labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier/ juin / 2014  -janeiro/junho 2014

O olho mais azul: transfiguração e desconstrução na poética feminista de Toni Morrison


Mariléa de Almeida

Mas como é difícil lidar com o porquê, é preciso buscar refúgio no como.
Toni Morrison

Resumo: Neste artigo, analiso a poética feminista da escritora negra norte-americana Toni Morrison (1973), especificamente no livro O olho mais azul. Para tanto, focalizo a narrativa sob três eixos analíticos: (i) histórico ou extralinguístico – eixo em que se estabelecem as relações entre os conteúdos da obra e a crítica proposta pelo Black Feminism, que emergiu nos Estados Unidos, no final década de 1970; (ii) linguístico – eixo que situa como essa autora, por meio da linguagem, constrói uma poética marcadamente feminina e feminista; e (iii) epistemológico – eixo em que analiso como a forma e o conteúdo do romance estão intrínseca e organicamente articulados em seu texto, oferecendo, assim, saídas teórico-descritivas para a narrativa histórica.


Palavras-chave
: poética feminista; Black Feminism; desconstrução; transfiguração; Toni Morrison.

 Prólogo e problematizações

Baudelaire (1988), em instigante texto que trata da modernidade, distingue as formas como o flâneur e o pintor moderno apropriam-se do mundo. Para esse autor, enquanto o primeiro coleciona curiosidades sobre o real; o segundo faz com que as coisas à sua volta renasçam na tela e se tornem “naturais e, mais do que naturais, belas; mais belas do que belas, singulares e dotadas de uma vida entusiasta como a alma do autor” (Baudelaire, 1988:173). De acordo com essa perspectiva, para o pintor moderno, o que importa é o próprio processo de criação, que ocorre por meio do “difícil jogo entre a verdade do real e o exercício da liberdade” (Foucault, 2010:343). A esse fenômeno, Foucault (2010) chamou “transfiguração do real”.

Considerando o que Baudelaire (1988) pensa sobre a atitude criadora que o pintor moderno estabelece com seu tempo, este artigo interroga de que forma a prática historiográfica pode aprender com as narrativas libertárias contemporâneas que transfiguram os sentidos naturalizados e que, portanto, estabelecem uma relação de invenção com o tempo. Em outros termos, como podemos construir sentidos diversos daqueles que são usualmente atribuídos às experiências humanas que narramos?

Se Baudelaire (1988) elegeu o pintor moderno como aquele que possuía a capacidade de transfigurar o real, parece-nos que, em termos contemporâneos, devemos observar as práticas estéticas que mantêm essa atitude subversiva em nosso tempo. A esse respeito, Nelly Richards (2002) considera que, cada vez mais, há um número maior de textos feministas que procuram novas formas de expressão. Trata-se de textos capazes de cruzar diferentes registros, em que as fronteiras entre a reflexão especulativa, a estética e a política estão mescladas.

Ana Carolina Toledo Murgel (2010), por meio do conceito de poética feminista, oferece uma análise que merece destaque. Para essa historiadora, a potencialidade da poética feminista está na atitude estética de “apropriar-se da memória coletiva com o uso da paródia e da ironia como forma de subversão”. Assim, em uma “linguagem erótica, dialógica e, sobretudo, rente ao corpo, a poética feminista contesta as hierarquias e os estereótipos entre os gêneros”. Nas palavras dessa autora, a arte feminista delineia:

"[...]uma escrita feminista de si, em que a subjetividade se constrói na invenção e na apropriação também da memória coletiva, implodindo por dentro seus conceitos normativos e apontando para a construção de uma nova estética da existência (Murgel, 2010:187).

Nesse sentido, o romance O olho mais azul, da escritora negra norte-americana Toni Morrison[i] (1973), exemplifica uma poética que transfigura e desconstrói identidades para tornar visíveis outras formas de subjetivação. Em termos conceituais, é imperioso dizer que a concepção de desconstrução adotada neste artigo converge com aquela sugerida por Richards (2002), a qual supõe pensar o termo como um exercício:

"[...] que ao desfazer a construção dos vestígios sexuais do suporte imaginário do corpo natural permite dar mobilidade aos signos do masculino e feminino, que deslocam e se transformam, segundo as dinâmicas da subjetividade que se formulam como respostas às diferentes identidades solicitações e interpelações de identidade (Richards, 2002:134).

No rastro dessa abordagem proposta por Richards (2002), em termos metodológicos, a desconstrução na obra de Morrison (1973) será pensada, neste artigo, em três dimensões articuladas. A primeira, em termos históricos ou extralinguísticos, busca estabelecer as relações entre os conteúdos da narrativa e a crítica proposta pelo Black Feminism, que emergiu nos Estados Unidos no final década de 1970. A segunda, no âmbito linguístico, procura situar como Morrison (1973), por meio da linguagem, constrói uma poética marcadamente feminina e feminista. A terceira, em termos epistemológicos, analisa como a forma e o conteúdo do romance estão organicamente articulados no texto dessa autora, oferecendo, assim, saídas teórico-descritivas instigantes para a narrativa histórica.

2. O olho mais azul

2.1. As condições históricas

Publicado em 1973, o romance de estreia de Toni Morrison, O olho mais azul, narra a história de Pecola Breedlove, uma menina negra que deseja possuir olhos azuis como um meio de ser amada pelas pessoas. A história ambientada nos Estados Unidos, na década de 1940, focaliza as práticas racistas e sexistas que atravessam as experiências de mulheres negras desde a infância. A respeito desse acontecimento, interessa indagar quais diferenças, em relação a seu tempo, essa narrativa introduziu na década de 1970, bem como quais condições históricas permitiram sua emergência.

Black power; make love not war; sex, drugs and rock n’roll. Essas frases, hoje transformadas em clichês, sintetizavam os principais temas que pautavam os debates de setores mais radicais da sociedade norte-americana, entre as décadas de 1960 e de 1970. Em meio a esse contexto de luta, principalmente contra o racismo, as ativistas negras norte-americanas passaram a denunciar a dupla invisibilidade das mulheres negras: dentro dos movimentos antirracistas e dentro dos movimentos feministas. Essa situação materializava-se, inclusive, na linguagem. O vocábulo “negro”, no discurso dos movimentos antirracistas, era sinônimo de homens negros; ao passo que a palavra “mulher”, no discurso feminista da época, significava mulheres brancas (Hooks, 1990:08).

Hooks (1990) pondera que as ativistas negras, em um primeiro momento, negaram o papel do sexismo e elegeram o racismo como foco central de luta. No entanto, logo perceberam que, no interior do movimento antirracista, as hierarquias de gênero permaneciam inalteradas, uma vez que os homens negros sempre ocupavam o lugar de liderança, relegando às mulheres posições secundárias no seio das organizações políticas.

Nessa época, a principal crítica encaminhada pelas ativistas negras ao movimento feminista era pautada pela denúncia da invisibilidade da questão racial dentro do movimento. Em 1981, Angela Davis, no clássico Women, Race, and Class, destaca que o significado da emancipação para as mulheres negras difere daqueles atribuídos pelas abordagens vigentes no feminismo liberal burguês, o qual concebe como modelo as experiências de mulheres brancas. Para essa autora, devido à trajetória histórica das mulheres negras, é fundamental pensar como o racismo e o sexismo operam em conjunto com a opressão de classe (Davis, 1983:97).

Diante disso, podemos dizer que, no final da década de 1970 e no início da década de 1980, o Black Feminism emerge como uma resposta teórica à invisibilidade das mulheres negras em termos políticos. Apesar de não ser um movimento homogêneo, é pertinente afirmar que a tese central da abordagem considera que o sexismo, a opressão de classe e o racismo estão intrinsecamente relacionados; por isso, as experiências das mulheres brancas e não brancas devem ser pensadas nessas três dimensões (Collins, 1991:9).

Além disso, a abordagem teórica proposta pelo Black Feminism denuncia a produção de estereótipos sobre os corpos das mulheres negras em três direções, Primeiro, os estereótipos que relacionam o corpo como objeto sexual. Hooks (1990) ressalta que é recorrente a ideia de considerar a sexualidade das mulheres negras como um “símbolo quintessencial de uma presença feminina natural, orgânica, mais próxima da natureza, animalesca e primitiva” (Hooks, 1995:468). Segundo, os estereótipos que atribuem ao corpo das mulheres negras uma domesticidade atávica. No período após a abolição, a população negra continuou, em sua grande maioria, a ocupar postos de trabalho subalternizados, cabendo às mulheres negras a função de provedoras de suas famílias por meio do trabalho doméstico. Esse fato favoreceu a naturalização da ideia de que o corpo das mulheres negras existia para servir (Hooks, 1990; Moreira, 2007). Terceiro, os estereótipos que se referem à forma como as mulheres negras relacionam-se com as práticas racistas.

Esse discurso opera no registro da positividade, haja vista que concebe as mulheres negras como fortes por resistirem a uma dupla opressão, como se seus corpos fosses constituídos de outra matéria. Para ilustrar uma denúncia a esse respeito, tornou-se famoso o discurso da ex-escrava Sojourner Truth na Women’s Convention, em 1851: “Ninguém nunca me ajuda a entrar nas carruagens, ou a passar pelas poças de lama, ou me oferece um lugar melhor! E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meus braços!” (Truth, 1851, tradução nossa).[ii]

Do ponto de vista teórico, a crítica sobre as abordagens que se relacionavam ao Black Feminism, no final da década de 1970, e que persistiam sobre as mulheres negras foi construída, preliminarmente, no campo da literatura. Destaca-se a produção literária de escritoras negras norte-americanas que, desde a década de 1970, construíram narrativas que problematizavam as identidades de raça e de gênero e que, portanto, contribuíram para as formulações teóricas. Escritoras como Alice Walker, Pat Parkers, Rebecca Walker e Toni Morrison são alguns exemplos. Como insiders, essas autoras subverteram as fronteiras entre a reflexão especulativa, a estética e a política.

Morrison (1973) afirma que a necessidade de ver sua experiência narrada na literatura favoreceu que passasse de leitora voraz  à escritora (Li, 2010:xii). Em 1970, essa autora inicia o ofício de transfigurar as realidades presentes no imaginário norte-americano e quase sempre silenciadas na prática literária. Em O olho mais azul, torna visível a experiência de um dos sujeitos mais ignorados da sociedade norte-americana: as mulheres negras. Na trama, a personagem central Pecola Breedlove, depois de sofrer várias experiências físicas e simbolicamente violentas, passa a delirar sobre sua aparência, já que imagina possuir olhos azuis. Morrison (1973) mostra como os padrões de beleza racistas e sexistas podem ser devastadores para as experiências das mulheres negras.

Pensar O olho mais azul como um acontecimento significa interrogar sobre as condições históricas de uma sociedade que, ao mesmo tempo, começava a desconstruir a naturalização do racismo e que também vivenciara a permanência de um racismo radical. No que se refere à luta antirracista, o processo foi desencadeado não somente pelos movimentos sociais dos direitos civis, mas também pela crítica feminista, encaminhada pelo Black Feminism.

Nesse sentido, O olho mais azul representa um dos esforços de setores da sociedade norte-americana na desconstrução de valores racistas e sexistas que engendraram aquela sociedade. A esquizofrenia de Pecola Breedlove é uma paródia dos valores que os movimentos sociais denunciavam; portanto, era preciso deixá-los para trás.

2.2. A desconstrução em nível linguístico

Retomando a pergunta realizada na seção anterior, que diferenças, em termos linguísticos, a narrativa de Morrison (1973) introduz? Como os recursos linguísticos são utilizados para tornar visíveis o racismo e o sexismo vivenciados na experiência das mulheres negras?

Para contar a história, a qual problematiza, simultaneamente, valores da sociedade norte-americana e oferece visibilidade à experiência das mulheres negras, Morrison (1973) utiliza-se da presença de diversas vozes, a denominada polifonia, como recurso linguístico.

A primeira voz é a do narrador onisciente, isto é, em terceira pessoa, que tem a função de narrar os acontecimentos, bem como descrever as características físicas e os estados emocionais das personagens que ajudam a construir a experiência de Pecola Breedlove.

A segunda voz, narrada em primeira pessoa, é voz de Cláudia Macteer, menina negra que tem os mesmos onze anos de idade de Pecola Breedlove. De certa forma, a narradora-personagem funciona na trama como um alter-ego da escritora, pois, enquanto Pecola Breedlove vai sucumbindo à violência, Cláudia Macteer vai, aos poucos na trama, construindo recursos psicológicos, corporais e linguísticos de resistência. É importante dizer que Morrison (1973) não deixa o leitor esquecer que se trata de uma menina; portanto, utiliza-se da leveza do universo simbólico infantil para tornar as resistências de Cláudia Macteer verossímeis, em termos de linguagem.

Por fim, outras vozes estão presentes na trama. Elas favorecem, igualmente, a desconstrução da experiência de Pecola Breedlove, uma vez que tendem a apresentar outras perspectivas no decorrer do enredo (Nascimento e Soares, 2010: 378).

Sobre os efeitos dessa polifonia, a leitura do livro permite-nos perceber a força da oralidade no estilo construído por Morrison (1973). Alguns teóricos consideram que esse recurso é utilizado pela autora como forma de dialogar com a tradição afro-americana, na qual a oralidade é extremamente valorizada. Por conseguinte, a memória e as reminiscências são recursos recorrentes no trabalho que analisamos neste artigo (Durrant, 2004:08).

Para produzir outros sentidos, Morrison (1973) não poupa a estrutura da língua, uma vez que também transfigura a morfologia e a sintaxe para tornar visível a experiência de Pecola Breedlove. Assim, a autora indica, na primeira página do livro, por meio da materialidade linguística, o que pretende fazer ao longo de toda a trama -desconstruir significados para tornar visível e possível a experiência de Pecola Breedlove -, como podemos perceber neste texto inicial do romance:

Esta é a casa. É verde e branca. Tem uma porta vermelha e é muito bonita. Esta é a família. A mãe, o pai, Dick e Jane moram na casa branca e verde. Eles são muito felizes. Veja Jane. Ela está de vestido vermelho. Ela quer brincar com a Jane. Veja o gato. Ele está miando. Venha brincar. Venha brincar com a Jane. O gatinho não quer brincar. Veja a mãe. A mãe é muito boazinha. Mãe, quer brincar com a Jane? A mãe ri, ria, mãe, ria. Veja o pai. Ele é grande e forte. O pai está sorrindo. Sorria, pai, sorria. Veja o cachorro. Au-au, faz o cachorro. Quer brincar com a Jane? Veja o cachorro correr. Corra cachorro, corra. Olhe, olhe, aí vem um amigo. O amigo vai brincar com a Jane. Eles vão jogar um jogo gostoso. Brinque, Jane, brinque.

Esta é casa é verde e branca tem uma porta vermelha é muito bonita esta é a família a mãe o pai Dick e Jane moram na casa branca e verde eles são muito felizes veja Jane está de vestido vermelho ela quer brincar com a Jane veja o gato ele está miando venha brincar venha brincar com a Jane o gatinho não quer brincar veja a mãe a mãe é muito boazinha mãe quer brincar com a Jane a mãe ri a mãe ria veja o pai ele é grande e forte o pai está sorrindo sorria pai sorria veja o cachorro au-au faz o cachorro quer brincar com a Jane veja o cachorro correr corra cachorro corra olhe olhe aí vem um amigo o amigo vai brincar com a Jane eles vão jogar um jogo gostoso brinque Jane brinque

EstaéacasaéverdeebrancatemumaportavermelhaémuitobonitaestaéafamíliaamãeopaiDickeJanemoramnacasabrancaeverdeelesãomuitofelizes

vejaJanelaestádevestidovermelhoelaquerbrincarcomajanevejaogatoeleestámiandovenhabrincarvenhabrincarcomaJaneogatinhonãoquerbrincarveja

amãeamãeémuitoboazinhamãequerbrincarcomaJaneamãeririamãeriavejaopaieleégrandeeforteopaiestásorrindosorriapaisorriavejaocachorroauaufaz

ocachorroquerbrincarcomaJanevejaocachorrocorrerorracachorrocorraolheolheaívemumamigooamigovaibrincarcomaJaneelesvãojogarumjogogostoso

brinqueJanebrinque (Morrison, 2003:7; grifos nossos).

No trecho supracitado, Morrison (1973) escreve o mesmo trecho três vezes. Na primeira vez, mantém a pontuação da norma padrão da língua e os espaçamentos entre os vocábulos. Já na segunda ocorrência, a autora deixa os espaçamentos, mas retira a pontuação do texto. Por fim, suprimem-se todos os espaçamentos e a pontuação.

Esse trecho do texto foi retirado de uma cartilha popularmente utilizada nas décadas de 1930 e de 1970 nos Estados Unidos. O material didático apresenta as personagens carismáticas Dick e Jane como protótipos de um modelo ideal da sociedade norte-americana: família branca, heterossexual e burguesa. Possivelmente, a personagem Pecola Breedlove fora alfabetizada com essa cartilha. Além disso, é imperioso dizer que, somente a partir de 1965, as cartilhas norte-americanas incluíram imagens de crianças de outras etnias em suas diagramações (Nascimento e Soares, 2010).

Com a finalidade de evidenciar o discurso racista e sexista que permeia o texto da cartilha, Morrison (1973) torna caótica a linguagem cor de rosa da história de Dick e Jane. Essa estratégia favorece que visualizemos a racionalidade que engendra a experiência de Pecola Breedlove e das mulheres negras.

A busca pela aceitação do outro é o que faz Pecola Breedlove enlouquecer. Na história, há uma passagem que narra o momento em que essa personagem menstrua pela primeira vez. Naquele dia, descobre que, por conta disso, poderia ter filhos, mas Cláudia Macteer enfatiza que, para tanto, era preciso que alguém amasse a protagonista. Então, Pecola Breedlove pergunta: “Como é que a gente faz alguém amar a gente?” (Morrison, 2003:36). Ao longo de todo livro, Morrison (1973) narra a impossibilidade de Pecola Breedlove sentir-se amada, uma vez que os valores estéticos norte-americanos da época aproximavam a imagem da personagem ao grotesco, ao animalesco.

Por meio de uma poética que nos afeta pelas vísceras, Morrison (1973) revela como o desejo de Pecola Breedlove em ser amada é tragicamente vivenciado: é violentada cotidianamente em casa pelo próprio pai, na escola e na rua. Consequentemente, não há lugar seguro. Esse acontecimento é narrado, sem maniqueísmo, por Morrison:

Foi assim, então, que numa tarde de sábado, na luz tênue da primavera, chegou em casa, cambaleando de bêbado, e viu a filha na cozinha. Ela estava lavando louça. As costas pequenas e arqueadas sobre a pia. Cholly [o pai] viu-a vagamente, mas não saberia dizer o que viu, nem o que sentiu. Aí se deu conta que achava desconfortável. Em seguida sentiu o desconforto dissolver-se em prazer. A sequência de suas emoções era repulsa, culpa, pena e, depois, amor. A repulsa foi uma reação à presença da jovem indefesa e desesperançada. As costas arqueadas daquele jeito, a cabeça para o lado, como que encolhida por causa de golpe permanentemente e sem socorro. Por que ela tinha de parecer tão atormentada? Era uma criança sem fardos, por que ela não era feliz? A expressão clara de seu sofrimento era uma acusação. Ele teve vontade de quebrar-lhe o pescoço, mas com ternura. A culpa e a impotência acenderam num duelo belicoso. O que ele poderia fazer por ela? Dar-lhe o quê? Dizer-lhe o quê? O que um negro exaurido poderia dizer às costas arqueadas de sua filha de onze anos? Se olhasse no rosto veria aqueles olhos amorosos e acossados. O acossamento o irritava, o amor o enfurecia. Como é que ela ousava amá-lo? [...] O ódio que sentiu revirou-lhe o estômago e ameaçou tornar-se vômito. [...] Ele quis fodê-la com ternura. Mas, a ternura não resistiu. [...] Foi tão doloroso sair de dentro dela que ele foi tão rápido e arrancou o membro da enseada seca que era a vagina dela. Ela parecia ter desmaiado. Cholly se levantou e só conseguiu enxergar a calcinha acinzentada dela, tão triste e frouxa ao redor dos tornozelos. Novamente o misto de ódio e ternura. O ódio não o deixou levantá-la, a ternura obrigou-a a cobri-la (Morrison, 2003:161-164; grifos nossos).

A saída que Pecola Breedlove encontra para a brutalidade é o embranquecimento: “toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente” (Morrison, 2003:50). Depois de desprezada, humilhada, estuprada e grávida do próprio pai, a saída de Pecola Breedlove é o delírio. Assim, passa a acreditar que possui olhos azuis.

Com efeito, Morrison (1973), por meio de outra personagem – principalmente, Cláudia Macteer ‑, apresenta uma saída diversa para a violência do racismo e do sexismo. Um exemplo a esse respeito refere-se ao fato de a menina ganhar uma Baby Doll de olhos azuis. Nesse momento, a personagem confidencia sobre o seu conflito pessoal entre atender às expectativas dos adultos ou atender a seus próprios desejos, como podemos verificar neste excerto:

Eu sabia que a boneca representava o que eles imaginavam que fosse o meu desejo [...] fiquei pasmada com a coisa e a aparência que tinha. Eu devia fazer o que com aquilo? Fingir que era mãe? Eu não tinha interesse por bebês nem pelo conceito de maternidade (Morrison, 2003:23).

A saída de Cláudia Macteer foi destruir as bonecas brancas. Esse processo ocorre simultaneamente à insistência de um sentimento que a atemorizava: a transferência do ódio pelas bonecas às meninas brancas. Ao longo da trama, a personagem, ao enfrentar a duríssima realidade, vai construindo estratégias  de resistência por meio de enfrentamentos possíveis. Assim, enquanto Pecola Breedlove cria uma utopia para sobreviver e para deixar de sofrer; Cláudia Macteer livra-se do desejo de ser amada dentro dos parâmetros do outro e constrói heterotopias: outros espaços subjetivos. É importante dizer que Morrison (1973), em nenhum momento, aborda essas escolhas em termos de ganhos ou fracassos. Trata-se de tornar visíveis os processos de singularização das personagens.

Deslocando a experiência das personagens para uma análise mais ampla, Fanon (1983), no clássico Pele negra, máscaras brancas, colabora ao afirmar que não é a história que engendra o negro, mas a ideia que se faz do negro que engendra a história. Além disso, esse autor esforçou-se em mostrar que os descaminhos de uma personalidade corrompida pela sociedade não é culpa da fraqueza do indivíduo. Indica também que o complexo de inferioridade não é um aspecto inerente à essência do negro, mas o resultado de uma situação concreta referente ao racismo (Fanon, 1983).

Retomando a narrativa de Toni Morrison (1973), consideramos que a forma e o conteúdo são indissociáveis para produzir os efeitos que, para além de estéticos, são, sobretudo, éticos. A forma como a autora abordou o tema obriga-nos a fazer uma dobra sobre nós mesmos. Não há essência nas personagens, haja vista que são constituídas de matéria humana demasiadamente humana.

2.3. A desconstrução epistemológica

De que forma a narrativa historiográfica, igualmente herdeira dos cânones da racionalidade masculina, pode aprender com a poética feminista, em termos epistemológicos? Como produzir sentidos diversos daqueles que são usualmente atribuídos às experiências humanas que narramos com as práticas literárias contemporâneas, as quais transfiguram os sentidos naturalizados e, portanto, estabelecem uma relação criadora com seu tempo?

Escrever não é uma prática neutra. As narrativas são construtos culturais que, além de refletir o real ao produzir significados, o inventam. Esses significados estão, por conseguinte, impregnados de valores sexuais e raciais. Desse modo, a principal implicação de não levarmos em conta as relações de poder que atravessam as práticas narrativas está na legitimação de um narrador neutro que é autorizado a falar em nome de todos. Sendo assim, conforme Nelly Richards (2002), as mulheres não podem se dar o luxo de não participar dessas batalhas, mesmo que as regras estejam prefixadas a partir do gênero masculino (Richards, 2002:136). Diante da violência epistemológica, é preciso criar saídas teóricas que favoreçam as práticas da diferenciação.

A narrativa de Morrison (1973), cuja poética feminista requisita uma mudança ética que passa pelo corpo, subverte os cânones em várias direções. Tudo isso sem apelar para os lugares comuns e os estereótipos. A forma como essa autora torna visíveis os discursos, que tanto assujeitam os corpos quanto as saídas que personagens criam para vida, constitui-se no desafio epistemológico para a narrativa histórica.

Nesse sentido, essa autora ensina-nos que, para contornar os dualismos, é preciso escrever com uma sensibilidade em riste. Assim, a escrita é concebida como uma prática que busca nas sutilezas, no contraditório e nos silenciamentos o como dos processos. Além disso, Morrison (1973) narra as experiências das mulheres negras sem reduzi-las a meros efeitos do poder ou sem cair na armadilha de transformar as personagens em estoicas heroínas, desprovidas de paradoxos.

Em termos de produção de conhecimento, “o rei está nu”, e Toni Morrison faz questão de mostrar todos os ângulos dessa condição. Além de questionar os valores da sociedade norte-americana e os cânones da chamada literatura universal, essa escritora trabalha com uma linguagem que borra as fronteiras da reflexão acadêmica, da política e da estética. Em sua narrativa, os sentidos estabelecidos são transfigurados para que as experiências das mulheres negras se tornem visíveis sem as mediações dos estereótipos. Por isso, ao longo da narrativa, somos afetados por corpos que pulsam, mas não por identidades prefixadas.  Toni Morrison desafia-nos a desconfiar da forma como olhamos para essas experiências. Se os corpos dóceis das sensuais mulatas e da Tia Anastácia são tão naturais que já nem os enxergamos, será que teríamos coragem de encarar face a face os olhos azuis de Pecola Breedlove?

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Biografia:

Doutoranda em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP). Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Recente, mas também nas áreas de Educação e Cultura. Atualmente, pesquisa a experiência de mulheres quilombolas, sobretudo, os temas relacionados aos feminismos, às relações étnico-raciais e ao corpo.

notas

[i] Em 1993, Toni Morrison foi contemplada com o prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra, tornando-se a primeira mulher negra a receber essa premiação.

[ii] Texto original: “Nobody ever helps me in to carriages, or over mud-puddles, or gives me any best place! And ain’t I a woman? Look at me! Look at my arm!