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janvier/ juin / 2014  -janeiro/junho 2014

 

Classificações científicas da obesidade

Fernanda Magalhães

 

Resumo: Classificações Científicas da Obesidade é um projeto de criação em arte, produzido em 1997, como modo de expressar e questionar os discursos que normatizam e buscam disciplinar e formatar os corpos, especialmente das mulheres. A instalação mostra corpos de mulheres gordas que, com leveza, ocupam seu espaço. Neste artigo, descreve-se o processo de produção, questões conceituais e teóricas relacionadas ao trabalho.

Palavras-chave: Arte; Fotografia; Instalação; Gênero; Mulher Gorda

 

O projeto Classificações Científicas da Obesidade é composto de uma série de fotografias criadas a partir das tabelas utilizadas por médicos que classificam, normatizam e disciplinam os corpos das mulheres gordas. O trabalho tem como objetivo questionar os padrões estéticos na contemporaneidade.

A série é constituída por um conjunto de quarenta e oito (48) contornos dos corpos de doze (12) mulheres nuas. As imagens foram criadas a partir das tabelas que classificam estes corpos, fotografados em suas quatro faces - frente, costas, lados direito e esquerdo.

As imagens foram ampliadas em tamanho natural e montadas em um suporte leve, tendo sido recortadas, retirando-se de cada imagem a massa corpórea e deixando apenas à mostra os contornos destes corpos. A intenção foi criar uma relação entre cheio e vazio, leve e pesado. Os corpos pendurados com finos fios de nylon giram levemente sobre seu eixo, ocupando, assim, o espaço com leveza e suavidade. Desta forma, buscam provocar uma mudança nos discursos atrelados, em geral, ao corpo das mulheres gordas. 

A instalação dos corpos mostra os tipos classificados e questiona as normas e padrões impostos como modelos de consumo ao corpo das mulheres.

 

Para a construção desta instalação realizei as fotografias em estúdio para a obtenção de um fundo neutro. Os filmes coloridos foram utilizados para que o contraste entre fundo branco e a cor da pele fosse suave. Revelados os filmes e ampliadas as cópias estas foram recortadas manualmente retirando-se das imagens a massa dos corpos, restando, assim, o perfil, o contorno. As ampliações em tamanho natural para enfatizar a dimensão destes corpos e também para que estes ocupem o seu espaço. Eliminando-se a massa corpórea, mostra-se  os corpos de mulheres gordas com leveza e estes distanciam-se do peso social que carregam.

Tomei como referência, para os recortes dos corpos, os conceitos estéticos sobre linha, volume e massa defendidos no Manifesto Construtivista Russo, escrito em 5 de agosto de 1920 por Naum Gabo, o que proporcionou um paralelo entre esculturas e corpos. Gabo diz:

"[...].as forças estáticas de um corpo sólido, assim como a sua resistência material, não dependem da quantidade da massa ... não se pode medir o espaço em volume".

 

 

Gabo refere-se à construção das esculturas eliminando sua massa interna provocando um jogo no qual a ocupação do espaço não é medida pelo volume. A ideia é a construção de uma escultura sem massa, constituída apenas pela ocupação do espaço em profundidade, do volume sem sua massa, pelos seus contornos. Cria-se, desta maneira, uma leveza na obra, ainda que esta escultura continue ocupando o mesmo espaço, independente de ser cheio ou vazio.

A reflexão de Gabo pode ser utilizada quando pensamos sobre o espaço que os corpos das mulheres gordas ocupam na sociedade contemporânea, como são vistas as linhas de um corpo sinuoso, de um corpo arredondado, como se encara a massa corpórea e qual é o verdadeiro peso que estes corpos carregam.

O trabalho mostra os corpos destas mulheres gordas fotografadas como quando se vai a uma clínica de dietas. As tomadas fotográficas foram realizadas pela artista a partir das referências às imagens realizadas nos consultórios dos profissionais que costumam “tratar” destes corpos que estão fora das normas, das formas e dos padrões, entendidos como corpos doentes que precisam ser modificados.

Estas imagens realizadas nos consultórios médicos, segundo estes profissionais, tem como objetivo comparar o antes e o depois dos tratamentos. São fotografias constrangedoras para aqueles corpos que procuram ajuda para se “conformar” e são realizadas de forma “objetiva” e descuidada. Em geral, as pacientes, na maioria mulheres, mal são consultadas sobre a intenção dos “doutores” que avisam e já vão logo tirando as fotografias. Imagens estas que as pacientes, provavelmente, nunca irão ver e, muito menos, saber para que foram utilizadas.

As fotografias realizadas em clínicas especializadas antes, durante e depois dos tratamentos de emagrecimento, pretendem que estes corpos possam ser revistos, comparados e mostrem como devem se adequar aos modelos considerados ideais. Os corpos das mulheres gordas, em geral, são mostrados como corpos pesados, lerdos, lentos e doentes. Excluídos do que se considera belo, correto, rápido, ágil e produtivo, estes corpos são exibidos como um problema a ser resolvido, um corpo a ser eliminado, uma aberração. São corpos que sofrem as dores da violência, do preconceito e a negação da diferença.

A tabela científica utilizada pelos médicos endocrinologistas é denominada Classificações Científicas da Obesidade. Esta tabela classificatória existe para calcular a massa corpórea e os tipos de formas de corpos obesos e normatizam o que é o corpo considerado ideal. Ela determina as doze classificações, resultado dos dois tipos de formatos de corpo relacionados com os seis tipos de massas corpóreas. Os tipos, Andróide e Ginecóide, popularmente conhecidas como Maçã e Pêra, tratam, por uma relação da medida da cintura e do quadril, das formas dos corpos que resultam, segundo estudos científicos, na obesidade benigna e na obesidade maligna. Os tipos de massas corpóreas - magro, normal, obesidade leve, obesidade moderada, obesidade severa e obesidade mórbida - classificam, por uma relação de peso e altura, os estágios da obesidade.

Estas classificações já criam, pelos nomes de cada tipo classificado, um discurso que introjeta nas pessoas uma carga de conceitos a respeito destes corpos em seus diferentes padrões. Um exemplo são as palavras severa e mórbida, que criam uma série de significações para estes “tipos”, assim como a presença do tipo “normal” afirma que todos os outros são anormais e que estariam, portanto, em risco, já que estão fora da consideração do que se entende por “normal” ou correto.

A intenção deste trabalho é romper com os parâmetros dos corpos classificados, modelos que são utilizados e enquadrados em padrões científicos, distanciados de suas diferenças e essências mais íntimas. A ideia é provocar uma reflexão sobre a padronização e a construção dos corpos em uma sociedade que busca por um pensamento hegemônico de corpo através da imposição de regras e modelos estanques de identidade.

 

Na cultura contemporânea a supremacia do olhar e da visualidade prevalece sobre os outros sentidos. O mundo está abarrotado de imagens que mostram corpos idealizados, padronizados, sem imperfeições, muito leves e finos, considerados modelos de beleza, perfeição e juventude. Corpos sem rugas nem doenças, com próteses, brilhos e muita velocidade.

Nossos olhares estão contaminados por essa poluição visual, uma espécie de terrorismo global, em que se deseja um corpo impossível, inatingível, idealizado, retocado e plastificado. Os corpos de carne, sangue, ossos, água e gordura são substituídos, cada dia mais, por outros formados por hormônios, suplementos alimentares, anabolizantes, silicones, chips internos, fios de ouro e próteses. Corpos construídos e que são sinônimos de beleza, força e saúde. Somados às cirurgias plásticas e às modificações, os corpos passam a ser superpotências, quase super-homens ou supermulheres. Novas inserções substituem nossas carnes e mentes e são capazes de transformar até nossa essência mais íntima.

A excessiva valorização da aparência escraviza e transforma nossos corpos em prisioneiros de modelos impostos levando a diversas doenças que se multiplicam a cada dia. O Transtorno Dismórfico Corporal com doenças relacionadas como Bulimia, Anorexia, Vigorexia e Drunkorexia se transformaram em uma epidemia provocada pelo culto ao corpo perfeito, consequência do excesso da preocupação com a aparência em constante crescimento pelo mundo.

Desejos manipulados, olhares contaminados. Corpos aprisionados dentro de seus próprios sonhos de eternidade e perfeição.

            Em relato escrito por Paula Campos, para o meu projeto com mulheres gordas, podemos perceber um pouco desta violência que transborda em seu texto. Paula diz:

Sempre fui gorda. Gordíssima. Transbordante. (...) Carne branca e flácida arrebentando a pele. Sucessão de acúmulos, montinhos, dobras. Disseram-me. Era assim que me sentia. Falaram, repetiram, riram, gritaram – desde sempre. A professora proibia o segundo prato. As tias penalizadas diante do rostinho lindo perdido na imensidão adiposa. A mãe diagnosticava o delinear de contornos bizarros e amarrava o diagnóstico com previsões proféticas, pontuadas por solteirices eternas e recalques inconfessáveis. (...) Acreditei. Aceitei como se aceitam as fatalidades oraculares. O corpo era uma evidência. O espelho, sistematicamente voltado para mim, dizia do aleijão, da imutabilidade das formas que me constituíam. Estanquei. (...) Daí vieram os tais milagres. Uma espécie de mística coletiva me conduzia a clínicas e mais clínicas. Eram templos que prometiam milagres (...) Chegava a acreditar. Envolvia-me nessas crendices. Cada clínica, cada dieta, cada medicação. Surgia a esperança da transmutação. O ritmo da casa mudava. Higienização. Alimentos sujos substituídos por limpos. Família mobilizada, milhões de energias concentradas em torno da salvação. (...) De repente, sem que me desse conta, começava a colocar dedinhos fora da estufa. Uma colher a mais de arroz. A porção de feijão gelado subtraído no meio da tarde. A camada dupla de manteiga. O prazer. A culpa. As dores. (Campos, 2007)

Estas violências simbólicas levam estas mulheres em busca das clínicas miraculosas que acabam por gerar ainda mais culpas e dores. Entre as metodologias adotadas está a realização das fotografias para que se possa comparar o antes e o depois. Fotografias que fragilizam ainda mais estes corpos. As fotografias “científicas” realizadas para os arquivos médicos são utilizadas na construção de seus discursos. Estas imagens, em sua representação, se afastam dos corpos individuais, de suas identidades, de suas características pessoais, de corpos que contêm sentimentos, pensamentos e vida própria. São corpos considerados doentes, transgressores e sem identidade. Corpos que devem ser eliminados, extirpados, diminuídos, cortados e retalhados para que se adequem aos espaços determinados aos corpos.

O texto classificatório científico traduz como o discurso vigente aborda os corpos de mulheres gordas e se coloca no cotidiano da sociedade em que estão inseridos. O peso que carregam por serem corpos abjetos ou desconsiderados. Corpos que não importam por estarem naquele formato. Corpos abomináveis e transgressores, que devem ser modificados a qualquer custo.

Claude Fischler diz:

Uma suspeita pesa, portanto, sobre os gordos. Mas se não podem emagrecer, eles tem uma possibilidade de se redimir dessa suspeita: precisam proceder a uma espécie de restituição simbólica, aceitando desempenhar os papéis sociais que se esperam deles. (...) De fato, a classificação de um obeso na categoria positiva ou negativa resulta, sem dúvida, não de um traço particular, mas da relação entre os traços físicos e a imagem social da pessoa (...) os gordos são considerados transgressores; eles parecem violar constantemente as regras que governam o comer, o prazer, o trabalho e o esforço, a vontade e o controle de si. (Fischler, 1995, p. 71, 72 e 74)

A transgressão destes corpos, que ousam ser volumosos, fogem às regras sociais da aparente possibilidade de harmonia constante. Fugindo destas imposições estes corpos geram um conflito pela sua própria aparência.

O que busco com este trabalho é borrar estas fronteiras, possibilitar ao corpo estas indefinições, identidades suspensas, flutuantes e diversas. Mostrar corpos de mulheres gordas grandes e leves. Corpos inusitados, que flutuam e ocupam seus espaços plenamente, sem culpas em ser e estar.

A utilização da fotografia nesta série é fundamental para que se tenha a dimensão destes corpos e também para que se vejam as dobras, a pele e a gordura com toda sua carnalidade. É fundamental para que se possa perceber que estamos lidando com corpos de carne e osso, corpos que sentem dor.

Ao retirar os “miolos” das fotografias, permanecem as bordas com aproximadamente cinco centímetros de pele, que mostram um tanto destes corpos, sendo possível, então, perceber formas, linhas, cores, cabelos e outros detalhes.

Estes grandes corpos que flutuam, talvez possam revelar, a partir desta leve presença, muito mais do que poderiam mostrar com os miolos que foram extirpados. Através dos contornos dos corpos percebe-se o volume, pela linha e pela massa corpórea ausente. O vazio mostra o volume pela ausência de imagem, porém, a ocupação do espaço é absolutamente a mesma, quer o objeto seja realizado somente por uma linha, quer ele tenha massa preenchendo este volume. Vazio e cheio criam uma relação de identidade com aquele corpo. O corpo dsa mulheres gordas e todo discurso realizado a respeito dela tratará das questões resultantes das formas, do volume e de sua aparência. Fronteiras que se rompem buscando estilhaçar os discursos vigentes.   

A instalação permite que o público caminhe entre os corpos dialogando com os trabalhos. Foi possível observar, durante as exposições realizadas, que as pessoas tentam entrar nos corpos, atravessá-los e se encaixar em suas formas, interagindo com as fotografias.

Para provocar a sensação de leveza, as fotografias dos corpos foram montadas sobre uma estrutura de isopor extremamente leve, tratada com massa acrílica e penduradas por um fio de nylon, o que possibilita que girem suavemente sobre seu próprio eixo, como uma presença. Corpos que performam no espaço, mulheres gordas que assumem seu espaço, suas dimensões e sua identidade, como se declarassem “esta sou eu!”.

Os cortes nas fotografias também pretendem abordar as questões da violência com o corpo das mulheres. A lâmina que recorta a imagem se refere aos cortes impostos a estes corpos para se adequarem às normas, para cumprirem com os modelos de corpos aceitos e válidos.

Quando produzi este material, ao longo daqueles meses, através dos recortes fotográficos pude resgatar minha memória corporal. Cada dobra, cada curva por onde passei a lâmina uma imagem do corpo se manifestou e a dor foi resgatada, tendo sido sentida com toda a sua intensidade como se estivesse sendo naquele momento. Impressas no corpo estas dores retornaram com imagens que se repetiam em mim. Eram as dores de uma roupa apertada, um elástico cortando, um aprisionamento da carne, as culpas e a inadequação do corpo.

Citações de dores corporais, de cortes e agressões pelas tentativas de adequar este corpo ao padrão imposto, para saciar o desejo dos corpos insatisfeitos, para amenizar as culpas que todo corpo feminino carrega.                                                                                                                                                                                                                                                      

BIBLIOGRAFIA:

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Biografia

Fernanda Magalhães (1962, Londrina, PR, Brasil). Artista, Fotógrafa, Performer, Professora da Universidade Estadual de Londrina, Doutora em Artes, UNICAMP (2008), Coordena o Projeto de Pesquisa Fotoperformance: Ação, Criação, Arte, Ativismo, Trânsitos Coletivos Contemporâneos (2013-2016), Membro do Conselho de Orientação Artística do MON – Museu Oscar Niemeyer (2012-2014), recebeu o VIII Prêmio Marc Ferrez de Fotografia 1995 Minc/Funarte pelo Projeto "A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia”, publicou os livros "Corpo Re-Construção Ação Ritual Performance", Travessa dos Editores 2010 e "A Estalagem das Almas" em parceria com a Escritora Karen Debértolis, Travessa dos Editores 2006. Seu trabalho integra, entre outros, os acervos da Maison Europèene de la Photographie em Paris, França e do Museu Oscar Niemeyer em Curitiba, PR, Brasil.

 

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