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études féministes/ estudos feministas MINHA AMIGA ANA ALICE E EU: CAMINHOS ENTRELAÇADOS PARA SEMPRE Cecilia M.B. Sardenberg
A primeira vez que vi minha amiga Ana Alice foi no coquetel oferecido pela Professora Maria Brandão durante a realização da 33ª Reunião da SBPC em Salvador, que aconteceu de 8 a 15 de julho de 1981. Eu voltara há pouco para o Brasil, vinda de Boston onde cursava o doutorado, e Ana Alice, então recém-chegada do México depois de concluído o mestrado, estava trabalhando como assessora à comissão organizadora daquela reunião da SBPC. No referido coquetel, nos cruzamos no portão da casa de Maria, mas sem trocarmos qualquer palavra. Lembro-me dela ali porque estávamos grávidas, as duas – ela de Vladimir, seu primeiro filho e eu de João, meu caçula – e sabe como é: mulher grávida sempre olha para a barriga de outra grávida! Por isso mesmo, lembro-me de ter voltado a vê-la durante a SBPC no circo armado no meio do Campus da UFBA em Ondina, onde o Grupo Brasil Mulher de Salvador, por estar acontecendo ali também o III Encontro Nacional Feminista, apresentava a peça, “Grite Fogo”, abordando a questão da violência contra mulheres no país. Ana Alice estava lá, mas, novamente, apenas trocamos olhares. Na verdade, só nos falamos pela primeira vez em dezembro daquele ano (1981), ocasião em que, já com os filhotes nascidos (João em setembro e Vladimir em novembro), prestávamos concurso para ingressarmos na UFBA como docentes – ela no Departamento de Ciência Política e eu no de Antropologia da FFCH. Nós duas – e mais de 400 outras pessoas – fomos aprovadas no concurso; contudo, meses depois de publicados os resultados, ainda aguardávamos pela chamada da universidade. Surgiu assim o Movimento dos Concursados da UFBA, com a participação de Ana Alice, minha e de outros futuros colegas na liderança. E creio que foi precisamente a partir daquele momento que nossos caminhos (o meu e o de Ana Alice) se entrelaçaram para todo o sempre e nossa amizade começou a ser selada! Com efeito, vencidas as primeiras batalhas pela garantia da criação de vagas efetivas para todos/as concursados/as daquela leva – fomos contratadas em setembro de 1982 -, nos voltamos então para a criação do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, o NEIM. A ideia para tanto veio de Ana Alice. Ela voltara de um encontro feminista no Rio de Janeiro, animada para criarmos um núcleo de estudos sobre a mulher na FFCH, articulando um grupo de professoras e mestrandas do Mestrado em Ciências Humanas para levar adiante a proposta. Foi assim que, em maio de 1983, nasceu o NEIM, nosso filho parido junto com Alda Britto da Motta, e que tem sido fruto de muitas alegrias e, confesso, de algumas tremendas dores de cabeça nos seus quase 32 anos de existência... Mas, sem dúvida, tudo porque, desde o início, e, quase sempre por iniciativa de Ana Alice, cometemos muitas ousadias no NEIM. Assim, criamos o Centro de Documentação Zahidé Machado Neto (1984); lançamos os primeiros ‘Cadernos do NEIM’ (em 1984, ainda impressos via mimeógrafo); vinculamos o NEIM à direção da FFCH para termos mais autonomia para atividades de extensão e um trabalho com alunas/os da graduação. Com o apoio da Fundação Ford e parceria de Antônia Garcia, investimos em um trabalho com as mulheres do Subúrbio Ferroviário de Salvador, as de Plataforma no particular, realizando pesquisas, oficinas e diferentes projetos de intervenção de assessoria, inclusive uma pesquisa sobre creches comunitárias, publicada sob a organização de Ana Alice, além da pesquisa sobre o “Perfil da Mulher Suburbana” que acabou lastreando minha tese de doutorado. Anos mais tarde, desenvolveríamos um trabalho conjunto com as mulheres do MST, organizando oficinas e cursos para as participantes dos acampamentos anuais, uma atividade que acontecia sob a batuta de Ana Alice e de Lourdinha Schefler, pelo NEIM, e de Lucinha Barbosa, pelo MST. Ao longo dos anos, organizamos, também, vários seminários, encontros e simpósios locais, nacionais e internacionais, a exemplo de um encontro - desta feita por ideia minha, trazida de um evento do qual participei no NEMGE/USP- em que reunimos representantes de núcleos e pesquisadoras dos estados do Norte e Nordeste em Salvador, com o intuito de articularmos uma rede. Foi assim criada a Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres e Relações de Gênero- a REDOR, que recentemente completou 22 anos. Ana Alice e eu servimos como coordenadoras dessa Rede em diferentes gestões; quando os problemas daí surgidos se avolumavam, ela sempre me lembrava, brincando: “Você que inventou!” Eu replicava que, de fato, a ideia fora minha, mas não teria saído do papel se ela não tivesse investido tanta energia para torna-la realidade! O mesmo poderia ser dito do primeiro curso de especialização que oferecemos para integrantes da REDOR, versando sobre “Gênero e Desenvolvimento Regional”, que também contou com o apoio da Fundação Ford. Ana Alice não só encampou essa proposta, como acabou criando condições para que ela se desdobrasse em vários outros cursos, culminando com a criação (confesso que com algumas reservas iniciais de minha parte) do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos – o PPGNEIM, com cursos de mestrado e doutorado e, posteriormente, o Bacharelado em Gênero e Diversidade – o BEGD, o que permitiu trazermos gente nova para o NEIM. Foi Ana Alice que com seu olhar treinado buscando a possibilidade de um “oportunismo estratégico” (suas palavras), no bom sentido, descortinou no programa REUNI a possibilidade de crescimento do NEIM. De fato, Ana Alice estava sempre alerta para essas oportunidades, incentivando nossa inserção em redes regionais, nacionais e internacionais, ampliando dessa forma nossa esfera de atuação e de formação nos estudos feministas. Participamos, assim, da articulação da Rede Nacional Feminista de Pesquisas, a REDEFEM, da Red Latino-Americana de Estudios de Género e da Red Alfa, RIF-MED, que nos projetou na América Latina. Ademais, com nossa inserção (desta feita, por minha iniciativa) no ‘Pathways of Women’s Empowerment Research Programme Consortium” (para nós, o Projeto Trilhas do Empoderamento de Mulheres – TEMPO), passamos a trocar olhares e experiências de pesquisa com estudiosas feministas na Inglaterra, Bangladesh, Gana, Egito, e mais outros nove países, achando também espaço para nossas publicações e para nossas viagens ‘além-mar’. Aliás, minha amiga Ana Alice e eu descobrimos que adorávamos viajar e que gostávamos ainda mais de fazê-lo juntas - mesmo enfrentando horas a fio na estrada ou em desconforto pelos ares, ou mesmo brigando por isso ou por aquilo pelo caminho. Senão vejamos: por cerca de dois anos, com outras companheiras do NEIM, percorremos os interiores baianos viajando em uma caminhonete Toyota por uma semana, todos os meses, trabalhando com grupos de mulheres da zona rural. Eu reclamava da comida, da dormida, do cansaço, enquanto ela seguia em frente, reclamando apenas das minhas reclamações e do meu excesso de bagagem. Lembro-me de uma vez em que ela apareceu com conjuntivite em uma das vistas (não lembro qual), logo no início da viagem, mas não se deu por vencida. Comprou um pacote de algodão, esparadrapo e soro fisiológico na primeira farmácia que encontramos, passando o resto da viagem com um tapa-olho, sem, contudo, deixar de cumprir as tarefas que lhe foram destinadas. Dizia que aguentava o baque porque era capaz de dar suas ‘cochiladinhas’, sempre que possível, arranjando um cantinho (ou mesmo duas cadeiras juntas) para se encostar: tenho fotos hilárias de Ana Alice dormindo nos mais diferentes lugares! Uma vez, quase perdemos nosso voo para um encontro em Luanda: depois de uma longa noite desconfortável no avião, dormimos as duas, por sugestão dela, em longas espreguiçadeiras que encontramos no aeroporto de Lisboa, acordando só em cima da hora, quando ouvimos nossos nomes sendo chamados insistentemente pelo alto-falante. Fomos juntas para encontros feministas, para as conferências de políticas para mulheres, para eventos internacionais mundo afora, aproveitando, na medida do possível, para darmos umas esticadinhas turísticas (o que ela chamava de “turismo acadêmico”) e, é lógico, “cairmos no consumo!” Nossa preferência era sempre pelas feiras e mercados populares, onde sempre encontrávamos echarpes, pashminas, xales e artigos semelhantes que comprávamos para nós e para distribuirmos entre nossas amigas feministas – quem já viu feminista sem um xalezinho lilás ou roxo? Tenho coleções desses artigos comprados junto com ela, cada um hoje cheio de memórias desses momentos de descontração que passamos juntas! Mas, descontração mesmo era no Carnaval – e foram muitos os Carnavais que passamos juntas, farreando pela Praça Castro Alves, descendo a Ladeira do Pelô no Olodum e na Didá, protestando na Folia Feminista na Mudança do Garcia e sambando atrás das Muquiranas no Campo Grande ou no Bloco dos Mascarados pela Barra e Ondina e por aí vai. Nossa amiga, Marlene Libardone (que cuidou pessoalmente de Ana Alice até o último momento), era figura certa para curtir o Carnaval baiano conosco, para o que inventávamos as mais esdrúxulas fantasias: putas francesas, piratas do Caramba (nome é outro), diabetes! Essa última, desfilada nos Mascarados, nos pegou de surpresa. O lamê vermelho comprado por Silvia Lúcia na Avenida Sete, com garantias de que nos faria brilhar, desbotou logo na primeira chuva e, com ‘nosso suor e cerveja’, nos deixou com duas rodelas brancas bem na altura dos seios e no traseiro! Na volta, me perdi ‘dazamiga’, e me vi obrigada a caminhar sozinha para casa, exibindo meus restos de fantasia desbotada e arrastando minhas botas, a meia arrastão furada, os chifres de diabinha na cabeça e os olhos todos borrados de tanta farra, só me dando conta da decadência e estrago total em que me encontrava quando finalmente cheguei em casa pela manhã e me vi no espelho! Ana Alice rolou de rir com meu relato, principalmente ao saber que antes eu havia passado na padaria e encontrado meus nobres vizinhos na porta do prédio, passeando, sem noção, o meu estrago pelas ruas do bairro! Que vergonha! Ela também adorava contar a história do fã que arranjei pelo telefone (não tínhamos internet, muito menos Facebook naquela época!). Ele tinha aquela voz aveludada e sedutora de locutor de rádio e, depois de algumas conversas trocadas na calada da noite, marcamos um encontro de almoço em um restaurante perto de casa. Ana Alice ficou escandalizada com os meus planos: “Como você aceita sair com um homem que não conhece? Já pensou, ele pode ser um estuprador em potencial, não vou deixar você sair com ele, não!” Rebelde como sou, é claro que eu fui, usando uma blusa vermelha para que ele me identificasse. Assim, logo que adentrei o tal restaurante, vi um senhor, para lá do que poderíamos chamar de ‘derrubado’, acenando para mim. E o pior, quando me aproximei, percebi que ele tinha uma unha compridona no dedo mindinho da mão esquerda, daquelas estilo ‘Zé do Caixão’ chegando a dobrar, exibida por ele com o maior orgulho! Resultado: almocei e saí correndo dali de volta para casa, certa de que nunca mais queria ouvi-lo, muito menos vê-lo! Mas, mal abrira a porta, eis que toca o telefone. Era Ana Alice querendo saber do meu encontro com o ‘príncipe encantado.’ E toco eu a descrever tudo, a unha de Zé do Caixão inclusive, enquanto Ana Alice dava gargalhadas ao telefone. Por fim, minha amiga Alice, a protetora, confessou que tinha visto tudo! Como assim? Ela achou que eu fora desmiolada por sair nessa aventura e precisava da proteção das amigas. Recrutou assim Terezinha para ir com ela atrás de mim, mas às escondidas, ficando as duas em uma mesa no canto, longe do meu alcance de visão, mas perto o suficiente para inspecionarem meu suposto ‘príncipe encantado’ e correr em meu socorro, caso eu precisasse! Pois é, essa era a minha amiga. E, verdade seja dita, nos divertimos muito juntas! Mas nunca largamos mão da militância, nunca mesmo. Militamos muito em atividades de partido; participamos ativamente do nosso sindicato de professores da UFBA, a APUB, entidade em Alice chegou a atuar como vice-presidente; militamos juntas também no Grupo Feminista Brasil Mulher com as companheiras Bila, Neuzinha, Lena, Carminha, Amelinha e Terezinha, que até hoje se mantém como um grupo de amigas queridas e, é claro, militamos muito no meio acadêmico como integrantes do NEIM, agitando nossas bandeiras de feministas acadêmicas. Diga-se de passagem, criamos nossos filhos – Clarice e Vladimir, de Ana Alice, e Marina e João, os meus - também na militância, carregando os quatro para comícios de nossos/as candidatos/as, atividades de boca de urna, comemoração de resultados de eleição no Rio Vermelho, assembleias de professores/as na Faculdade de Arquitetura e, certamente, para as passeatas feministas do 8 de março, quando as crianças eram recrutadas para a distribuição dos panfletos e, em anos recentes, para a Marcha das Vadias e Parada Gay. Como não tenho nenhum parente próximo aqui na Bahia além de meus filhos, há tempo que adotei a família de Ana Alice como minha também. Aliás, me tornei sua ‘irmã’ logo depois do falecimento de minha mãe, quando Dona Cenira, mãe de Ana Alice, resolveu também me adotar. Assim, tive a felicidade de usufruir dos deliciosos fins de semana e dos feriados de São João que essa família extensa passava em sua casa na ‘roça’, perto da praia de Buraquinho, quando meus filhos, os de Ana Alice e os de sua cunhada, Rita (minha outra irmã baiana) curtiam brincar na terra, de pés descalços, ficando tão imundos que só o banho de escova no tonel dado por Seu Nubem, pai de Ana Alice, conseguia trazê-los de volta à civilização. ‘Pelas mãos de Alice’ me aproximei também da roda de amigas e amigos de Sofia Olzewski, nascida do tempo em que uma chapa quase só de mulheres– com Sofia na presidência, Ana Alice na vice, e mais Ana Marluce, Sílvia Lúcia, Vera e Dora – integrava a diretoria da APUB. Dessa roda, fizeram parte também Tera, Yukimi, Elizia, Ilka, Carminha, Ana Luz, Ívia, Terezinha, Enilda e eu, mantendo nossa amizade mesmo depois que Sofia se foi (em 1995), seguida, em anos recentes, também de Elizia e Yukimi e, agora, de nossa Ana Alice. Essas amigas queridas (dentre quais também se inclui agora Lourdinha) têm sido companheiras há muitos anos, gente com quem contamos para as farras gostosas no bar às sextas-feiras, fins de semana na praia jogando buraco, trocas de presentes de ‘amigas secretas’, como também para os momentos difíceis que enfrentamos, inclusive o de agora, de perda e de luto com a partida de uma de nós. São amigas queridas, mas todo mundo sempre soube que a relação de amizade minha e de Ana Alice era especial – teve gente que até achou que éramos um caso, um casal! Pena que sexualmente nossos desejos se voltavam para o sexo oposto... É claro que tivemos várias brigas e desentendimentos ao longo do tempo, principalmente no trabalho. Mas, felizmente, sempre conseguíamos fazer as pazes pelo telefone, de noite, quando costurávamos a resenha do dia, discutíamos algum artigo que estávamos escrevendo juntas, ou planejávamos alguma loucura nova para propor às companheiras do NEIM. Tenho mesmo certeza que, fora minha relação com meus filhos, minha amizade com Ana Alice foi a relação mais fiel, mais duradoura e mais verdadeira que já tive em minha vida. Creio que agora, beirando que estou os 67 anos, será difícil conseguir construir outra! Como me alerta Clarice, filha de Ana Alice: “Minha tia, você ficou viúva!” Sendo três anos e meio mais velha que Ana Alice e já tendo passado por momentos de risco de vida em virtude de um problema arterial sério, sempre pensei que eu me fosse antes dela. Por isso mesmo, já havia lhe passado instruções de como gostaria que fosse minha despedida. Estava preparada para o pior, mas jamais poderia imaginar que essa doença avassaladora viesse e me levasse a amiga querida, tão cedo e tão rapidamente, e que fosse eu quem estivesse ali para fechar seus olhos. Hoje sei que viverei sempre com uma imensa tristeza por não poder envelhecer ao lado dela, como planejávamos, arrastando nossos chinelos juntas pela casa... Mas nem tudo será só lamento; afinal, tive a felicidade de conhecer Ana Alice de perto e de desfrutar da sua amizade por mais de 33 anos. Guardarei sempre lembranças felizes do nosso tempo juntas, em especial, do dia em que nós duas fomos homenageadas pela Câmara Municipal de Salvador, em reconhecimento às ousadias e traquinagens feministas que aprontamos juntas no NEIM. E fico feliz por lembrar que escrevemos vários trabalhos em parceria, principalmente sobre os feminismos brasileiros, de sorte que nossos nomes, assim como nossos caminhos, ficarão entrelaçados para sempre.
Cecilia M. B. Sardenberg: antropóloga feminista, professora lotada no Departamento de Antropologia da FFCH/UFBA. Integra o grupo que, junto com Ana Alice Costa, criou o NEIM, em 1983, participando do núcleo atualmente como pesquisadora e professora permanente do PPGNEIM. labrys,
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