensação imediata dos prazeres não vividos, do conforto constantemente negado, da doçura e do frescor que durante o dia lhes faltou.

Diante dessas condições, as obesas seriam menos o retrato de um suposto fracasso pessoal, ligado à decisão de seguir um regime – pois a realidade demonstra que é praticamente impossível fazê-lo -  do que a prova, não mais da praia, e sim, de uma cruel e injusta repartição dos fardos cotidianos, tanto entre as classes sociais como entre os sexos.

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Denise Bernuzzi de Sant’Anna é professora livre docente de História da PUC-SP desde 1996 e pesquisadora do CNPq. Doutorou-se na Universidade de Paris VII, em 1994, sob a orientação da professora Michelle Perrot, com uma tese sobre a história do embelezamento feminino no Brasil. Realizou pós-doutorado em 2004, sob a supervisão de Georges Vigarello, na EHESS. Foi várias vezes professora convidada desta instituição. Publicou diversos livros e artigos sobre as relações entre corpo e subjetividade contemporânea. Lidera o grupo de pesquisa intitulado “A condição corporal.


 

[2] Este texto baseia-se em nossa pesquisa financiada pelo CNPq cujos resultados serão publicados em forma de livro, com o título Uma história de peso, gordos e magros ao longo de um século. S.Paulo: Estação Liberdade, 2014.

[3] http://www.news-medical.net/news/20111103/2154/Portuguese.aspx, acessado em 20 de fevereiro de 2014.

 

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