labrys,estudos feministas

número 3, janeiro/ julho 2003

 

Meu pai, à noite, vem a meu quarto.

Lori Sain-Matin[1]

tradução: tania navarro swain

Não chorei, não o chamei. Mas ele vem mesmo assim.  Aprendi a sufocar o grito que sobe do pesadelo e rasga a  garganta. Ele vem assim mesmo. Lentamente, sem ruído, a porta se abre. Um pedaço de luz corta o quarto e logo a obscuridade retorna. Ele não se mexe, quase não respira. Eu sei, porém, que ele está aqui. O silêncio não é mais o mesmo. As vezes ele fica longo tempo em pé, ao lado de minha cama e eu finjo dormir, na esperança de que ele irá embora.

Ele me olha. Às vezes murmura palavras que não compreendo.  E então ele se  senta sobre a cama e dobra as cobertas. Ele diz meu nome baixinho, você está dormindo, meu amor? E aí, não há mais esperança, eu sei que tudo vai começar. Abro os olhos na escuridão do quarto que, aos poucos,  torna-se claro o suficiente para mostrar o rosto de papai.

Não há palavras para o que ele me faz no quarto. Voz entrecortada, eu não poderei jamais dizê-lo. Apenas para mim mesma posso dizê-lo, para não me perder de vista.

***

E tudo começa, tudo começa e está-se  sempre no início. A porta se abre e se fecha, o tempo anda em círculos. Leva uma hora para se abrir, uma vida. Toda minha vida olhei esta porta se abrir. Mil vezes, desde  a primeira vez. Eu sabia que não teria fim.

Ele vem sem ruído, mas eu  o escuto. Escuto mesmo antes que ele deixe seu quarto, ouço seus pensamentos, papai em sua cama se diz: não, não irei. E sem transição já está de pé, não irei e seus passos o conduzem para meu quarto, não irei, minha filhinha, perdoe-me, não irei, minha porta se abre e para ele também tudo começa e não poderá nunca mais parar. A cada vez.

*****

Mais jovem, eu tinha medo da obscuridade. Não sabia que , sozinha, estava salva. Agora é a luz que me dá medo. Passo a passo de mansinho, a luz quando passa,, a porta que se abre lentamente , um tempo infinito e depois, a mão de papai entre minha coxas.

Mamãe não diz nada, não vê nada. Ela está fraca demais para abrir sozinha a porta de seu quarto. Mamãe é apenas um sopro, uma voz apagada. Ela precisa de calor e de uma longa paz sem transtornos..Nada de portas batendo ou de meninas que gritam. Sobretudo, ela não precisa de uma dor que a  rasgaria em dois pedaços.

Ela está doente, talvez morrendo, há tanto tempo que esqueceu a saúde. Eu me pareço com ela, com mamãe. Você tem seu cheiro, seus cabelos. No escuro, posso acreditar que é ela.

No início papai não me tocava. Ele levantava minha camisola, ele olhava longo tempo, longo tempo depois de abrir a persiana. A luz da rua me iluminava tudo, ele me dizia: não se mexa, deixe-me te olhar. Ele aspirava o odor de meu pescoço. Ele cochichava: meu amor. Depois, ele começou a me tocar de leve, docemente, toda a pele. Um dia ele molhou o dedo e passou-o docemente, lentamente, entre minhas coxas. É ruim, é bom. Não papai, não faça isso. Ele cobre minha boca com a mão : fique quieta, você vai matar sua mãe. Um instante, nós nos olhamos. Depois ele recomeça e eu deixo.

***

Tenho dois pais, em breve não terei mais mamãe. Meu pai de dia, meu pai de noite. O de dia é sorridente, ele passa manteiga em minhas torradas, me acompanha ao parque. Eu me lembro do balanço verde de um pequeno hotel no campo, na beira do rio. Papai me empurra, minhas pernas tocam o céu, dou pontapés no sol. Papai me ensina a nadar segurando-me pela cintura, nunca precisei ter medo da água. Meu quarto de dia é rosa e cheio de brinquedos, tenho uma mesa de desenho e uma casa de bonecas. Meu quarto de noite fica estreito: uma cama, uma porta.Meu corpo nu, mesmo quando me cubro até o pescoço.

Antes, mamãe era forte e quente, nós fazíamos biscoitos de chocolate que comíamos ainda quentes, saídos do forno e ela me deixava estender a massa em colheradas sobre a forma. Nós usávamos todas as cores para fazer pinturas gigantes e eu adorava ver a água se colorir quando molhávamos os pincéis. Eu preferia sempre a pintura de mamãe e ela, a minha. Víamos televisão juntas, à noite, nos fazíamos cócegas, as pernas entrelaçadas sob um cobertor de mohair violeta. Agora as mãos de mamãe são  como folhas de outono, rígidas e frias, seus ossos rangem quando ela se vira na cama. Mamãe é uma pandorga que não suporta o vento. Cada dia  eu cresço e ela diminui e torna-se mais pálida. Proibido se aproximar dela, eu poderia quebrá-la ao tentar beijá-la. Minha voz aguda, meu riso, meus passos rápidos  na escada fazem-lhe doer a cabeça. Ela me ama menos, eu sei. Por ela aprendi a murmurar, a usar chinelos de feltro. Não corro mais. Nunca mais bati as portas.

O que ainda lhe agrada é a música que toco com papai. Na grande sala, em face de longos espelhos, ele toca piano, eu flauta. Olho suas mãos tão finas, suas grandes mãos de médico, precisas, um pouco cabeludas nas juntas. Nunca a igualarei, ela. É para ela, entretanto, que toco. Eu a imagino em seu leito, cantarolando a área, com sua voz já quebrada. Quando ela não tem mais fôlego, contenta-se em deixá-la voltear em sua mente.

***

Em outros tempos mamãe era flautista em uma pequena orquestra. Papai e eu íamos a todos os concertos na velha igreja, diante dos grandes vitrais de Cristo e de todos os santos. Eu amava a imensidão da abóbada, a madeira esculpida, toda em arabescos. As colunas eram de mármore liso e frio, podia-se ver seus veios, mas ao tocá-la não se sentida nada. Mamãe usava um vestido longo, negro, perfeitamente reto, ornado de lantejoulas negras. Aflauta brilhava, os cabelos negros de mamãe faziam uma auréola em torno de seu belo rosto branco. Quando ela não estava tocando, mamãe  ficava tão reta e imóvel que parecia uma estátua. Durante todo o espetáculo papai não tirava os olhos dela. As belas solista de tafetá azul noite, de seda esmeralda, papai nem as olhava, nunca. Só mamãe, só mamãe. Mamãe cantarolava então, quando preparava as refeições e papai não vinha nunca,nunca no meio da noite, em meu quarto. A presença de mamãe preenchia uma sala como um buquê de flores, com a mesma paz perfumada. Mamãe era forte e risonha e nunca estava cansada. Antes, íamos patinar os três sobre o rio, eu tinha um cachecol vermelho parecido com o de mamãe e nós deslizávamos, sem esforço, mão na mão. Depois, a esbelteza de mamãe tornou-se magreza, a tosse de mamãe ficou profunda e um dia mamãe deitou-se para nunca mais se levantar. Que felicidade ser musicista, dizia ela,: a mente sempre cheia de música, de sonatas, de sinfonias inteiras. As vezes mamãe escutava música em sua mente e a víamos mais animada, contente de senti-la em seu ser. Agora a música a abandona. Sua mente é um quarto deserto onde não se ouve senão o vento.

***

Papai comprou-me um vestido vermelho muito curto e sapatos vermelhos de verniz. O olhar de mamãe diz que isto me envelhece. Que é uma roupa inadequada. Ele me chama de seu chapeuzinho vermelho. Pergunto-me se ele é o caçador ou o lobo. O lobo tem grandes dentes brancos para melhor comer as menininhas. Papai também tem dentes grandes. Ele tem grandes mãos de caçador, para me defender do mal.

Mamãe, estou queimando, tenho sede, ajude-me. Mamãe se afasta, mamãe está já do outro lado. Você não fala como uma menininha, meu amor. Não , mamãe, eu não sou o mais . As noites me fazem envelhecer. Eu não tenho a idade que tenho. Eu sou você, agora, em minha cama com papai. Eu queimo de tudo que não posso te dizer.

***

Tenho dez, doze anos, treze. Aprendi o prazer, em meu quarto, com papai.

Ele vem sempre quando as cortinas estão encostadas, quando a porta está fechada. Se hesitou, foi antes de entrar. Sua mão na maçaneta não treme. Eu não durmo, eu o espero. Tenho medo, tenho pressa. Docemente, docemente, ele abre minhas pernas. Eu não quero, não, não e lentamente, muito lentamente, levanto os quadris para suas mãos, sem ruído atraio sua mão. Pare, papai, não pare, minha cabeça gira de não saber mais nada. Não se deve amar, não posso  deixar que isto aconteça. Porque me faz isto, papai? Você embaralhou tudo em minha mente. Eu não o digo, não digo nada. Eu me calo, por mamãe. Às vezes eu gemo, baixinho, contra a mão de papai. Ele me pede para lhe dizer coisas que não compreendo. Palavras de mulher, as palavras de mamãe, talvez. Minha boca contra sua orelha eu murmuro, sim meu amor, ainda, ainda, não tenho mais nenhuma palavra minha.

***

Mamãe é como a lua, disse-me papai, ela vai e vem, ela se eclipsa. Ela parece sarar, ela recai.  Esperanças rasgadas, sem amanhã. Ela habita o ponto morto, aquele antes da morte. Algumas vezes ela abre os olhos, frota- os, com ar de vir de muito longe.  Parece que ela vê ainda sua pequena menina. Ela canta para mim, baixinho, as canções de outrora, com sua voz quebrada. Bela papoula, senhoras, papoula nova. O galho, ao vento, o galho quebrou. Meu pequeno passarinho, você se machucou?

***

Minhas palavras estão presas na garganta, um xarope, uma cola. As dos outros são poeira,  esbarram nas coisas sem as tocar,  deslizam, tomam suas distâncias.

Na escola as perguntas são tão claras que vejo através delas. A resposta está escondida na questão quando se sabe escutar, ou ao menos, a questão abre  as portas para a resposta. Antes minha mão se levantava sozinha, a resposta transbordava de meus lábios,  debruçavam-se sobre mim, sorrindo. Agora, eu olho os riscos de minha mesa, toda manchada de tinta, toda arranhada e não estou nem ali nem alhures.

-         Três elevado a potência três, quanto faz?

A resposta se imprime em minha mente, eu a vejo, ela é luminosa e inacessível.Interditada. Tão longe quanto a saúde de mamãe, tão longe quanto meu sono tranqüilo de antes. Nada se move em mim. Nem um som. As vozes se distanciam, como se eu estivesse com a cabeça dentro da água.

Sem que eu os tenha visto partir, os outros não estão mais lá. Alguém se debruça sobre minha mesa, me toca no ombro. Posso  ajudar, sabe, se você tem um problema.

Quatro palavras seriam suficientes para que eu não esteja mais só. Uma frase e uma mulher morena e redonda entraria em meu quarto, em meu segredo. Ela abriria as venezianas e lavaria com muita água e o dilúvio levaria tudo em sua passagem.  A casa estaria vazia como no primeiro dia. Papai seria punido, papai me seria retirado, mamãe não poderia ficar comigo. Desconhecidos viriam, meu quarto não seria mais meu quarto. Eu seria um caso, mais um, a menina cujo...Madame Lévesque seria felicitada por seu diretor e uma bela história a ser contada. Eu os vejo, sentados na sala dos professores, divididos entre a indignação e um tremor de prazer não confessado.

Minha história é só minha, não tenho mais nada. Ela cresceu em minha garganta como uma planta de sombra e não poderei respirar sem ela. Eu sou meu próprio segredo, eu me guardarei.

 ***

Sou um segredo aprisionado no sangue, um punho fechado sobre a escuridão. Eu conheço o vazio que existe no coração da luz.

Eu cresço mas minha carne se derrete. Não consigo comer. Perdi a fome. A colher, o garfo pesam. Minha boca recusa o alimento. Eu carrego minha carne. Quando olho no espelho, não há nada. Uma forma negra sem forma, toda envolta em negro. Eu não sabia que o vazio era tão pesado.

***

Antes, depois: um dia o mundo de partiu em dois. Houve realmente um antes? Mal tenho forças para me lembrar ainda.

Uma vez - mamãe já estava doente e já não tocava - voltamos a um concerto na grande igreja.  Eu voltei ainda a um concerto na grande igreja.  Olhei bem para jamais esquecer.  Altas portas esculpidas, colunas, mármore marrom no alto e verde em baixo, com veias brancas. Uma estátua da Virgem com seu bebê nos braços, uma mão levantada para pedir a palavra. Eu me digo que sou eu nos braços de mamãe, aconchegada nas dobras do mármore. Em frente, tudo é branco e ouro, dos anjos à trombeta, o Cristo em sua cruz. Cada nota é perfeita e mamãe está excluída de agora em diante, banida. Ela chora sem ruído, pois a música continua sem ela. O mar é grande porque estará ainda lá quando tivermos desaparecido. A música é a mesma coisa, imensa e amarga como as lágrimas. Papai não olha nada, eu sei que ele vê ainda mamãe em seu vestido negro. Uma imagem perfeita, uma imagem de antes. Quando ele voltava do hospital, mamãe tocava-lhe uma sonta de Corelli, ou de  Bach e a fadiga sumia pouco a pouco. Eles dormiam enlaçados todas as noites e papai não se acordava nunca antes do dia. Eu era sua pequena filha do amor e nos  dávamos as mãos, os três, andando pela rua. Eu não sabia ainda chorar sem ruído. Eu não sabia o que os homens fazem às mulheres.

***

Eu havia procurado as palavras, no início.

-         Mamãe, preciso te dizer…

O rosto de mamãe se enruga, um papel que se amassa. O que há, meu amor? Sua voz me diz que ela não quer saber. Tão cansada. A velhice tomba sobre ela, depois recua. Posso faze-la ir ou afastá-la. Tenho este poder.

Nada , mamãe, nada. Conto-lhe histórias da escolas, bobagens, para distraí-la. Ela sorri e se ela ri, começa a tossir com todo seu corpo e depois sufoca.

Você já é grande, você irá longe sem a velha mamãe. Ela fecha os olhos, de lassidão. Depois, abre-os e me devora com o olhar. Muito tarde, ela já quase nos deixou, apesar do amor. Pode-se gritar sem ruído. Pode-se chamar o dia todo, sem levantar um só eco.

***

Papai chora, ele diz que é ruim o que fazemos, ele diz que não dorme mais por minha causa. Ele não me pede nunca para toca-lo. Quero apenas te dar prazer. O prazer me confunde, eu não compreendo. Não quero, quero.

Uma noite, papai me diz: uma vez, meu amor, uma vez somente. Ele se toca no escuro e depois se deita sobre mim. . Tenho dor, tenho dor. Engulo a dor pr todo meu corpo, uma afogada que engole o mar. Depois, ele me acaricia a cabeça, você ainda é muito pequena, eu sei, durma, meu coração, eu velo sobre você. Eu não recomeçarei mais, prometo, nunca mais.

Durante toda a noite não pude me mexer ou emitir um som. O dia chegou aos poucos em meu quarto. Na hora habitual, reuni minhas forças e levantei. Meu papai de dia, todo sorridente, levou-me a escola. Abotoe teu casaco, meu amor, está frio esta manhã. Ele estava tranqüilo, sem problemas. Eu havia aprendido que o sangue queima.

***

Nada se mexe, nada pode se mexer. Não há mais viagens, não há mais convidados. Acabaram-se as estações e as marés. Na escola, estou ainda em meu quarto, aprisionada. Mamãe está suspensa entre dois mundos, nem morta nem viva. Viva, ela não me salva. Morta, ainda menos. Ninguém virá, não há ninguém. O mundo: um quarto. Nada pode me salvar.

 ***

Ele cortou os laços entre a dor e o grito, entre o medo e a fuga. Nem movimento, nem voz. Eu me abandono. Gosto de me abandonar. Por mamãe e também por mim. Seria preciso não amar. Minhas pernas se abrem apesar de mim, eu me digo: vou pedir-lhe para parar, mas ainda um segundo, apenas um segundo, assim, sua mão que me acaricia, tão docemente, e o calor que se irradia em meu corpo, e depois, mais tarde,  farei tudo para que ele continue. Tanto quanto para que ele cesse. Você gosta disto, meu amor? Eu respondo que sim que gosto disto e estou dizendo a verdade e a verdade me queima, eu digo que não, eu não digo nada, as palavras são armadilhas, meus gestos me traem.

Imagens embaralhadas, sempre as mesmas: a porta que se abre lentamente, a noite, a mão de papai sobre minha boca, minhas pernas que se abrem agora sem auxílio. O silêncio e os murmúrios, e o rosto cansado de mamãe a quem eu evito outra fadiga. Imagens sem palavras. Corpo cortado. Eu não direi nunca nada.

Quatro palavras, apenas: meu pai, à noite.



>[1] Publicado com a permissão da Éditions de l'Instant même,  865 avenue Moncton, Québec (Québec) G1S 2Y4  courriel  :  info@instantmeme.com , novela que dá o título para o livro de

> Lori Saint-Martin. Mon Père, La nuit : nouvelles. Québec : L´instant même, 1999.

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