labrys,estudos feministas número 3, janeiro/ julho 2003
Argélia no feminino: a palavra-mulher
tradução: tania navarro swain Resumo As mulheres tem sido um dos baluartes de resistência ao islamismo político na história recente da Argélia. Assim, os movimentos femininos tem marcado um ativismo político, reativando uma palavra- mulher que já existia nos tempos da colonização e sobretudo da guerra de libertação. Esta quebra do silêncio fez da palavra-mulher o pólo oposto do discurso islâmico dominante, recusando as leis que estabelecem a preeminência dos homens sobre as mulheres. Palavras-chave: resistência, palavra-mulher, ativismo político
No momento de mais forte violência na Argélia, no início dos anos 90, emerge uma palavra-mulher, com uma incontestável autonomia. Uma expressão forte e original, irredutível a qualquer outro discurso, impõe-se, com personagens que se tornam emblemáticas, tais como Khalida Messaoudi (hoje Khalida Toumi, tendo retomado seu nome de solteira), Zazi Sadou, Louisa Hanoun e Salima Ghezali. Que cada uma destas mulheres esteja ligada a um partido político, do qual é membro, simpatizante ou líder, não desmerece o fato de que é, antes de tudo, uma palavra-mulher que elas enunciam; esta última seria portadora de uma reivindicação que pode integrar-se às dos partidos sem ser, todavia, jamais idêntica, militando sempre por algo mais.. Escrevendo assim, sei que me interesso por apenas um pólo dos movimentos feministas , o pólo dito democrático, carreado por uma reivindicação de igualdade entre todos cidadãos, e que deixou na sombra o outro, o dito islâmico, que propõe um programa enquadrado pelas leis religiosas, postulando “o primado dos homens sobre as mulheres”. Este segundo pólo é constituído por associações diretamente ligadas aos partidos e que tem uma secção feminina, como, por exemplo, Al Islah oual Irchad, ligada ao partido de Mahfoud Nahnah. Em suas atividades, estas associações mostram, muitas vezes, uma eficácia notável na gestão dos problemas sociais, sobretudo quando as autoridades estão ausentes. Por outro lado, as associações femininas existiam antes desta época e esta palavra-mulher, à qual me refiro, é herdeira, ainda que seja observadora ou que pretenda se separar de movimentos antigos. Pode-se encontrar traços dos primeiros ensaios de organização das mulheres no tempo da colonização, com um desenvolvimento notável durante a guerra de liberação.[1] Já havia, à época, uma clivagem em dois pólos; não são, entretanto, os mesmos que os da segunda guerra da Argélia, e as mulheres foram disputadas por dois projetos opostos de sociedade. O pólo do lado europeu agrupava as associações que queriam “libertar as irmãs muçulmanas”, “a mulher árabe”, e que criavam ateliês de trabalho e cursos de alfabetização. Os objetivos políticos encontravam-se com projetos mais desinteressados e lembramos, aqui, a encenação que aconteceu em maio de 1958, na praça do Governo, em Alger: as mulheres muçulmanas foram convidadas a arrancar solenemente seus véus. Sabe-se que foram as empregadas domésticas, enviadas por suas patroas européias, que participaram deste gesto teatral, que não obteve nenhuma repercussão. O outro pólo, o da sociedade colonizada, visava à preservação das mulheres, permitindo-lhes, porém, uma abertura para a modernidade, principalmente no que se refere à instrução. As idéias progressistas, que começavam a se desenvolver no mundo árabe, sobretudo no Egito e na Tunísia, haviam despertado um eco no movimento nacionalista. Depois da independência do país, o partido único – o FLN, Front de Libération Nationale, impôs-se com a exclusão de qualquer outro. Um só partido, assim, o do povo argelino, e uma única representação da Mulher Argelina, entronizada UNFA (União Nacional das Mulheres Argelinas), cuja secretária geral é, antes de mais nada, militante do partido único. Não se trata, neste caso também, de negar ou desconhecer o trabalho que foi feito para resolver questões materiais de algumas mulheres, miseráveis. Mas a UNFA não pode sair e não sai jamais do quadro fixado pelo partido. No dia 4 de junho de 1984, o projeto do Código da Família seria votado pela Assembléia Nacional Popular, fazendo das mullheres argelinas, no que concerne à família, uma cidadã de segunda categoria. Este código, com força de lei, apoiava os maridos que desejassem repudiar suas mulheres, expulsando-as de casa, sem necessitar de justificativas.. Enquanto grassavam as manifestações contra este projeto, A UFNA nada fazia. No fim do mês de maio, esta organização recebia um grupo de mulheres universitárias de Alger, que pedia uma ação contra este projeto de lei. Foram apaziguadas, assegurando-lhes que nunca uma organização encarregada da defesa das mulheres permitiria que uma tal lei fosse aprovada. Mas o Código foi votado e aprovado. Mas o debate sobre o lugar e o futuro das mulheres fora relançado e ganhava as ruas. As antigas moudjahidates (antigas combatentes da guerra de libertação) encabeçavam as marchas de protesto, eram presas e retidas por algumas horas, participavam de todos os meetings.. Em 1985, os movimentos femininos começam a se organizar, quase na clandestinidade, cines-club e, assim, uma primeira associação é implantada. Quando a Constituição de 1989, em seguida às revoltas de 1988, instaura o multipartidarismo, a primeira associação a solicitar sua ratificação era feminina. Estas associações se multiplicarão e irão tecer uma rede que cobrirá todo o país, densa nas cidades como Alger e sua região, mais diluída, porém presente, no resto do país. Quando observamos os nomes destas primeiras associações, verificamos que suas denominações exprimem a temática pela qual serão identificadas e reconhecidas: defesa dos direitos das mulheres. Isto implica a reivindicação de um direito, reconhecido pela Constituição e pelas instâncias internacionais. Assim, no preâmbulo do documento publicado pela AITDF (Associação Independente pelo Triunfo dos Direitos das Mulheres), pode-se ler que pretende ser “ um guia em países com leis injustas contra as mulheres, e estas leis existem na Argélia, brutais como o Código da Família, ou sutis como a lei eleitoral” (pg 1). O objetivo final deste combate: “o único meio de estabelecer a justiça seria apagar estas leis injustas do legislativo argelino” (p.2). Nestes trechos, podemos observar um engajamento total pela abolição do Código da Família. Outra característica que aparece nas denominações das associações femininas do início dos anos 90 é a referência à vozes. Fazer-se escutar, quebrar a obrigação do silêncio, criar uma fala original. Os adversários destes movimentos fustigaram as mulheres neles engajadas, acusando-as de estar a serviço do imperialismo ocidental, de querer importar modelos de sociedades que nada teriam a ver com o país e suas tradições, e tentaram ridiculariza-las invertendo situações de poligamia, em que elas, no caso, aspirariam casar-se com quatro homens, etc. Mas não conseguiram silencia-las. Uma palavra-mulher, irreprimível , fora assim reconhecida. É esta palavra-mulher que ocupa a cena política argelina. É a única a poder impor-se face ao discurso islâmico, a tal ponto que se tornou o outro pólo deste discurso político, retomado mesmo pelos homens, sobretudo nos anos 1992-1994, quando o discurso democrático parecia estar em decadência.. Podemos lembrar uma cena emblemática: um debate na televisão, por ocasião das eleições. Abassi Madani, fortalecido pela legitimidade que lhe era concedida, reitera sua conformidade com a palavra divina e se coloca como sua referência. Todos os outros se distribuem a sua. Uma só voz a ele se opõe , recusa as referências nas quais este antigo membro da Frente de Libertação Nacional (FLN), agora líder do FIS, encarcera seus interlocutores. Trata-se de Khalida Messaoudi. Ela se opõe e coloca a questão de outra maneira: vocês dizem que sou filha de Joana d´Arc, mas quem são vocês para decidir isto? Recusa-se a debater em um terreno discursivo religioso. A rejeição deste discurso religioso, que funciona como uma armadilha e não deixa nenhuma escapatória, aparece no espaço visível da cidade, por ocasião da celebração do dia 8 de março de 1994. Sabe-se que este dia tornou-se “o dia das mulheres”. As argelinas haviam, progressivamente, tomado este dia como o mote para ocuparem as ruas em grupo: restaurantes, cabeleireiro, beleza visível, mas igualmente marchas e reivindicações. Todas que viveram este período lembram-se da gentileza das pessoas na rua, da amabilidade dos homens que lhes ofereciam flores. Mas a violência não tarda a tornar estas marchas muito arriscadas. As associações de mulheres organizam, então, encontros nos quais se fazem ouvir os testemunhos de jovens seqüestradas e violentadas pelos terroristas, ocasião em que o tabu do silêncio sobre a agressão sexual cai por terra, e são julgados simbolicamente não apenas aqueles que os cometem, mas também os que tornam lícitos tais atos. A reação porém, foi rápida. Uma Fatwa, uma decisão fundada na religião, é declarada por um dos emires, que permite o assassinato destas mulheres. As mulheres, porém, já viviam neste clima de violência. Em primeiro lugar, consideradas presas de guerra, são vítimas de violência. Seus corpos, já amarrados em uma trama de leis e de interdições, se tornam o lugar em que se escreve e se inscreve o que está em jogo na sociedade, tomada da vertigem da morte infligida e procurada. Estes corpos de mulheres, que se pretendia invisíveis, se tornam manchete dos jornais e da televisão, corpos nus, fragmentados, cortados, partidos. A sociedade parece incapaz de ter uma visão de conjunto dos corpos de suas mulheres. Corpos escondidos, corpos explodidos, mas voz única, forte,irreprimível. As mulheres serão também atrizes ativas na violência. Elas resistem com armas na mão contra grupos armados, ou neles atuarão, tomando parte na violência contra outras mulheres, contra crianças. Seria necessário refletir este encadeamento que leva à morte, em uma paródia de lei dada por deus, morte dada e também buscada. Mas voltemos a esta palavra-mulher que é, ao mesmo tempo, recusa e ato positivo, que instala, sejam quais forem os obstáculos, a idéia de que a sociedade argelina é feita de mulheres e de homens e que nada justifica a preeminência destes últimos. São as associações, como SOS mulheres em perigo, que tomaram para si a questão das mulheres seqüestradas, violentadas e que retornam grávidas. Esta gravidez que ninguém quer ver é jogada à sociedade como questão: o que fazer? Abrigar estas mulheres, esperar o parto. E depois? No fim dos anos 90, a questão do direito ao aborto após um estupro foi levantada pela ministra da Solidariedade e da Família, tomando a bandeira das associações femininas. Os homens políticos, mesmo abrigando-se sob o discurso religioso e utilizando como artifício/escudo o discurso médico – como foi o caso do HCI, o Alto Conselho Islâmico – foram obrigados a responder-lhe. Sua recusa em tomar uma decisão é uma clara resposta; porém, ela não desencorajará, de forma alguma, as mulheres que colocaram este problema . Elas o retomarão. Sem pretender, como querem alguns, que a solução virá das próprias mulheres, é certo que elas fizeram emergir uma palavra-mulher que trabalha o político e estabelece seu lugar. A sociedade argelina conheceu importantes acontecimentos políticos, sem verdadeiramente integrar as transformações que poderiam ter se implantado. A organização tribal, que não concede muito espaço para as mulheres no campo das decisões, se vestia, até aquele momento, com os véus da tradição para negar qualquer movimento. Hoje, toma de empréstimo seu léxico e sua retórica aos religiosos para tentar, mais uma vez, congelar a dinâmica da mudança. Nesta ótica, as forças perturbadoras, que são as mulheres e as/os jovens, sofrem a violenta reação desta recusa. Até quando? Dados biográficos: Na academia, ocupa o posto de Maître de conférences na Université d'Alger até março de 1996.- Attaché Temporaire d'Enseignement et de Recherche(ATER) Université d'Aix-Marseille, septembre 1998 -août 2000. Maître de conférences em « littératures francophones » ,Département de littérature française, UFR 4 -Université Paris 8 , Saint-Denis. Anima ateliês de produção literária nas escolas e colégios em um projeto de saúde comunitária. Publicações indicativas: Contres algériens, Paris, L'Harmattan, 1995- Passagères, nouvelles, Paris, Algérie Littérature/Action, 1998- L'essai de langue française en Algérie : 1833-1962,Villeneuve d'Ascq, 2001. Participou de obras coletivas sobre a literatura argelina e do Magreb, sobre a literatura popular e a literatura feminina. Poemas e novelas na revista Algérie littérature/Action. [1] A Argélia foi uma colônia francesa e sua libertação foi obtida pela guerra, nos anos 1950. NT
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