labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro 2015 - juillet/décembre 2015

 

 

Carreiras e profissionalismo de futebolistas brasileiras após a regulamentação do Futebol Feminino no Brasil.

 

Caroline Almeida

Mariane Pisani

Resumo

Desde o início, o futebol praticado por mulheres no Brasil foi cercado por proibições e isso fez com que tivesse outro significado além do esporte. Um signo de luta em busca do reconhecimento público e institucional. O trabalho aqui proposto busca compreender como são percorridas as carreiras das futebolistas no Brasil, desde o ano de 1979 (após a revogação da lei proibitiva) até os dias atuais. Refletimos sobre como essa prática esportiva vem se modificando ao longo dos ultimos anos, ampliando espaços, adquirindo visibilidade, profissionalizando-se e permitindo que cada vez mais mulheres possam escolher esse esporte como meio, possível, de vida. É a partir da análise da prática do futebol de mulheres no Brasil que buscamos contrapor e problematizar os processos profissionalização descritos pela historiadora inglesa Jean Williams.

Palavras-chave: futebol, mulheres, Brasil, carreira

 

Torna-se crescente a quantidade de trabalhos acadêmicos produzidos no Brasil que se debruçam sobre a temática do Futebol Feminino (Rial, 2010, 2014; Kesler, 2010; Pisani, 2012; Almeida, 2013; Souza Junior, 2013; Moraes, 2014; Araújo de Oliveira, 2014; Capucin e Silva, 2014). As pesquisadoras e o pesquisador - provenientes das áreas de Ciências Sociais, Antropologia, História e Educação Física – buscam reconstruir uma parte ainda invisível da modalidade. Desde a proibição do esporte às mulheres[1] – de meados de 1940 até o ano de 1979 – até os dias de hoje, busca-se – através de levantamentos de notícias jornalísticas, trabalho etnográfico, reconstrução de histórias de vida de atletas e ex-atletas – elucidar quem são essas mulheres jogadoras, de onde ela vem, quais são seus planos e sonhos e como o futebol ajuda e interfere na elaboração desses processos.

O trabalho aqui proposto busca compreender como foram percorridas as carreiras das mulheres futebolistas no Brasil, desde o ano de 1979 até os dias atuais. Apesar de parecer um longo período de tempo a ser explorado em um artigo – aproximadamente 37 anos de prática futebolística feminina -, uma divisão estrutural dos períodos facilita a abordagem na medida em que conseguimos traçar quadros de análise e comparações de período para outro. Dessa forma apresentamos, a partir de nossos trabalhos etnográficos de mestrado e doutorado[2], como o futebol praticado por mulheres no Brasil se desenvolveu entre os seguintes espaços de tempo: de 1980 a 1990, de 1900 a 2000 e de 2000 aos dias atuais.

O intuito, contudo, não é traçar uma história cronológica e finalizada sobre o futebol brasileiro praticado por mulheres, mas apresentar às leitoras e os leitores um panorama mais amplo que mostra como essa prática esportiva veio se modificando ao longo dos últimos anos, ampliando espaços, adquirindo visibilidade, profissionalizando-se e permitindo que cada vez mais mulheres possam escolher esse esporte como meio, possível, de vida. Nesse sentido, a pergunta que orienta esse trabalho é: como são percorridas e vivenciadas as carreiras das futebolistas no Brasil? Na tentativa de responder a esse questionamento, traremos nossos materiais de campo para a discussão tais como recortes de jornais das épocas supracitadas, biografias de jogadoras e técnicas e entrevistas com atletas e ex-atletas da modalidade.

É partir da análise dos períodos da prática do futebol de mulheres no Brasil, que conseguimos contrapor e problematizar os processos profissionalização descritos pela historiadora inglesa Jean Williams (2011). Ela descreve a existência de três fases do profissionalismo durante a trajetória do futebol de mulheres no mundo: micro, meso e macro. O microprofissionalismo corresponderia ao período anterior à criação de ligas apoiadas pela FIFA e UEFA, entre as décadas de 1960 e 1970, quando uma nascente do profissionalismo fora primeiro desenvolvido. A existência de campeonatos amadores, sobretudo na Itália, possibilitou que a carreira de algumas dessas jogadoras pioneiras se destacasse. O mesoprofissionalismo remeteria ao intervalo de tempo que o futebol de mulheres na Europa já estava sob a jurisdição dos órgãos oficiais do futebol, FIFA e UEFA. Esses anos ficaram marcados pelo crescimento de oportunidades internacionais apresentadas pela criação do UEFA Women's Champions League e pelo estabelecimento da Copa do Mundo de Futebol Feminino.  A última fase, o macroprofissionalismo, apresenta-se com uma multiplicidade de competições e torneios internacionais, onde as mulheres podem mostrar seu talento no futebol. Corresponde ao período atual, sendo marcante a intensificação das relações sociais em escala mundial, caracterizadas pelo processo de globalização. Embora se possa estimar com certa confiança que poucas mulheres ganham em tempo integral salário jogando futebol na Europa, é possível ver que existem mulheres ocupando funções auxiliares em várias outras áreas: técnica, relações públicas, fisioterapia, administração e psicologia do esporte. A autora ressalta que tais fases descrevem uma infraestrutura crescente de oportunidades às futebolistas em geral, porém, existe variação entre os países europeus e, mesmo, entre os países em desenvolvimento.  E ao Brasil, será que o modelo de Williams pode ser aplicado? Ou haveria aqui um quadro diferente?

 

1. Futebol praticado por mulheres entre os anos de 1980 e 1990 - O Esporte Clube Radar e uma perspectiva inicial de carreira: a luta pelo reconhecimento do futebol praticado por mulheres no Brasil.

 

O Esporte Clube Radar (ECR) foi um dos maiores expoentes do futebol praticado por mulheres no Brasil durante a década de 1980, sendo campeão de todas as edições da Taça Brasil de Futebol Feminino. A equipe carioca, aliás, surgiu em 1981 como forma de pressionar a Confederação Brasileira de Futebol a regulamentar o esporte que teve sua proibição revogada em 1979. Na memória das futebolistas da época ainda paira a sensação de luta que aqueles anos representaram. Inicialmente como uma luta pela regulamentação do Futebol Feminino, mas que depois ganhou ares de luta por uma carreira de futebolista no país. Os relatos dessas mulheres são muito parecidos quando se referem às dificuldades encontradas ao tentar seguir uma carreira como futebolistas:

 

[...] Eu tenho história pela minha luta pra conseguir que o futebol seja reconhecido. E não era fácil. Eu entrava nos clubes. Eu ia treinar com Sócrates, Casagrande no Corinthians e conversava com eles, o que eles achavam (Edna).

Começamos e levamos muita bordoada, muito pau. Muito xingamento. [...] há 20 anos, 30 atrás o Futebol Feminino não podia ser jogado. Futebol não podia ser jogado por mulheres. Era ridículo, era vexatório, era feio. Era o esporte de homens, masculinizava e todas aquelas coisas (Gabriela).

[...] Senão, chamavam a gente de tudo: oh vai fazer isso, suas quengas, suas não sei o quê. Xingavam de tudo: menos de rainha e de gostosa (risos).  Mas o bom de tudo isso é que a gente nunca, nunca deixou de acreditar (Edna).

 

 

Discursos semelhantes também são encontrados em diversos relatos da época. O jornal Chana-com-Chana - editado pelo Grupo de Ação Lésbico Feminista (GALF) - de dezembro de 1982, traz uma entrevistas com duas integrantes da equipe Café Futebol Clube[3], que naquela ocasião havia representado a Seleção de São Paulo no encerramento do I Festival Nacional das Mulheres na Arte no Morumbi em setembro de 1982. As futebolistas jogavam há mais de um ano na equipe e afirmaram que suas contribuições eram a “de não desistir mesmo com todas as proibições”. Como o futebol estivera proibido para as mulheres até 1979 (Franzini, 2004). Jogar no Morumbi, numa época em que não era permitido o confronto entre equipes de mulheres em campos considerados oficiais, representou um grande avanço em direção à regulamentação (anunciada apenas em abril de 1983). Isso tudo porque possibilitou uma maior visibilidade a essas futebolistas: o jogo foi televisionado e os grandes veículos de comunicação abriram espaço para a discussão do que ficou conhecido como “Anistia ao Futebol Feminino”.

Na Bahia, Enny Vieira de Moraes (2014) enfatiza o importante papel da cidade de Feira de Santana na formação de futebolistas durante as décadas de 1980 e 1990. Aliás, a ex-camisa dez da Seleção Brasileira, Sisleine do Amor Lima ou Sissi, saiu de sua cidade natal no interior do estado para treinar em Feira ainda muito jovem. A autora trabalha com a ideia de que a história do futebol praticado por mulheres no Brasil esteve marcada por formas sequenciais de violências: violência simbólica, no que tange ao silenciamento/esquecimento dessa modalidade; violência pela falta de incentivos/investimentos; e violência por serem extremamente cobradas por bons resultados mesmo existindo essas dificuldades. A luta para ganhar esse espaço, considerado tão masculino no país, e mostrar uma outra proposta de futebol atinge uma dimensão política que irá fazer com que cada futebolista que tenha atuado nesse período venha a carregar o mesmo “fardo” em suas trajetórias individuais e coletivas (Velho, 2003).

Mas de que forma foram construídas essas trajetórias? Constituem-se na maioria das vezes de forma progressiva, segmentada em etapas que começam já nos primeiros contatos com a bola. No Esporte Clube Radar, a maioria admitiu ter começado a jogar futebol ainda criança, como brincadeira com os irmãos. A brincadeira foi ficando cada vez mais séria até virar atividade principal na vida delas. Apenas uma relatou o incentivo da família, no caso, da mãe. A falta de apoio da família é sentida como uma negação com ares de preconceito em relação à escolha da jogadora:

Eu jogava com o pessoal de roupa. Podia tá o maior calor na praia, e eu de roupa porque se meu irmão me visse contava tudo para meu pai. E aí, era castigo. Meu irmão tinha ciúmes que eu jogava melhor do que ele. Às vezes eu estava jogando e pessoal sabia e já avisava: “Fulana, teu irmão, te esconde, te esconde”. E eu sentava e fingia que estava só assistindo (Alice).

Sou filha de militar, neta de militar, sobrinha de militar (risos). Lá de Curitiba, né. Eu digo o seguinte, que quando você tem um objetivo. Quando você tem algo que você acredita, você não deve desistir nunca. Porque se fosse outra teria desistido. [...] Não, nunca me apoiaram. Não, ninguém nunca me apoiou. Eu é que sempre corri atrás. Sempre fui teimosa. Sempre fui guerreira mesmo. Quando eu quero uma coisa eu vou atrás (Edna).

 

No entanto, com o tempo e o sucesso dessas mulheres dentro do esporte, os familiares, inicialmente em desarcordo, passavam a acompanhar a carreira das atletas: “meu pai viu um jogo em um campeonato, depois desistiu quando viu a torcida me chamando de sapatão (Alice)”. Leite Reis (1997) identificou entre um grupo de futebolistas no Rio de Janeiro e em São Paulo uma tendência semelhante.  Decorrido o período de divergências quanto à escolha das filhas, as famílias passavam a dar incentivo. Segundo a autora, os motivos para tanto corroboravam com a percepção de que essas futebolistas surpreendiam demonstrando suas habilidades técnicas. É como se o talento apresentado pelas filhas, irmãs, netas e a possibilidade de prosperar apagasse as marcas de masculinidades presentes outrora no esporte. Dessa forma, a proibição acaba perdendo o sentido e concede espaço ao incentivo traduzido, aqui, como a presença de seus parentes aos jogos: “Ah, na época diziam... futebol é coisa pra homem. Minha mãe dizia isso. Minha mãe... eu estou lá jogando em Curitiba, quando a seleção paulista foi jogar em Curitiba. E minha mãe lá com uma bandeira. Ué, você não falou que futebol era coisa para homem (Edna)”?

O primeiro passo conquistado por essas mulheres foi o reconhecimento e estímulo de seus familiares. Agora poderiam comportar-se como jogadora de futebol dentro de casa sem acarretar em discussões em torno de sua escolha. O apoio da família torna-se muito importante diante da situação de um campeonato. Se na mesma cidade ou próximo, eles poderiam estar presentes na torcida. Se em alguma localidade distante, eles cedem permissão para que a atleta viaje, participe, sem gerar conflitos.

O Esporte Clube Radar caracterizou-se como um dos primeiros clubes de futebol de mulheres a oferecer ajuda de custo às futebolistas que faziam parte da equipe. Em 1985, a média salarial das jogadoras do Radar variava entre 70 000 e 150 000 cruzeiros - ainda representava menos de um salário mínimo que na época girava em torno dos 166 560 cruzeiros. O valor, assim como no início pós-regulamentação, continuava sendo considerado muito baixo. Além do salário, as mulheres que vinham de outras cidades recebiam moradia, alimentação e transporte. Então, a esperança de uma profissionalização do futebol de mulheres fazia com que muitas jogadoras abandonassem suas regiões e emigrasse para o Rio de Janeiro. Soma-se a isso a oportunidade de jogar na melhor equipe do país e no valor simbólico de residir e trabalhar em Copacabana durante o período (Velho, 1989). A partir dos relatos das ex-futebolistas do Radar, pode-se ter uma leve ideia de como esses processos aconteciam. O presidente do clube, Eurico Lyra Filho, era o responsável pelas decisões/negociações:

 

Nós jogávamos e ele também via nos campeonatos, na Taça Brasil, tal. E ele também ia. Ele ia ver os torneios, campeonatos regionais. Ele era muito inteligente, ele era um visionário. A parte boa dele é que ele era um empresário, e ele era um visionário, ele amava Futebol Feminino. Então, por isso ele foi incrementando. E ele fez um time de handebol também. Fez um time de handebol. Inclusive, eu joguei no time de handebol do Radar. Eu jogava no time de futebol e no time de handebol. Ele trouxe meninas do Paraná, que na época Cambé era campeão brasileiro de handebol e base da Seleção brasileira. Inclusive nós tínhamos ido para o sulamericano da Argentina na seleção 1983. Ele fez um super time de handebol, tá. Pra tentar impulsionar o handebol. Mas ele gostava do futebol. Ele ficou um tempo. Ele fez o masculino e o feminino. Então, respondendo a sua pergunta, ele ia, via as meninas jogando, convidava, dava moradia, tá, dava local para elas morarem. Ele sempre fazia um patrocínio com alguma empresa, um banco. Alguém que colocava Radar e a marca do patrocinador. Era uma coisa mínima? Pra época nem tanto. Algumas meninas jogavam e viviam daquilo. O que eu nunca achei que era certo, você parar de estudar. E algumas meninas que vinham de fora elas paravam de estudar. Não davam continuidade. E essa questão para minha geração 1980, 1990 ela não foi legal porque o esporte também requer intelecto (Gabriela).

 

O convite vinha pessoalmente, ou era negociado entre dirigentes. Era incomum alguma jogadora, durante a década de 1980, ser agenciada por empresários. O assessoramento ficava por conta do clube. As “meninas de fora” vinham de vários estados da federação que possuíam ligas de futebol, principalmente: Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A descrença no Futebol Feminino brasileiro torna-se bem evidente na advertência de Gabriela às chamadas “meninas de fora”.

A realização de campeonatos oficiais no Brasil - estaduais e nacionais - foi mais uma das etapas atingidas pelas futebolistas brasileiras daquela época. Assinada a regulamentação em 1983, faltava um calendário de competições que pudesse, além de tornar ativo o futebol praticado por mulheres no país, atrair público e patrocinadores aos clubes brasileiros. No entanto, competições como a Taça Brasil e o Campeonato Carioca eram organizados pelos próprios dirigentes dos clubes. O formato da Taça Brasil envolvia geralmente oito clubes, divididos em dois grupos dentro dos quais todos jogavam entre si. Os quatro melhores pontuadores passavam para uma semifinal – mata-mata – e depois final. Na Taça Brasil, por exemplo, os campeonatos aconteciam de acordo com disposição dos clubes e ligas estaduais (nos estados onde existia alguma liga organizada). Duravam cerca de uma semana, sem existir uma data fixa:

 

Tabela 1 - Taças Brasil de Futebol Feminino (ALMEIDA, 2013:123)

ANO

LOCAL

CLUBES PARTICIPANTES

PARTICULARIDADES

1983

Rio de Janeiro/RJ

Radar-Mondaine (RJ), Goiás (GO), Cruzeiro (MG), ?

Disputada no Estádio do Olaria (Zona Norte da cidade) entre os meses de junho e julho.

1984

Marechal Hermes/RJ

Radar-BRJ (RJ), Internacional (RS), São Paulo (SP), Clube Atlético Mineiro (MG), ?

Os jogos foram disputados em janeiro.

1985

Rio de Janeiro/RJ

Clube Atlético Mineiro (MG), Internacional (RS), Seleção de Goiás (GO), Radar (RJ), Seleção de São Paulo (SP), Tuna Luso Brasileira (PA).

Disputada entre os dias 8 e 12 de janeiro de 1986.

1986

Campinas/SP

Radar (RJ), ABA (SP), Internacional (RS), Brasília (DF), Pedro Ludovico (GO), T. de Leopoldina (MG), Saad (SP), São Paulo (SP).

Foi disputada entre os dias 26 de outubro e 2 de novembro.

1987

__________

Radar (RJ), ?

Aconteceu entre os meses de setembro e outubro.

1989

Niterói/RJ

Radar (RJ), Saad (SP), ?

Em 1988 não houve edição da Taça Brasil. Em 1989, foi disputada no Estádio Caio Martins.

 

Os dados referentes à tabela foram obtidos através de jornais e revistas da época, além de sítios da internet e vídeos. No entanto, não foram encontradas reportagens esclarecedoras de todas as edições da Taça Brasil de Futebol Feminino. A CBF tampouco guarda arquivos dessa época, já que não participava diretamente da organização da Taça Brasil. O não reconhecimento do futebol de mulheres no Brasil durante os anos 1980 passa pela falta de interesse em conservar a memória dos campeonatos mais importantes disputados no período. O quadro incompleto demonstra um pouco dessa situação de invisibilidade em que o Futebol Feminino está submetido.

Gabriela, uma das ex-futebolistas relata, ao relembrar dos torneios disputados quando defendia o Radar, que as delegações ficavam instaladas no mesmo lugar, geralmente, em estádios. Mas o ECR, vez ou outra, tinha o diferencial de se hospedar em hotéis: “o torneio na época, Taça Brasil, era uma semana. E chegava assim: no final de semana e no outro domingo da segunda semana já acabava. [...] em São Paulo teve um campeonato que ficamos no Pacaembu com todos. E Cabo Frio no torneio que teve, a gente ficou num hotel. Mas assim, era muito rápido (Gabriela)”. A realidade do ECR era diferente dos demais clubes brasileiros. “O Radar se tornou sensação no Brasil: campeonatos, Taça Brasil, nós ganhávamos tudo (Gabriela)”. Essa diferenciação criou uma postura diferente entre as jogadoras do time que sabiam que suas atuações contribuíam para o reconhecimento do futebol de mulheres no Brasil. Em entrevista à revista Placar, a goleira Meg do Radar durante os treinamentos para o Mundialito de Cabo Frio em 1984 afirma: “dependendo de nossas atuações, poderemos despertar a atenção de empresas que queiram patrocinar outros times. Aqui no Rio, o Bangu já fechou as portas e não temos mais um grande rival”. A ideia de as atletas do Radar estarem mais em foco, serem campeãs nacionais e jogarem torneios internacionais possibilitava uma reapresentação delas mesmas, agora com papel político bem definido, a de uma espécie de “emissárias” pelo reconhecimento do futebol de mulheres junto à sociedade e aos órgãos esportivos.

Sobre os campeonatos, enquanto no Rio de Janeiro o Radar/Eurico Lyra parecia encabeçar as questões relativas ao futebol de mulheres, em São Paulo, uma das entrevistadas contou de sua militância como futebolista na briga para que o esporte tivesse um calendário forte, possibilitasse melhores condições para suas jogadoras e não fosse vítima de tanto preconceito: “Na época eu seria uma Marta. Mas só que uma Marta diferente. Eu estava lutando para que o Futebol Feminino fosse reconhecido, pra que o futebol fosse visto com outros olhos (Edna)”. Nesse ponto, chegamos aos dois últimos estágios de reconhecimento: o profissionalismo e o público. A ideia de trabalhar os dois em conjunto se atribui ao fato de um ser tratado em decorrência do outro, tanto nas entrevistas que saíram na imprensa da época, quanto nas narrativas das ex-futebolistas. A ordem varia. Certas vezes o profissionalismo parece acarretar no reconhecimento público, em outras o reconhecimento gera o profissionalismo:

A vida pra mim depois que eu comecei a liderar o Futebol Feminino foi muito cansativa. Porque eu enfrentei muita barreira, muito preconceito nos clubes. Mas eu, graças a Deus, eu consegui me impor. Consegui mostrar para as pessoas que Futebol Feminino era um esporte como qualquer outra para mulheres, tá. Quando entrei no campo do Coritiba, que eu fui com o pessoal do Palmeiras, né. Era Palmeiras e Coritiba. Eu até chutei uma bola pro Leão que era o goleiro da época, do Palmeiras. O pessoal me disse: Vai levar tomate! Eu disse: Não tem problema! Eu estou acostumada (Edna).

 

Então veja, o Brasil de 2004 pra cá: em 2004 ficou em segundo, 2007 em segundo no mundial, 2008 ficou em segundo na Olimpíada. Ano passado que não foi bem no mundial da Alemanha. Caiu nas quartas. Mas mesclou mais. As meninas que gostam de futebol, de uns dez anos pra cá elas estão jogando, elas estão indo, entendeu? Então não tem aquela de não poder jogar porque é esporte de... Então, o que está acontecendo? Está tendo uma diversidade maior de atletas. A seleção, ela constantemente pode mudar. Você não vê mais as mesmas caras. Agora você vai me perguntar: por que é que não ganha? Por que que não ganha? Se tem talento? Porque não tem apoio. Tem talento, mas têm o apoio que merecia. Não tem o carinho, não tem o amor que merece o Futebol Feminino para chegar a uma medalha. Na hora do sufoco, do vamos ver mesmo, se tem que ter preparo psicológico, se tem que estar acarinhado. Poxa, eu faço um esporte que todo o mundo aplaude, ninguém critica. Mas, se você carrega essa carga ainda de... Mudou muito da minha época, mas ainda existe. Poxa ninguém quer patrocinar. Patrocina um pouco e cai fora. Porque não vou colocar minha marca no Futebol Feminino. Será que vai vender? Né, não vai vender? Quem vai ver? E aí, não ganha eu acho por causa disso. Sabe, tem poucos campeonatos. Você joga uma ou duas vezes por ano, você imagine? É muito pouco. O pessoal lá fora tem o campeonato da UEFA feminino. Sai de lá, vai pra cá. Vai da Inglaterra, vai para a Ucrânia, vai pra tudo quanto é canto. Mas eu não estou me queixando não. Isso é só os fatos. Queixando um pouquinho (Gabriela).

 

            Outra questão importante está na aceitação pública do esporte. A vontade de sentir-se querida pelo público contrasta com o sentimento de rejeição inspirado pelas fortes críticas sofridas em campo. As futebolistas são cobradas em função do futebol praticado por homens no Brasil. Se hoje somos pentacampeões com os homens – tricampeões na época em que o Radar disputava jogos –, o natural seria, seguindo essa linha reflexiva, que as mulheres obtivessem resultados semelhantes. Esse pensamento contraditório gera insatisfação no público, já que reforça o estigma do futebol não ser um esporte para mulheres.

 

2. Futebol praticado por mulheres entre os anos de 1990 e 2000 - Uma proliferação de imagens e momentos: o corpo e a sexualidade da mulher jogadora de futebol em foco. 

As jogadoras pioneiras, da década de 1980, enfrentaram e driblaram a proibição que existiu até o final de 1979. Conquistando o reconhecimento, elas conseguiram estabelecer um circuito de campeonatos regionais e nacional para a modalidade. Mesmo que pouco noticiados na mídia brasileira, esses campeonatos existiram e são significativos para entender o processo de visibilidade do futebol de mulheres no Brasil. Assim, depois desse primeiro movimento de expansão do futebol - no qual elas podiam agora, legalmente, disputar torneiros e campeonatos da modalidade bem como se organizar em equipes regionais - o mundo acompanhou a organização da primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino, sediada na China, no ano de 1991. Paralelamente à criação da primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino, a CONMEBOL (Confederação Sul Americana de Futebol), criou a Copa América de Futebol Feminino, sediada - pela primeira vez - no Brasil, também no ano de 1991.

            Dessa forma, o espaço que compreende o ano de 1990 ao ano 2000, pode ser encarado como momento em que novas possibilidades no campo esportivo futebolístico surgiram para as mulheres brasileiras. Passamos da ausência delas nos campos futebolísticos - até o final do ano de 1979 -, para a proliferação de campeonatos regionais e nacionais - entre os anos de 1980 e 1990 - e, finalmente, para a criação de grandes torneios internacionais da modalidade. Nesse sentido, vale registrar que a Seleção Brasileira de Futebol Feminino foi montada, pela primeira vez, no ano de 1988, tendo, em grande parte do seu elenco, jogadoras do Esporte Clube Radar.

 

copa do mundo fut fem.png

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 1 - Copa do Mundo de Futebol Feminino (Fonte: Wikipédia)

 

copa america.png

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 2 - Copa América de Futebol Feminino (Fonte: Wikipédia)

            Essas mulheres não podiam mais ser ignoradas pelos veículos de comunicação brasileiros. As revistas esportivas da época - escolhemos trabalhar com a Revista Placar, sobretudo pela facilidade de acesso ao seu acervo - abriram espaço para noticiar não somente a Seleção Brasileira de Futebol Feminino, como também pequenas equipes espalhadas por todo território nacional. Contudo, as reportagens da época possuíam um tom fetichizador, exotista e sexista sobre a presença das mulheres no futebol. Destacamos quatro edições da Revista Placar cuja a matéria de capa remetia à temática, publicadas entre os anos de 1990 e 2000:

1.      Na revista de Agosto de 1995 (nº1106), a capa traz a seguinte foto: quatro mulheres brancas e magras aparecem abraçadas de costas - uma delas possui unhas super compridas e está segurando/apertando o bumbum da colega ao lado. Todas usam pequenos shorts azuis - sem calcinha - e camisas da Seleção Brasileira. A reportagem principal aparece sob a seguinte chamada: Futebol Feminino, as garotas batem um bolão e até trocam camisas depois do jogo!

2.      Na Placar de  Janeiro de 1996 (nº 1111), encontramos a seguinte capa: “Cleidy Ribeiro, a juíza mais gostosa do Brasil”. Cleidy aparece com uma maquiagem super elaborada (olhos pretos esfumados e batom vermelho), vestindo uma roupa curta - que não é a roupa de trabalho de juízes e juízas em campo -, segurando um cartão vermelho em riste e fazendo uma pose bastante sensual.

3.      Na capa de Setembro de 1996 (nº 1119), podemos ver a ex-atleta Susana Werner semi-nua, segurando à frente dos seios uma bola de futebol com símbolos do Fluminense. Abaixo da bola e escrito acima do umbigo dela, podemos ler a seguinte chamada: “Suzana Werner, ACREDITE, ela joga BOLA!”. Suzana sorri para a foto, de maneira bastante sensual, também.

4.      Por fim, a revista de Março de 1997 (nº 1125), a capa traz quatro jogadoras – dentre elas novamente Suzana Werner – usando biquínis e chuteiras. Todas são brancas e fazem poses sensuais. A chamada da reportagem é a seguinte: “GOSTOSAS!! Haja coração... Quem são as deusas do futebol feminino”.     

Para além das imagens das capas, as reportagens também assumem um tom bastante fetichista em relação ao corpo das mulheres jogadoras:

“Um boleiro fanático encontra uma lâmpada mágica. Surge o gênio, que se oferece para realizar três sonhos. 'Primeiro, eu quero uma louraça de olhos verdes com corpo escultural'. E o felizardo prossegue: 'Que ela se amarre em futebol e seja minha companheira nos estádios. E por fim, que ela forme dupla de ataque comigo nas peladas de terça-feira'. Não foi preciso nem esfregar a lâmpada. O desejo se materializou na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, na pele de uma moça de olhos verdes. A garota da lâmpada atende pelo nome de Susana Werner” (…) No Flu, não faltam garotas bonitas e, ideia genial, o patrocínio foi colocado na região das jogadoras mais valorizada pela torcida: o bumbum”. (REVISTA PLACAR, Setembro de 1996)

 

Ainda na mesma edição, uma reportagem intitulada “Valeu, meninas! E agora?”, traz a foto da Seleção Brasileira de Futebol Feminino, a reportagem diz: “As jogadoras brasileiras surpreenderam com o quarto lugar nas Olimpíadas. Agora, além de superar os traumas de um passado recheado de histórias de homossexualismo, querem acabar com as fofocas do presente para que o futebol feminino possa estourar”.

Já na edição de agosto de 1995, a reportagem inicia-se da seguinte maneira: “Perninhas de fora, chuteiras pequenas, top nos seios, as garotas finalmente descobriram a paixão pela bola”. Prosseguindo nesse tom, colocam a foto de uma jogadora com uma bola no centro da página. Do corpo dela partem algumas setas com as seguintes recomendações:

“Na guerra dos sexos, as garotas perdem em alguns itens, mas já estão equilibrando o jogo.

Seios: Área de perigo. Extremamente sensível, uma bolada nos seios é o equivalente feminino a chute bem ali no playground masculino. Por uma questão de conforto, as garotas usam sutiãs especiais, mais largos e firmes.

Força: o hormônio masculino testosterona é responsável pelo aumento da massa muscular. Por causa da falta desse hormônio, as mulheres têm menos impulsão, menos velocidade, menos potência nos chutes – uma defasagem média de 20%.

TPM: A tensão pré-menstrual tira muita mulher do sério, mas nem sempre prejudica o desempenho no esporte. Isso varia de pessoa para pessoa. Quanto ao fato de estar menstruada, os médicos até recomendam o esforço físico para a mulher.

Glúteos: Os glúteos enrijecem por causa dos constantes movimentos de corrida e dos chutes. Mas ao contrário do que muita gente diz, futebol não masculiniza. A mulher não corre o risco de ficar com bumbum reto, como o dos homens. Por natureza, elas têm o quadril mais largo. O que dá forma não é o músculo, mas o acúmulo normal de gordura na região.” (REVISTA PLACAR, Agosto de 1995).

 

 

            Em nenhum momento as mulheres foram descritas e/ou tratadas como profissionais da bola. Quando havia alguma entrevista com elas, as perguntas versavam sobre questões como: cabelos, unhas, sensibilidade, sexo e tipo de homens com os quais elas se relacionariam. Dessa forma, sob o argumento de dar visibilidade às novas boleiras durante a década de 1990, muitas reportagens reforçaram os estereótipos sobre o que seriam os “padrões femininos” para corpo, beleza, sexualidade; bem como produziram uma série de hipersexualizações a respeito dos corpos das jogadoras.

Nesse sentido, a socióloga Miriam Adelman, nos mostra que as grandes problemáticas existentes na prática física esportiva das mulheres são aquelas que buscam definir o padrão ideal de corporalidade feminina, bem como as que questionam a sexualidade das atletas:

Portanto, torna-se interessante procurar entender exatamente o que está em jogo quando as mulheres se tornam atletas e, especificamente, atletas profissionais, identificadas com o esporte não só pelo prazer de praticá-lo, mas como forma de ganhar a vida e, ainda mais, participar de uma cultura, anteriormente masculina, que torna o/a atleta um símbolo do sucesso e da cultura nacional. Cabe perguntar em que medida a participação esportiva contribui para uma re-significação da corporalidade feminina, sendo possível também que prevaleça uma apropriação da atividade esportiva que consegue enquadrá-la dentro de padrões de normatividade social que reproduzem o controle (masculino, ou masculinista) sobre os corpos das mulheres (Adelman, 2003).

 

Podemos perceber, a partir de nossas análises, que o ambiente em que vivem as jogadoras de futebol mostra-se bastante delicado e ambivalente. Inicialmente acreditava-se que mulheres não poderiam jogar futebol, pois seus corpos eram preparados pela natureza para a maternidade, acreditava-se, inclusive, que uma pancada no baixo ventre poderia deixá-las inférteis (Franzini, 2005). Posteriormente, iniciaram-se as discussões sobre a existência de atletas exibindo musculaturas transbordantes, especulava-se sobre o quão saudáveis seriam para o corpo e para a saúde da mulher. Tentava-se, a todo custo, desestimular as mulheres a pratica esportiva através de discursos calcados em questões biológicas e sexuais. O corpo da mulher atleta sempre aparecia - e ainda aparece - colocado na berlinda das especulações.

Já o controle masculino ou masculinista, de que nos fala a socióloga Adelman, fica evidente nas reportagens da Revista Placar. O fetiche e a objetificação dos corpos das mulheres jogadoras ficam claros em todas as passagens aqui apresentadas. Na óbvia tentativa de buscar atenção e aceitação à nova modalidade esportiva, tentou-se extirpar traços masculinos do futebol praticado por mulheres, exaltando-se, portanto, os traços e os padrões de “feminilidade” das mulheres - seja através de fotografias sensuais das atletas, seja através de entrevistas picantes sobre a sexualidade das mesmas. Ser jogadora de futebol, na década de 1990, era ser, obrigatoriamente, sensual, graciosa e assim provocar atração e desejo no sexo oposto. Nesta concepção, este é, supostamente, o modelo a ser seguido por elas:

O controle da sexualidade das mulheres, a exaltação da maternidade e da criação de uma raça viril (...) eram percebidos amplamente como meios fundamentais para controlar a saúde e a riqueza do corpo politico imperial masculino (...) a pureza sexual surgia como metáfora de controle para o poder racial, econômico e político [dos homens] (Mcclintock, 2010, grifo nosso).

 

Ao longo da história do futebol praticado por mulheres, uma série de fatores e questões foram elencadas para justificar o afastamento delas dos campos de futebol: as mulheres são do “sexo frágil” e seus corpos, portanto, não aguentariam práticas esportivas intensas como o futebol; o corpo da mulher, que se espera “feminino” e “cheio de curvas”, quando submetido à prática esportiva adquire contornos “masculinizados”, tornando-se, portanto, desagradável aos olhos alheios; a sexualidade da mulher também é colocada em questão, pois caso pratique esportes, como o futebol, que é predominantemente masculino, é muito provável que ela seja, ou venha a tornar-se, homossexual. Dessa forma, o futebol praticado por mulheres durante a década de 1990 era constantemente pressionado a ser um esporte praticado por mulheres “femininas”, belas, brancas e heterossexuais. Apesar da crescente proliferação de campeonatos nacionais e internacionais na época, muitas trajetórias foram interrompidas nesse momento da história devido aos insistentemente reiterados argumentos machistas, homofóbicos, racistas e misóginos.

                                               

3. Futebol praticado por mulheres entre os anos de 2000 e 2015 – Perspectivas, possibilidades e sonhos: novos caminhos para o futebol de mulheres

 

Desde o ano de 1979, quando caiu o Decreto-Lei 3.199, até o começo dos anos 2000 intensas transformações modificaram o cenário da prática futebolística de mulheres brasileiras em todo território nacional. Esse foi o momento propício para criação de novas competições no Brasil – de nível estadual e nacional –; foi, também, quando ocorreu a primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino e a primeira Copa América de Futebol Feminino (ambas no ano de 1991). Por fim, como consequência dessa expansão, surgiram novos espaços para que novas atletas fossem descobertas e lançadas no circuito esportivo.

O futebol feminino não se tratava mais de um esporte proscrito, ele ganhava – mesmo que timidamente – espaços dentro e fora de campo para crescer e prosperar. As dificuldades que as atletas precisavam enfrentar naquela época, contudo, continuam presentes nos dias atuais. Os preconceitos (racistas, sexistas e de gênero) ainda se articulam no cotidiano dessas atletas criando barreiras e novas formas de opressão que terminam por afastar algumas delas dos campos.

Nem tudo, felizmente, são dificuldades e impedimentos. Muitas dessas mulheres driblaram e continuam driblando esses entraves. Há um legado que a primeira (anos 1980-90) e a segunda (1990-2000) geração de futebolistas deixaram para as novas atletas da modalidade. Essas últimas, que nasceram muito depois da queda do Decreto-Lei 3.199, já estão inseridas numa sociedade que não aceita mais – calada e passivamente – os mandos e desmando das instituições reguladoras da modalidade no Brasil e no mundo. Muito menos aceitam que seus corpos sejam hipersexualizados, sob o pretexto de que essa manobra traria maior visibilidade ao futebol de mulheres.

O que trazemos para problematizar nesse momento é o período que compreende o ano 2000 até o ano 2015. Pretende-se mostrar – a partir do trabalho de campo desenvolvido com jogadoras de diversas equipes regionais brasileiras - como a nova geração de mulheres boleiras articula-se de maneira criativa e empoderada para que o Futebol Feminino consiga, de uma vez por todas, visibilidade e espaço – político, social, cultural – em nossa sociedade. Dessa forma, utilizamo-nos de entrevistas e observações realizadas com jogadoras de equipes de diferentes estados brasileiros. O intuito é delinear as teias de relações que compõem os processos de profissionalização, levando em conta as trajetórias, carreiras e os campos de possibilidades que essas mulheres movimentam e criam cotidianamente.

As narrativas são bem elucidativas:

“A minha família falava que eu era menina e que eu não podia jogar futebol, porque isso é coisa de menino. Meus irmãos me chamavam de 'maria-macho', mas eu continuei correndo atrás, porque eu gostava. Agora eles até entendem.” (Trecho da entrevista concedida pela jogadora Ana, em 2013, na época a jogadora possuía 12 anos de idade)

 

“Eu comecei a jogar futebol na escolinha com meus irmãos, é que sou gêmea, gêmea com um menino. Colocaram meu irmão na escolinha e eu falei ‘ah também quero’, porque era uma coisa nova. E meu pai também foi jogador de futebol. Minha mãe falou que não ia dar em nada, que era só pra fazer uma atividade física, então tudo bem. Aí começou a escolinha e começaram aqueles campeonatinhos de escolinha. E eles [os meninos] reclamavam, ‘ah, eu não vou jogar contra menina, que menina é muito chorona, vai tomar bolada e vai chorar’. Tinha campeonatinho de federações e diziam: ‘não, não, porque não aceita menina, tem uma lei, uma regra, só menino pode jogar’. Aí minha mãe ia lá, conversava com o pessoal ‘ah, eu queria vê-la jogar’, e eles diziam ‘ah, tá bom, então você joga’. O nosso time ganhava sempre. Os pais reclamavam ‘não, mas menina não pode jogar! Porque meu filho ficou tomando ‘rolinho’ de menina, assim não dá’.” (Trecho da entrevista concedida pela jogadora Silvana, em 2011, na época a jogadora possuía 23 anos de idade).

 

“Eu considero o futebol profissional, apesar de ele ser amador no papel, eu ganho para fazer isso, eu saio de minha casa às oito da manhã, eu chego em casa às sete horas da noite, trabalho dois períodos por dia, então eu considero isso como uma profissão. Seria egoísta, deixa eu achar outra palavra, seria amadora em dizer que a profissão é amadora, porque eu luto pela profissionalização dela.” (Trecho da entrevista concedida pela jogadora Marli, em 2011, na época a jogadora possuía 30 anos de idade).

 

Ana, atualmente com 14 anos, é uma adolescente que está dando seus primeiros passos em direção à profissionalização esportiva no Futebol Feminino. Apesar de enfrentar algumas negativas, por parte de familiares logo no começo da carreira, ela afirma não ter esmorecido em seu desejo. Atualmente cursa o nono ano do ensino fundamental e entra em campo, ao lado de outras meninas, duas vezes por semana com o intuito de aprimorar suas habilidades com a bola. A equipe onde atua, na cidade de São Paulo, oferece a ela, além dos treinos, acompanhamentos diários com fisioterapeutas e psicólogas especializados em desenvolvimento esportivo de alto rendimento. Ana sonha ser uma grande jogadora de futebol.

A jogadora Silvana, com 27 anos, relata que também passou por essa etapa inicial de inserção no mundo futebolístico. Só que diferentemente de Ana, Silvana, assim como as outras jogadoras da sua geração, precisou jogar entre os meninos. Durante muito tempo ela afirmou que jogar de igual para igual – correr, driblar, bater, gritar - era a única forma de assegurar o seu espaço em campo. Dessa forma, antes que pudesse disputar campeonatos só de mulheres, Silvana precisou, por diversas vezes, comprovar o seu valor esportivo diante de treinadores, colegas de time e comissões organizadoras. Ela já foi convocada para atuar na Seleção Brasileira de Futebol Feminino duas vezes.

Por fim, temos Marli ex-zagueira da Seleção Brasileira de Futebol Feminino. Atualmente, com 34 anos, está aposentada dos campos futebolísticos. Ela recorda que no começo de sua atuação com jogadora de futebol, em meados dos anos 1990, precisou enfrentar inúmeras dificuldades pessoais e profissionais. No âmbito pessoal, precisava mostrar seu valor enquanto jogadora de futebol, no profissional, lutava, e ainda luta, para que o Futebol Feminino seja reconhecido como um trabalho. Marli, assim como outras atletas da sua época, foram as pioneiras na busca por mais espaço para a prática do futebol de mulheres no Brasil. Segundo Silvana, é nesse engajamento que jovens atletas, como Ana e Silvana, encontrarão, no futuro, um ambiente futebolístico mais favorável à prática das mulheres e menos hostil a sua inserção no mercado esportivo.

            Sobre o início da prática futebolística dessas três mulheres, pode-se perceber que a hegemonia dos homens no esporte fez com que todas iniciassem suas carreiras entre eles – mesmo Ana, que treina entre meninas atualmente, começou jogando bola com os irmãos. É raro que alguma jogadora de futebol comece a jogar bola em uma escolinha para meninas, até porque elas só começaram a existir mais recentemente, a partir dos anos 2000.

Marli: Até que um dia, vi um cartaz dizendo que ia ter uma escolinha de futebol masculino na época, a Escolinha do Zico, que tinha em Campo Mourão (PR), eu fui atrás para saber como que funcionava esta escola (...). Quando eu cheguei na escolinha, 60 km longe, tinha 150 meninos. Não tinha uma menina a única era eu. Eu pedi se podia jogar ali com os meninos, já tinha uma base, porque eu já jogava antes, mas nunca tinha treinado (...). Eu tinha 13 anos na época.

 

Ainda na trajetória da jogadora Marli uns dois anos mais tarde, aos 15 anos, no ano de 1996:

Marli: Eu estava no ginásio de esportes, num campeonato que tinha na cidade, e tinha um cartaz que haveria uma “clínica de futebol” – clínica de futebol é uma avaliação de futebol – e era só para os meninos, no Palmeiras. Essa avaliação iria acontecer em Terra Roxa, uns 350 km da minha casa. Do lado do cartaz havia um rapaz que disse que iam 12 meninos da cidade fazer o teste (...). Parti, com a mesma autorização do meu pai e da minha mãe (...). Cheguei lá, tinha mais ou menos uns 300 meninos para fazer a clínica, durante dois dias. Eu pedi para o professor Zé Carlos, que foi o professor que me levou para São Paulo dois anos depois, se eu podia fazer a clínica junto. E ele perguntou: “É para você? Você vai se machucar no meio deles”. Eu falei que não, que eu já sabia jogar no meio dos meninos. Ele permitiu que eu jogasse. Resumindo, depois de dois dias da conversa, todos os meninos da minha cidade não passaram. E eu fiquei na clínica, eu passei na clínica. Eu fui a única da cidade que tinha passado nessa clínica (...). E eu era a atração, porque eu sempre fazia as clínicas dos meninos.

 

            O futebol ainda pode ser considerado um lugar socialmente aceito para o ensino dos habitus masculinos. Uma mulher – mesmo que ainda criança – que adentra num campo de futebol, que participa de torneios, que disputa lugares e posições em igualdade de condições com os homens e ainda demonstra habilidades com a bola causa desconforto, surpresa, estranheza, vira atração, uma vez que sua presença desconstrói e desloca esse lugar de perpetuação de masculinidades. “Esses corpos e essas práticas tensionam os olhares acostumados ao mesmo, pois desestabilizam representações naturalizadas que colam no masculino e no feminino diversos atributos, comportamentos, virtudes, atitudes... colam, ainda, diferentes gestualidades, aparências e usos do corpo” (Knijnik, 2010: 9). A mulher, até então associada à maternidade, à delicadeza e à submissão, aparece novamente exibindo um corpo atlético, correndo atrás da bola, gritando com as companheiras e com os adversários, competindo e disputando. Essas representações do feminino são aquelas mesmas construções sociais já vistas outrora e podemos confirmá-las ao constatarmos que em outros países não se associa a prática do futebol à perda de uma suposta feminilidade. Nos Estados Unidos da América, o futebol – soccer - é um esporte sem gênero. Se tivesse um, seria mais feminino que masculino, e é assim também nos países nórdicos da Europa Ocidental. Nos EUA, afinal, são outros esportes que ocupam este lugar de “esporte masculino”, como o UFC ou o football. Vale ressaltar, contudo, que embora existam resistências sociais às práticas futebolísticas de mulheres, há exceções dentro deste cenário. As jogadoras que conseguem traçar uma carreira no esporte contam com o apoio e incentivo de familiares.

Silvana: O meu pai sempre me incentivou ao extremo, toda família. Tio, primos, avô, avó achavam o máximo. Até minha avó gabava muito, porque eu jogava e ficava mais tempo fora de casa jogando do que em casa. Mas a minha mãe.. Bem, agora ela sempre vai assistir os jogos quando pode. Apoio da família nunca faltou.

Mariane: Você ajuda seus pais com o dinheiro recebido jogando futebol?

Silvana: Não, porque eles não são tão ruins de vida, mas eles não têm condições de me bancar [em um time ou faculdade] fora do país. Mas agora meu pai vai fazer uma cirurgia e não vai poder trabalhar, e ele ganha dinheiro vendendo coisas para a gráfica. Ele vai ficar três meses sem trabalhar, então vou dar metade do meu salário para ajudar lá em casa, porque eu não preciso tanto. Ele me perguntou se eu poderia ajudar lá em casa durante esse tempo, e eu falei que sim uma vez que não tenho gastos aqui.

Mariane: O resto das meninas ajuda os pais?

Silvana: Ajuda sim. Tem uma jogadora que mora aqui que ajuda a mãe, fica com pouco dinheiro, mas sempre ajuda a mãe dela. Porque ela lava roupas e sempre precisa de um dinheiro a mais.

 

            Marli, que na época das entrevistas – 2011 - encontrava-se perto de encerrar sua carreira futebolística, falou que, dentro do futebol, o futuro é incerto, por conta da instabilidade profissional que ronda a modalidade.

Marli: Pretendo ficar mais dois anos no futebol, estou fazendo 30 anos agora [2011]. Eu falo que “o futuro a Deus pertence”, o que eu falo aqui hoje, daqui dois anos, pode ser que não tenha acontecido, mas eu tenho muita vontade de fazer mestrado, de morar mais um tempo fora [do Brasil] (...). Eu sou árbitra de futebol de salão, então posso seguir na carreira (...), assim como sou professora de educação física (...). Então, este término de carreira já me levou a pensar em tudo isso, é que eu tenho que ter uma carreira após o término de ser jogadora de futebol. Afinal de contas, eu tive que fazer uma faculdade, porque eu sei que se amanhã eu parar, eu sou uma professora de educação física.

           

            Marli destaca a importância de ter uma profissão, uma vez que o futebol de mulheres não rende de forma estável e segura – as atletas não trabalham com a Carteira de Trabalho assinada, por exemplo - é difícil que se possa sobreviver, depois de encerrada a carreira. Mas há que destacar também que, em alguns casos, a carreira futebolística permitiu que a atleta continuasse os estudos. Ela destaca ainda que somente a jogadora Marta - que ganha “rios de dinheiro”, uma das únicas que vive só do esporte - não tem problema com nada. Então, as outras jogadoras precisam buscar nos estudos e no trabalho uma forma de continuar a vida depois que pararem de jogar.

            A partir do começo do ano 2000, mais investimentos e visibilidade foram sendo conferidos à prática do futebol de mulheres no Brasil. No ano de 2007, o bom desempenho da Seleção Brasileira de Futebol Feminino em campeonatos internacionais (título de campeã nos Jogos Pan-americanos e vice-campeã na Copa do Mundo, ambos conquistados no ano de 2007), fez com que a Confederação Brasileira de Futebol finalmente voltasse a organizar uma competição de nível nacional - antes aconteceram a Taça Brasil (de 1983 a 1993) e o Campeonato Nacional (de 1997 a 2001). Dessa forma surgiu, em 2007, a competição Copa do Brasil de Futebol Feminino. O torneio é organizado no esquema de mata-mata e conta, anualmente, com a participação de 32 equipes. Essas equipes são selecionadas a partir do resultado de cada campeonato estadual. Os estados de Pernambuco, Rio de Janeiro e Santa Catarina enviam duas equipes cada; já o estado de São Paulo envia três equipes. Os demais estados concorrem, cada um, com uma equipe.

 

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 3 - Equipes campeãs da Copa do Brasil de Futebol Feminino 2007- 2015 (Fonte: Wikipedia)

 

Posteriormente, no ano de 2013, criou-se - paralelo à Copa do Brasil de Futebol Feminino- o Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino. Nessa competição, 20 equipes disputaram o título durante a temporada. As equipes vencedoras dessas duas competições - Copa do Brasil e Campeonato Brasileiro - ganharam, cada uma, uma vaga para disputar a Copa Libertadores da América de Futebol Feminino (competição criada no ano de 2009).

 

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 4 - Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino (Fonte: Wikipédia)

 

Figura  SEQ Figura \* ARABIC 5 - Copa Libertadores de Futebol Feminino (Fonte: Wikipédia)

 

            O ano de 2015 foi um momento muito importante para o futebol de mulheres, que impulsionou ainda mais a visibilidade da modalidade no Brasil. Antes do inicio da Copa do Mundo de Futebol Feminino - no Canadá - o Museu do Futebol, em São Paulo, inaugurou e incorporou, permanentemente à sua exposição, um acervo dedicado exclusivamente à história e ao futebol de mulheres no Brasil. Resultado de um esforço conjunto - das pesquisadoras do Museu do Futebol Aira Bonfim, Daniela Alfonsi; da jornalista Luciane Castro; da professora Drª Silvana Goellner e seu grupo de pesquisa Centro de Memória do Esporte (CEME/UFRGS); de ex-atletas da modalidade como Juliana Cabral e outras - a exposição foi inaugurada no dia 19 de maio de 2015.

 

4. O reconhecimento como significado de profissionalização do Futebol Feminino no Brasil.

 

Diante de todo o exposto, acreditamos que tal modelo cronológico de profissionalização criado por Jean Williams não possa ser utilizado no Brasil. O primeiro argumento contrário à aplicação dessa classificação leva em conta o fato de que o Futebol Feminino esteve sob alguma forma de proibição/interdição por mais de quarenta anos: de 1941 a 1983, ano em que a modalidade foi regulamentada e as mulheres finalmente puderam participar de campeonatos oficiais. Jean Williams vai utilizar a Itália como referência, onde nas décadas de 1960 e 1970 já existiam campeonatos que, mesmo armadores, já estavam bem consolidados, permitindo certa movimentação de atletas vindas de outros países.

Em segundo, por mais que o Futebol Feminino esteja mais bem estruturado – com calendário anual, equipes tecnicamente mais fortes e competitivos – os investimentos e ações de promoção são, a maior parte, de iniciativas estatais. A Liberdadores da América Feminina (submetida à CONMEBOL) necessita de um investimento majoritariamente do governo local.  Diferente da competição masculina que dura várias vezes no ano no formato de dois jogos por confronto (os clubes jogam “dentro” e “fora” de casa), a feminina é realizada num país/cidade sede e dura menos de um mês. O Brasil foi sede nas seis primeiras edições, sendo o Ministério do Esporte assumido um dos principais patrocinadores. Além disso, grande parte das futebolistas que compões os principais clubes brasileiros recebem auxílio do governo pelo Programa “Bolsa Atleta” (Pisani, 2013).

O terceiro argumento baseia-se no fato de que o Brasil ainda apresenta-se apenas como “talent exporter”(Tiesler, 2011), sendo um dos países que mais envia futebolistas para clubes estrangeiros. Das atletas que compuseram o quadro da Seleção Brasileira na última Copa do Mundo (entre junho e julho de 2015 no Canadá), cerca de 60% atuavam (também)[4] no exterior. Por outro lado, a recepção de atletas de outras nacionalidades ainda é bastante raro - mesmo de sulamericanas. A estrutura oferecida pelos clubes e campeonatos, bem como os baixos salários, não são ainda suficientes para incentivar esse tipo de mobilidade.

A partir das narrativas aqui contidas, podemos identificar que o reconhecimento aparece abrange uma ideia de carreira, de profissionalização do futebol praticado por mulheres no país. Dentro dessa perspectiva, torna-se evidente o importante papel que as primeiras futebolistas brasileiras, pós-1979, tiveram  na constituição dessa modalidade. Para tanto, trabalhamos com a ideia de luta que aparece de forma recorrente nas falas de futebolistas e ex-futebolistas. Podemos pensar a luta, nesse caso, dentro de uma perspectiva foucaultiana que a considera uma forma de resistência contra as diferentes formas de poder. Foucault (1995:234-235) irá identificar três tipos diferentes de luta social: a primeira é referente às formas de dominação (ética, social e religiosa); a segunda estaria vinculada às formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles próprios estão produzindo; e a última motivada pelas formas de sujeição, de subjetivação e submissão às quais o indivíduo está inserido. O autor ainda adverte que essas lutas podem aparecer misturadas entre si, porém, na maioria das vezes uma delas prevalece.

No caso das futebolistas brasileiras, identificamos os três tipos de luta foucaultiana de forma bastante evidente. A luta contra uma dominação masculina do futebol que impediu através de um aparato jurídico a prática do futebol por mulheres, e que três décadas após a sua legalização e regulamentação continuam exercendo influência sobre as novas gerações. A luta contra uma lógica capitalista que coloca o futebol praticado por homens entre os esportes que mais geram ganhos, ficando as mulheres, bem como outras modalidades de futebol - ou até mesmo outros esportes - fora dos grandes investimentos. Quando as mulheres são inseridas, são hipersexualizadas, como fetiches a serem comercializados pelas mídias, clubes/patrocinadores e Federações. Ações como a da Federação Paulista de Futebol no Campeonato Estadual (FPF) de 2001 é um exemplo. O regulamento impedia que futebolistas de cabelos curtos participassem da competição. O objetivo da FPF era o de aumentar o público: um público com homens que fossem assistir não a uma partida de futebol, mas “a beleza e a sensualidade da jogadora” dentro do que defendiam como a tentativa de “unir a imagem do futebol à feminilidade” (Arruda apud Franzini, 2005: 316-317). Por fim, a luta contra uma padronização no que se refere ao gênero - não apenas dentro dos esportes onde existem regulamentadas as categorias feminino, masculino e misto - agora também pensando em outras esferas sociais no Brasil em que o sexo biológico define o gênero. O signo de luta que evidente nos discursos dessas ex-futebolistas permite que nos voltemos ao que Gilberto Velho (2003: 8 - 9) chamou de projetos que se constituem dentro de um campo de possibilidades, podendo interagir a outros, coletivos ou individuais, de forma conflituosa ou não.

Assim, a luta adquire caráter também de reconhecimento. Mas o que seria esse reconhecimento? O que essas atletas buscavam? Ao levar novamente em consideração as relações historicamente construídas através do discurso normativo vigente ao longo dos anos de proibições em torno da prática do futebol por mulheres no Brasil, o reconhecimento aconteceria por estágios de relações sociais ainda por vir (Almeida, 2013). Essa rede de relações é mais bem explicada a partir da história de vida e do papel social conferido às próprias jogadoras. Esse projeto, não obstante, é subdividido em estágios, como “metas”, a serem alcançados partindo de uma nova apresentação do self baseado em novas posturas de luta – metamorfose. A metamorfose é aduzida no sentido de “mudança individual dentro e a partir de um quadro cultural”. O autor percebeu que os movimentos de contracultura auxiliaram no processo de presentation of self (no sentido que Velho atribui à Goffman). Dessa forma, atribui à sociedade urbana moderno-contemporânea a tendência de constituir identidades a partir de um intenso jogo de papéis sociais que são adaptados a experiências e a níveis de realidade diversificados, podendo não apresentar conflitos ou contradições:

Aqui, no nosso caso, mesmo nas mudanças aparentemente mais incisivas de identidade individual, permanecem as experiências e vivências anteriores, embora reinterpretadas com outros significados. Entre um self fixo e imutável, por detrás das aparências, e uma plasticidade total, procuro captar o jogo da permanência e mudança (Ibidem).

 

O reconhecimento público do futebol praticado por mulheres, segundo os relatos das épocas aqui estudadas e dessas ex-futebolistas na atualidade, geraria uma linha mais ou menos progressiva que resultaria em uma vida financeira estável, calendário anual, torcedores, sucesso público e família ao lado apoiando. A maioria acaba por comparar o futebol de mulheres ao futebol dos homens. Essa pressão a qual o Futebol Feminino está submetido (Rial, 2010) se deve, em parte, às críticas sofridas através da imprensa e da sociedade brasileira. Dentro dessa análise, o final do caminho seria o de salários milionários, de luxo e de tratamento relativo às celebridades. Entretanto, houve aquelas que comparam o futebol ao vôlei, almejando assim, uma carreira equivalente a das jogadoras de voleibol no Brasil. Há também discursos que alimentam o desejo de que o futebol de mulheres fosse tão compensatório quanto é nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. O quadro abaixo é um esquema dessa progressão do reconhecimento do futebol jogado por mulheres no Brasil de acordo com as ex-jogadoras do Radar.

 

Tabela 2 - Reconhecimento no futebol praticado por mulheres no Brasil (ALMEIDA 2013:127)

Estágios

Metamorfose/Luta

Projeto/Alcance

Representação

Primeiro

Segurança no poder “ser” futebolista dentro de casa.

Família

Acompanhar os jogos.

Segundo

Ser futebolista o ano inteiro.

Campeonatos

Calendário de campeonatos que preenchesse todo o ano.

Terceiro

Ser apenas futebolista

Profissionalismo

Conseguir manter-se com o futebol.

Quarto

Ser vista como atleta do futebol pela sociedade, empresários e imprensa.

Público

Equidade ao futebol de homens, ao futebol de mulheres na Europa/EUA ou a outras modalidades como o vôlei.

 

Buscando novamente os conceitos de Gilberto Velho, a metamorfose poderia ser entendida como a luta para que cada um desses estágios fosse atingido. Ao quebrar essas barreiras, outros valores a partir de novas concepções são introduzidos na sociedade, tendo como consequência criação de outras formas de relações. Tratam-se de reações em cadeia e progressivas – projeto/alcance, luta/metamorfose, reconhecimento, novas formas de relações sociais (Almeida, 2013) – que traçam o caminho, talvez, em direção ao que Jean Williams (2011) chamou de macroprofissionalismo, estágio atual do futebol de mulheres na Europa. Contudo, isso ainda não é observado no Brasil.

 

Referências Bibliográficas

Adelman, Miriam. 2003. Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina. Revista Estudos Feministas, Vol. 12, no 2 (jul), pp. 445-65.

Almeida, Caroline Soares de. “Boas de bola”: Um estudo sobre o ser jogadora de futebol no Esporte Clube Radar durante a década de 1980. 2013. 150 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) -  Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Florianópolis.

Araújo, Maria Helena. 1985 .“As Invencíveis”, Revista Placar, 1 de fevereiro de, p. 28.

Araújo de Oliveira, Valleria. 2014. Periguetes, sapatões e mulherzinhas: (des)construindo o que é “ser mulher” no campo de futebol.. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Goiânia. Faculdade de Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Goiana,

Capucim E Silva, Giovana. 2014. Narrativas sobre o futebol feminino na imprensa paulista: entre a proibição e a regulamentação (1965-1983). Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Dissertação (mestrado). USP: Programa de Pós-Graduação em História Social,.

Castellani Filho, Lino. 1988. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. Campinas, Papirus.

Foucault, Michel. 1995. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUSS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Franzini. Fábio. Futebol é “coisa pra macho”? Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol. 2005. Revista Brasileira de História. vol. 25,  n. 50 (jul). pp. 316 – 328.

Grupo de Ação Lésbico-Feminista. 1982. A mulher de chuteira. In: Chana-com-Chana: São Paulo, Dez/. p. 3-5.

Kessler, Claudia Samuel. “Entra ai pra completá”: narrativas de jogadoras de futsal em Santa Maria – RS. 2003. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Ciências Sociais e Humanas. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Porto Alegre, 2010.

Leite Reis, Lúcia da C. A mulher que joga futebol – um chute no preconceito. 1997. Dissertação (Mestrado em Educação Física). Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 1997.

Moraes, Enny Vieira. 2014. Fazendo gênero e jogando bola: futebol feminino na Bahia anos 80-90. Salvador: EDUFBA.

Mcclintock, Anne. 2010. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Trad. Plínio Dentzien. Campinas: Editora da Unicamp.

Pisani, Mariane da Silva. Poderosas do Foz: trajetórias, migrações e profissionalização de mulheres que praticam futebol. 2012. 166 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós Graduação em Antropologia Social. Florianópolis.

Knijnik, J. Vasconcelos. 2003. Sem impedimento: o coração das mulheres que calçam chuteiras no Brasil in COZAC. J (org) Com a cabeça na ponta da chuteira: ensaios sobre a psicologia do esporte. São Paulo: Annablume.

Knijnik, J. 2010. (Org.) Gênero e esporte: masculinidades e feminilidades. Rio de Janeiro: Apicuri.

Revista Placar (sem autoria), 1985 .“As moças do vôlei querem ganhar demais?”, 8 de março de. pp. 69.

Rial. Carmen. 2014. El invisible (y victorioso) fútbol practicado por mulheres en Brasil. Nueva Sociedad, no. 248. pp. 114 - 126.

_______________. 2010. Women’s Football in Brazil: invisible but under pressure. (Conferência). Copenhagen: Sport as a Global Labor market; Male and Female athletes as migrants.

Souza Junior, Osmar. Futebol como projeto profissional de mulheres : interpretações da busca pela legitimidade.2013. Tese (doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Física. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. Campinas, 2013.

Tiesler, Nina. 2012. Um grande salto para um país pequeno: o êxito das jogadoras portuguesas na migração futebolística internacional. In: TIESLER, Nina; DOMINGOS, Nuno. Futebol português: política, gênero e movimento. Porto: Editora Afrontamento.

Velho, Gilberto. 1989. A utopia urbana: um estudo de antropologia social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

______________. 2003. Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Williams, Jean. 2011. “Women’s Football, Europe and Professionalization 1971-2011: Global Gendered Labor Markets”, foomi-net Working Papers No. 1. Disponível em: http://www.diasbola.com/uk/foomi-source.html

 

biografias 

Caroline Soares de Almeida possui graduação em Educação Física (CEFID/UDESC), História (CFH/UFSC) e mestrado em Antropologia Social (PPGAS/UFSC). Atualmente é aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/UFSC) e integrante do Núcleo de Antropologia e Estudos da Imagem (NAVI). Atua nas áreas de Antropologia do Esporte, Estudos de Gênero e Globalização.

 

Mariane da Silva Pisani possui bacharelado em Ciências Sociais (CFH/UFSC) e mestrado em Antropologia Social (PPGAS/UFSC). Atualmente é aluna doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/USP), bem como integrante do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS) e do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU). Atua nas áreas de Estudos de Gênero, Antropologia Urbana, Antropologia do Esporte e Antropologia Audiovisual.


 


Notas

[1] Há trinta anos, não existiam escolinhas de futebol para mulheres. Aliás, o futebol esteve proibido às brasileiras até o ano de 1979. A primeira regulamentação restritiva foi lançada em 1941 com a criação do Conselho Nacional de Desportos que dizia: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. Vinte e quatro anos mais tarde, já durante a ditadura militar, foi implantada a Deliberação n.7/65 que reafirmava a disposição de 1941, listando agora as modalidades esportivas censuradas às mulheres: “Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, pólo, rúgbi, halterofilismo e baseball”. (Castellani Filho, 1994:63). Somente em abril 1983 o CND regulamentou o futebol de mulheres no país através da Deliberação 01/83. Entre as regras estavam: o tempo da partida em 70 minutos com intervalos de 15 a 20 minutos; e as futebolistas não poderiam trocar as camisas com as adversárias após uma partida.

[2] Dissertações      de Mestrado: Boas de Bola”: um estudo sobre o ser jogadora de futebol no Esporte Clube Radar durante a década de 1980      (Almeida, 2013); Poderosas do Foz: trajetórias, migrações e profissionalização de mulheres que praticam futebol (Pisani, 2012). Teses de Doutorado em andamento: Entre o sonho e as possibilidades: aspectos da circulação de futebolistas brasileiras no exterior, de Caroline Soares de Almeida e  Futebol Feminino da periferia ao centro: formação e profissionalização de jogadoras de futebol na cidade de São Paulo, de Mariane. Atribuímos pseudônimos como forma de preservar o anonimato dessas futebolistas que construíram conosco essas etnografias.

[3] O Café Futebol Clube foi uma equipe criada por Café, uma das sócias da boate Moustache, conhecido ponto de encontro e local de resistência de mulheres lésbicas durante a década de 1982 em São Paulo.

[4]  Muitas futebolistas brasileiras atuam "por temporada”, fazendo com que, no período de um ano, possam jogar futebol e diferentes países.

 

 

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro 2015 - juillet/décembre