labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/ 2017- junho 2018 /juillet 2017-juin 2018

 

Do Interior para a periferia:

mulheres negras liderando lutas por moradia em Salvador, Bahia, Brasil

 

Cristiane Santos Souza

 

Apresentação

Neste artigo apresento como no fazer cotidiano as mulheres negras e pobres da periferia de Salvador – Bahia (Brasil) constituem suas estratégias de luta pelo direito à moradia e à cidade e se configuram enquanto lideranças. Para tal, alinhavo diferentes narrativas a partir da experiência de vida de uma das mulheres com as quais trabalhei durante minha pesquisa de doutoramento, em dialogo com outras trajetórias.[1] 

Para aquela pesquisa, etnografei as trajetórias de migrantes que saíram do interior[2] do Estado da Bahia e se inseriram na cidade de Salvador entre os anos de 1940-1980, especialmente no território do Subúrbio Ferroviário. Busquei observar as transformações urbanas e sociais pelas quais passou a cidade neste período, contando as histórias dessas pessoas e de seus descendentes através de suas memórias (SOUZA, 2013).

Dentre as questões centrais que tratei naquele trabalho busco evidenciar neste artigo duas delas: a primeira, a maneira como as experiências das mulheres negras foram marcadas por aspectos identitários específicos (como condição racial e identidade local) e a participação social organizada; a segunda, as distintas possibilidades abertas à atuação conforme o gênero, a raça[3] e a classe e as formas encontradas para lidar com as desigualdades. A partir dessas questões traço a reflexão proposta neste trabalho, tendo como eixo a trajetória de uma das mulheres com as quais pude compartilhar um pouco de suas vidas e lutas.

Dona Railda é uma dessas mulheres. A sua trajetória de vida foi escolhida como ponto de interconexão para contar as histórias das mulheres negras e pobres da periferia, de uma cidade do nordeste brasileiro, e como elas produzem a cidade em suas errâncias e forjam formas de resistência e luta, orientadas ou não pelo feminismo.

Ao mesmo tempo, evidencio as suas congruências e dissonâncias em suas falas, a partir de acontecimentos que estão presentes em outras narrativas, em destaque para as de Dona Mira, Dona Julieta, Dona Nena, Dona Cecília, Antonia e Mãe Ciça – todas com mais de 50 anos de idade. As bases para a coleta dos relatos orais que orientaram a pesquisa empírica e as reflexões apresentadas neste trabalho pretendiam um espaço de diálogo destas diferentes experiências no interior da cidade. Para construir esta narrativa, além das discussões e contribuições produzidas no âmbito das Ciências Sociais, em especial da Antropologia, foi fundamental atravessar as fronteiras disciplinares.

Desta forma, o diálogo com as reflexões e contribuições produzidas no âmbito da história oral se fez necessária e imprescindível a esta análise. O registro dos relatos orais possibilitou a análise das trajetórias das experiências pessoais e sociais das pessoas com as quais trabalhei, através da memória e das suas reminiscências (THOMPSON, 1992). No caso, tornou possível o registro dos seus deslocamentos desde a saída dos seus interiores e os percursos realizados na busca por um lugar social e simbólico na cidade e na vida social baiana. Esse movimento facilitou, sobretudo, construir uma maior proximidade em relação a diferentes sentimentos sobre suas próprias histórias após aportarem em Salvador.

Os dados etnográficos mobilizados sobre a trajetória e a experiência de vida de Dona Railda são analisados tendo como orientação uma perspectiva interseccional, originada do feminismo negro, que com sua crítica ao caráter universal da categoria “mulher”, concebe os marcadores gênero, raça e classe de modo articulados, não sendo assim as discriminações decorrentes delas fenômenos mutualmente excludentes (CRENSHAW, 2002; COLLINS, 1990).  

Ademais, a interseccionalidade me possibilita pensar sobre as formas de organização social e urbana na periferia de Salvador entre os anos de 1970-1990, e a constituição da luta e da conformação da figura de liderança e as bases como se deu esse processo mediante os enfrentamentos às violências e subordinações enfrentadas pelas mulheres negras em suas trajetórias dentro dos movimentos por moradia.  

Com esta finalidade, organizei minha narrativa em duas sessões. Começo narrando a trajetória de Dona Railda através de episódios considerados aqui como significativos de sua vida: a fuga, o enfretamento e tornando-se liderança, para a constituição dos movimentos de luta por moradia e o papel fundamental das mulheres negras neste processo de reivindicação pelo direito à moradia e à cidade.

Depois trato mais pormenorizadamente dos processos de luta por moradia em Salvador, através da trajetória de Dona Railda, em diálogo com a trajetória de Dona Mira para pensar a inserção nos movimentos no âmbito da esfera do espaço público, das invasões e formas de resistência e diálogo com os poderes macros-políticos, evidenciando as conexões entre suas experiências, assim como de outras mulheres negras com os movimentos de ocupação dos espaços públicos e a continuidade na luta.

A escolha em narrar uma vida e ouvir o que este indivíduo tem a dizer sobre si, sobre suas experiências, sobre sua colocação em uma dinâmica social, parte também do exercício de valorização da ação destes agentes transformadores. Dessa maneira, neste trabalho pretendo usar a trajetória de vida da colaboradora como forma de apontar mecanismos de subversão de espaços sociais pré-determinados, direcionados às pessoas (mulheres, negros, pobres) numa sociedade patriarcal. Não me abstenho de utilizar bibliografia referente ao feminismo negro (CRENSHAW, 2002; CARNEIRO, 2003; COLLINS, 2012), interseccionalidade (COLLINS, 1990) e aos mecanismos adotados por militantes ou não desta ideologia de vida.

1.    A saída do Interior, a luta por sobrevivência e o estar ‘no’ e ‘em’ movimento

De diferentes formas as mulheres negras e pobres no Brasil, ao longo de séculos, construíram muitos modos de luta e resistência, forjando e contando suas próprias histórias, enfrentando o sistema de dominação e opressão que lhes atravessaram a vida (WERNECK, 1980; RIBEIRO, 2008). Porém, é sabido por muitas de nós que a atuação destas mulheres, a afirmação e a divulgação destes movimentos ainda são minimizados.

Os espaços rompidos para garantir reconhecimento social e político através de diferentes veículos, especialmente da mídia aberta, têm sido resultado de anos de militância e luta de muitas mulheres negras que foram invisibilizadas (até mesmo pelas lutas feministas das primeiras e segundas ondas), a exemplo daquelas que migraram do interior para os grandes centros urbanos.

As mulheres negras que se inseriram na luta por moradia ao aportar em Salvador, enfrentando valores de um modelo patriarcal de família, rompendo com seus maridos opressores, se libertando pelo trabalho (com todas as contradições do trabalho doméstico) e na luta que as fizeram/tornaram lideranças, tiveram que (re)construir e (res)significar valores de um modo de vida particular e forjar outros, não sendo reconhecidas e, ainda, sendo sempre golpeadas pelo sistema patriarcal de nossa sociedade.

Mas, mesmo assim, subverteram os paradigmas e através da vida acadêmica, da militância e de outros movimentos sociais, conseguiram questionar universalidades e apontar para outras perspectivas, produzindo referências para os passos que seguem através das novas gerações.

Dentre os processos observados e analisados de forma interseccionada, as trajetórias investigadas trazem especificidades da vida em movimento (em deslocamentos) que apresentam características relevantes na organização de uma série de ações de luta e resistência na vida dessas mulheres. Evidencio estes processos através das trajetórias apresentadas, particularmente a de Dona Railda.

A trajetória de vida de Dona Railda, que doravante passo a descrever para refletir sobre as questões sinalizadas acima, apresenta características que são comuns a inúmeras mulheres negras das grandes periferias do Brasil. Peculiar em sua trajetória é como ela em seu cotidiano vai se fazendo em um envolvimento com os movimentos sociais por moradia, este, marcado pela presença significativa de mulheres.

Railda nasceu no início dos anos 60 do século XX, no interior do Estado da Bahia, no município de Catu (“território de identidade”: Litoral Norte, à aproximadamente 78 km de Salvador), no povoadozinho de Pau Lavrado, na roça. Uma negra, uma dos sete filhos dos lavradores Dona Albertina e Seu Cosme. Sobre esses tempos, lembra que

[Os] pais são de famílias também muito pobres, nasceram no interior, na roça. Não tinha meio de sobrevivência, não tinha bens próprios, trabalhavam nas fazendas de quem tinha fazendas, dos conhecidos. Trabalhava pra sobreviver. Arrendava a terra. Como não tinha terra dele mesmo, ele tinha que arrendar e fazer roças para sobreviver. Que ela, plantava mandioca, aipim, milho, feijão e essas frutas que guentam mais só: abóbora, melancia [sic]... Essa era a luta deles, trabalhava e vendia. Na época, fazia farinha e vendia na feira. E o que conseguia colher da roça que era o milho e o feijão que vendia também. Plantava fumo, que também vendia para os trapichos [sic] ."[grifos meus].

A família “não tinha meio de sobrevivência, não tinha bens próprios, trabalhavam nas fazendas de quem tinha fazendas, dos conhecidos. Trabalhava pra sobreviver. Arrendava terra”. Características nos tempos atuais da vida no campo brasileiro: concentração fundiária e exploração do trabalho. A produção era basicamente para o sustento deles e o excedente comercializado na feira local. Essa experiência ela compartilha com outras mulheres. Seus pais migraram de Pau Lavrado em meados dos anos 1990 para o Lobato, no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Por intermédio de “um primo da gente aqui em Plataforma”, recorda Railda.

Dona Railda: um primo da gente aqui em Plataforma conseguiu um sítio para meu pai vir tomar conta aqui no CIA, ele não queria vir, mas aí juntou minhas irmãs tudo que já tava aqui e todo mundo deu a maior força, aí foi que trouxe meu pai e minha mãe de lá pra cá. E eles passaram dez anos aí no CIA e agora eles moram no Lobato, lá junto com a gente.

Ediane Lopes:[4] Seus pais hoje moram no Lobato?

Dona Railda: É. Todo mundo mora lá.

Ediane Lopes: A senhora também mora no Lobato?

Dona Railda: Moro no Lobato. São seis 'irmã', uma mora em São Paulo e cinco mora em Lobato. E um irmão que mora em Simões Filho.

Seu primo conseguiu um sítio para o pai dela “tomar conta aqui no CIA [Centro Industrial de Aratu]” a, aproximadamente, 18 km de Salvador. Sua mãe, por sua vez, “não queria vir, mas aí juntou minhas irmãs tudo que já tava aqui [em Salvador] e todo mundo deu a maior força, aí foi que trouxe meu pai e minha mãe de lá pra cá. E eles passaram dez anos aí no CIA e agora eles moram no Lobato, lá junto com a gente”.

O caminho percorrido pelos pais de Dona Railda até chegar a Salvador os levaram antes a outro município da Região Metropolitana, mas os mantinham ligados ao trabalho na roça. Atualmente, os pais e as irmãs Sílvia, Cristina, Valdete e Biuga residem no mesmo bairro, em Salvador, formando uma vizinhança comum, com exceção da irmã, Beatriz, que continuou a mobilidade com destino a São Paulo, com desejo de conseguir um trabalho; e de seu irmão que mora no município de Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador.

A trajetória de deslocamento da família de Dona Railda caracteriza a criação de condições econômicas e sociais básicas, muitas vezes não planejadas, que viabilizam também o deslocamento de outros membros da família. Nas Ciências Sociais muitos estudos sobre migração interna apontam para este aspecto (SOUZA, 2013).

No caso de Salvador, um exemplo seria a configuração de “avenidas”– pequenos becos e ruelas estreitas e, quase sempre, sem infraestrutura. Porém, esta noção assume entre os moradores dos bairros pobres, “populares” de Salvador outros sentidos e significados, são ruas e bairros formados por membros de uma mesma família e parentes (por consanguinidade, aliança e “consideração”), vindos em diferentes momentos, que caracterizou o crescimento e a urbanização de inúmeros territórios da cidade da Bahia.

Mãe de sete filhos, quatro filhas de sangue e três (uma mulher e dois homens) adotivos – nos termos de Dona Railda, de coração,[5] atualmente ela reside com as filhas de sangue. Mantêm, com a ajuda delas, um pequeno negócio de venda de bebidas. Além deste pequeno negócio, também vende produtos de catálogos de revista. É da renda que gera com estas atividades que garante a sobrevivência de si e da família.

Vale ressaltar que, ao referir-se ao trabalho como vendedora Dona Railda inclui sua prática atual no movimento social de cultura do Subúrbio como ação e trabalho voluntários. Observei que esta forma de entender e classificar a participação nos movimentos sociais -, como trabalho voluntário -, na atualidade, indica um deslocamento de sentido na compreensão e na forma de relacionamento pessoais atualmente. Isto ocorre – mesmo entre algumas mulheres que já têm atuação há décadas –, nestes “movimentos” e com a própria luta, desde os finais dos anos 1990 e primeiros do século XXI. Encontro, da mesma forma, em outros relatos este mesmo deslocamento de perspectiva.

É importante dizer que no rol dos migrantes entrevistados com trajetórias marcadas pela participação política, vinculada ou não a algum movimento social, a própria concepção de movimento indica diferentes dimensões. Então, estar no movimento significa participar de um “movimento”,[6] compartilhar de suas “bandeiras”, pautas de reivindicações e ações orientadas; mas, da mesma forma, pode significar estar nos lugares onde estão as pessoas, onde a vida acontece e onde pode participar desses acontecimentos. Naschieli Loera (2009) aponta para estas múltiplas concepções sobre estar no “movimento” ao acompanhar a trajetória de trabalhadores sem terra no percurso dos acampamentos.

A concepção de estar ‘no’ e ‘em’ movimento informa muito dessa trajetória. Essa mulher, bem como outras mulheres, construiu uma trajetória ‘no’ e ‘em’ movimento na busca por superar as carências de serviços, infraestrutura e benefícios sociais, em busca de garantir melhores condições de vida, através da luta coletiva. O processo de envolvimento e participação destas mulheres negras nos movimentos possibilitou a elas dar um salto conceitual e político fundamental, ao transformar as “carências” em necessidades através da luta coletiva.

A participação dessas mulheres negras na produção da luta social e política por moradia, infraestrutura, serviços (escola e equipamentos de saúde, transporte, etc.,), trabalho indica para um primeiro deslocamento de sentido e ressignificação ao apontar para a dimensão individual da carência enquanto que a necessidade, por outro lado, encontra-se numa esfera coletiva e, como tal requere organização e ações coletivas.

Episódio 1. A fuga

Sobre isto, diz:

Fui criada na roça e sai de lá com onze anos de idade”. Saiu da roça fugida – “era de menor”, tinha pouco mais de 9 anos de idade, ao que tudo indica, em 1971 –, do pai que “era daquele tipo, do machismo, de que o homem pode tudo e que a mulher tem que ser o capacho. E ele não tinha nada, mas tinha várias 'rapariga', maltratava a minha mãe, (…) e minha fugida de casa; foi isso”.

A fuga – marca o primeiro deslocamento importante em sua trajetória.

A violência cotidiana representou, em diferentes momentos, uma linha de fronteira, ou melhor, uma linha de [inter]conexão na trajetória biográfica e política de Dona Railda. A ruptura com a experiência de violência no âmbito doméstico caracteriza a trajetória de outras mulheres envolvidas no movimento, mesmo que de certa forma os conflitos e disputas com os homens no âmbito do movimento político ainda se mantivesse.

A entrevistada prossegue em sua narrativa reafirmando a centralidade da dimensão da violência em sua trajetória desde a infância:

Dona Railda: !Eu apanhava muito. Batia por tudo [o pai dela] e eu também não era 'frô' que se cheirava por que eu não gostava que maltratasse minha mãe. E aí eu fugi do interior calçada numa sandália Havaiana, ainda com um arame embaixo da sandália, panhei um dinheiro que na época ele tinha vendido uma “sama de fumo” [corda de fumo e/ou rolo de fumo] e eu vi que ele botou dinheiro no colchão o [sic]. Aí eu peguei o dinheiro de transporte, peguei um ônibus e vim me embora pra aqui [Salvador]" [grifos meus].

O relato acima fornece elementos para refletir sobre o viver e o escapar da violência doméstica e de gênero. A forma como as mulheres vivenciam esse tipo de violência no interior e na cidade. Revela sobre a experiência dessa mulher ao escapar da violência doméstica e de gênero no âmbito da família ainda no meio rural para, neste caso, vir a viver outras formas de violência na periferia da cidade, marcadas pela segregação racial, pela violência vivida enquanto mulher negra e mãe de filhos negros.

O Subúrbio Ferroviário é uma das regiões da periferia de Salvador circunscrita pela violência policial que atinge a população negra, em particular a juventude negra vítima de homicídio, sendo um drama que encerra a vida de inúmeras mulheres, mães, avós, tias, companheiras, filhas etc.,

Episódio 2. O enfrentamento

Na vida adulta, fortalecida pela vida no movimento, Railda resolve enfrentar a violência e a subordinação. Sobre este processo recorda dos desentendimentos que passou a ter com o companheiro quando resolveu entrar nessa comissão de moradores, ligado ao Movimento em Defesa dos Favelados (MDF):[7]

"Mas, dois anos depois que a gente foi para o Lobato, aí a gente se separou. Que quando eu entrei nessa comissão de moradores ele não aceitava. Que achava que o que a gente fazia era coisa de desocupado, subir e descer pra reunião. E aí a gente começou a ter desentendimento. [Ele]começou a ir pra a igreja e aí depois resolveu se batizar. Aí me chamou pra gente casar, e aí eu disse: “olhe eu não tô a fim de casar, mas se você qué, tudo bem. Agora, com uma condição, eu caso com você, agora, pra igreja eu não vou.” Aí ele me impôs outra condição, que a gente tinha que casar e eu tinha que ir para a igreja e largar esse negócio de subir e descer atrás de reunião de comissão que eu não ia ganhar nada com isso. Aí eu disse assim: “Pois é, eu nem quero casar e vou continuar indo para a comissão, você querendo ou não” (...) O MDF, que era a rede que a gente participava, (...) tinha várias comunidades. E veio muita gente do interior, também, pra uma reunião com o governador que estava marcada para as 22 horas. Quando a gente foi conseguir ser atendido era duas e tanta da manhã. E aí eles mandaram o carro levar, a gente, que ficou, que não tinha transporte, ele mandou levar. Quando o cara parou o micro-ônibus que veio trazer o povo do Subúrbio, aí ele [marido] abriu a porta e aí olhou e fechou a porta novamente. Aí, eu bati na porta pra ele abrir a porta pra eu entrar, e aí ele disse que não ia abrir. "[grifos meus]

O deslocamento de Dona Railda para Salvador é representada da mesma forma que a fuga de um lugar social reservado à clausura do lar e da vida privada da família, bem como do casamento.  Este processo de fuga se manterá ao longo de sua trajetória na cidade, ao se aproximar da ocupação do espaço da luta, uma luta que implica a ideia de a moradia para além da casa/lar, e a amplia para a casa/cidade.

É importante destacar que, ao aderir a um movimento público/político, escolher por subir e descer, as mulheres são colocadas frente a novas situações de tensão, seja no interior da família, no local de trabalho ou nas relações de afeto e vizinhança. Quem adere a um movimento pode vir a se diferenciar, rompendo, por exemplo, com antigas relações de poder estabelecidas no interior da família. A continuação da fala de Dona Railda indica para um exemplo desta ruptura:

Dona Railda: E eu amanheci o dia na porta. Aí, quando foi de manhã eu disse, 'apois', hoje é eu ou você. Ou eu ou você. Aí a gente começou a brigar, ele me bateu, eu também não era mole, aí tirei um pau e dei-lhe uma cacetada nele e aí ele foi também e ele foi na delegacia também e deu queixa de mim, eu dei queixa dele. Depois aí teve a audiência. E aí, na audiência, ficou de a gente dividir o barraco, como o terreno era do Estado a gente não podia vender, podia vender o barraco, só o material que tinha em cima do chão. Ou eu dava a parte dele ou ele dava a minha. [grifos meus]

No entanto, esse aspecto não é uma especificidade apenas da história de vida de Dona Railda. Assim como ela, outras mulheres contaram sobre suas experiências de enfrentamento e de ruptura com o cotidiano de violência, no âmbito doméstico e público. Observei dentre estas, que algumas vivenciaram a violência doméstica desde a infância; outras se depararam com ela em seus relacionamentos amorosos e conjugais, antes mesmo da participação na luta, mas que se intensificou após a inserção nela.

Ana Claudia Pacheco (2008) faz um percurso sobre a trajetória de mulheres negras em Salvador marcadas ou não por uma trajetória de “militância” e que vivem a solidão; problematiza a condição de lideranças sociais que elas vivenciavam e como isso implica suas escolhas afetivas e a situação muitas vezes sentidas por algumas como solidão. Muitas delas acabaram por “escolher” ficar sozinhas por causa da negação, bem como em virtude das recorrentes situações de conflitos e violência com seus “companheiros”, que não aceitavam as suas escolhas, inclusive de envolvimento direto na luta.

Dentre as mulheres migrantes com trajetórias atravessadas pela participação nos movimentos sociais, na luta, subindo e descendo, deslindo aqui alguns aspectos da experiência de Dona Mira.[8] Ao chegar a Salvador, no bairro de Sete de Abril, Mira começou a namorar e foi morar com o pai do seu primeiro filho. O relacionamento marcado por fortes crises de ciúme e outras violências a levou à separação, seguida pelas perseguições dele. Isto a fez deixar o bairro de Sete de Abril, bem como o emprego numa escola infantil onde trabalhava no bairro da Federação. Conforme lembra, “ele aparecia lá na frente da escola dando escândalo e me fazendo passar constrangimento...”.

Para romper, definitivamente, com o circuito que a colocava em situação de vulnerabilidade diante do ex-marido, resolveu sair do bairro e do emprego. Como disse, procurou “um lugar onde ele não conhecesse ninguém”. Desta forma que seu percurso por Salvador a levou para o Subúrbio, no bairro do Rio Sena. É verdade, sua escolha também foi definida pelo fato que ali ela tinha a referência de um dos seus irmãos, que mantinha uma casinha por lá, alugada. Ele cedeu a casa para que ela pudesse morar com o filho. Tempos depois, ele pediu a casa de volta para poder abrigar um dos filhos.

A alternativa para Dona Mira foi buscar um lugar que pudesse pagar um aluguel com o salário que recebia para lecionar numa escolinha de bairro particular. Dona Mira chegou ao bairro do Alto da Terezinha. Lá começou a trabalhar na escola comunitária do bairro: A união faz a força – coordenada por Mariana Oliveira (a referência à sua participação na constituição e articulação das escolas comunitárias em Alto da Terezinha, no Subúrbio e em Salvador aparece em diferentes relatos), no início da década de 1980.

O trabalho na escola marcou sua participação no movimento. Professora já com experiência de ensino em sua cidade natal e em Salvador, a jovem Mira cheia de ideais e desejos de ter uma vida melhor e ajudar pessoas que viviam nas mesmas condições que ela, acabou se envolvendo na luta do bairro e se ligando à Associação de Escolas Comunitárias de Salvador.

O movimento, em termos gerais, buscava educação, melhorias de infraestrutura, habitação e saúde, demandas muitos comuns para uma região que recebia todos os dias inúmeras pessoas em busca de um assento na cidade, querendo fincar raiz, e que ali não dispunham do mínimo de infraestrutura e serviços básicos. Ademais, vivenciavam, na prática cotidiana da disputa pela ocupação e permanência na terra, conflitos contra particulares e o próprio Estado, disputas estas orquestradas, muitas vezes, por confrontos violentos com as milícias armadas e a polícia.

Mira recorda que, nessa época, durante as visitas e reuniões na prefeitura de Salvador para reivindicar calçamento nas ruas de Alto da Terezinha, representantes da associação descobriram que nos registros e documentos municipais constava que as ruas do bairro já dispunham de asfaltos.

Nesta época, atuava também no:

"Grupo de saúde que servia à comunidade. Era feito remédio e vendido a preços módicos, né, para que todos tivessem acesso... E também orientação sobre higiene e todos os comportamentos... Remédio pra matar piolho, parasitas, pra frieiras, uma série de coisas (...). Tudo natural! Unguentos, xaropes e muitas outras coisas, sob a orientação de doutor Elder [médico que coordenava o projeto em parceria com uma assistente social da Universidade Católica do Salvador]. E sempre vinham pessoas de outras comunidadestinha uma senhora de Alagoas e do interior... Vinha ensinar a fazer os remédios."

Encontrei referências deste trabalho desenvolvido com medicamentos naturais e fitoterápicos nos relatos de outras pessoas, com os quais convivi e entrevistei, a exemplo de Mariana, Julieta, Neco, Pedro Cardoso, Nalzina, Padre Oliveira, Seu Bitonho, etc., que estavam ligadas diretamente ao trabalho de produção e/ou que não estavam no movimento. Também obtive relatos dentre mulheres que cuidaram dos filhos usando os remédios disponibilizados na pequena farmácia criada nesta rede complexa formada pela associação de moradores, escola comunitária e grupo de saúde (a farmácia foi desativada em meados dos anos 2000).

Entretanto, a principal bandeira de luta era a educação e um espaço onde as crianças fossem cuidadas e as mães pudessem trabalhar. Por isso, criou-se a escola comunitária, com o desejo de oferecer um espaço e um projeto educacional diferenciado, atento ao perfil da “comunidade”.

No movimento das escolas comunitárias, Mira participou da luta para que a prefeitura de Salvador assumisse responsabilidade com as escolas comunitárias da cidade em termos similares às escolas municipais. A conquista veio depois de muitas manifestações e da coleta de inúmeras assinaturas em toda a cidade, que gerou uma das maiores conquistas do movimento, segundo consta, com a aprovação na Lei Orgânica do Município, artigo específico, que estabelecia o repasse de 3% dos recursos que eram destinados à educação municipal para as escolas comunitárias.

A referida resolução foi aprovada na primeira administração da prefeita Lidice da Mata que, à época, representava um governo, considerado “progressita” e próximo aos movimentos sociais. Mas “nunca chegava todo o recurso, atrasava e quando chegava não dava para pagar a folha de pagamento dos professores”, recorda Mira.[9] Isto gerou, anos depois, na justiça, processos trabalhistas.

Foi também no início da década 1980 que Mira conheceu e começou a participar do movimento negro, o MNU – Movimento Negro Unificado –, com sede no Curuzu, à época. A este envolvimento atribui a compreensão das dimensões do racismo em sua vida e, de maneira mais ampla, na sociedade. Participar desse movimento lhe possibilitou conhecer, nas subidas e descidas dos encontros e reuniões, pessoas importantes, como a exemplo Abdias do Nascimento e as mulheres do Geledés.[10] Mira se afastou desse movimento quando nasceu a filha. No Rio Sena acabou se inteiranado da luta junto a Associação de Moradores de Alto da Terezinha.

Mira criou os quatro filhos – Carlos Miguel, Quênia, Rafael e Rodrigo –, descobriu novos amores e construiu seu relacionamento, que já dura mais de 20 anos, no Rio Sena. Sobre este relacionamento, destaca, ele só continua há tanto anos por “cada um morar no seu canto”. Este foi o modo que criou para garantir, fundamentalmente, sua liberdade e autonomia. Mira foi capturada novamente pelo movimento, desta vez pelo Movimento dos Sem-teto da Bahia, como dito. Segundo Mira, ela não queria mais se envolver no movimento.

Da mesma forma, registra que seu marido também não queria que ela o fizesse, pois temia perdê-la para o movimento. Ela, porém, foi descoberta e não conseguiu escapar. Ao que busca explicar dizendo que o movimento é sua vida – é como se tivesse no sangue. Afirmar a presença do movimento em sua vida, ou melhor, a vida como o movimento, é a forma encontrada por muitas pessoas para enfatizar porque não se pode escapar da luta.

Vale ressaltar, entretanto, que a presença maciça das mulheres que caracteriza o movimento por moradia no interior de movimentos sociais, não as transformou em feministas, necessariamente; mas pôde alterar suas redes de relação e de poderes no interior da família e da comunidade. Mira entende que é através da “educação diferenciada” que a transformação pode acontecer na vida das pessoas pobres como ela. Isto explica as dificuldades que tem, hoje, uma mulher madura, de se ver inserida em escolas convencionais, sejam particulares ­– onde já ensinou – ou escolas do governo.

A reflexão de Dona Mira reporta aos debates atuais no Brasil a respeito da produção de um novo projeto educacional que esteja pautado nas diferenças sociais e culturais e, ao mesmo tempo, sinaliza para os limites reais encontrados na sociedade e nas instituições de ensino para colocar em prática algumas orientações já consensuadas, neste sentido, inclusive do ponto de vista jurídico.

As narrativas empreendidas por nossos interlocutores acerca de suas experiências na luta apontam para a flexibilidade da noção de “movimentos sociais”, o que pode nos parecer redundante no sentido em que o termo movimento, em si, já indica mudanças, reajustes e reformulações permanentes no tempo e no espaço. Da mesma forma, a noção de “liderança” também se desloca nestas esferas, no contexto e, especialmente, a partir do olhar destas pessoas acerca das suas experiências e práticas, no âmbito dos movimentos sociais.

Episódio 3. Tornando-se liderança

Não ser “'frô' que se cheirava” é a primeira dimensão de autorepresentação que aponta para a naturalização da construção como liderança de Dona Railda. Para ela, “ser uma liderança, (…) é ser responsável, ter responsabilidades consigo e com os outros, independente do que cada um de nós faça, a gente precisa ter respeito uns com os outros. Pra mim, ser liderança hoje é ser tudo, é ser responsável”. A noção de “liderança” é recorrente e central na narrativa dos migrantes que se inseriram no universo da ação política, institucionalizada ou não, no Subúrbio. Estes forjaram diferentes formas de entendimento e ação mediante a luta.

Os sentidos operados por essas pessoas são bastante eloquentes ao demonstrarem que não estamos diante de um conceito fixo; mas, por outro lado, de um parâmetro que nos alça a variadas dimensões do efêmero, do mágico/religioso, da responsabilidade e da confiança, do cuidado e do dom.[11] Para tentar deslindar alguns destes sentidos e concepções começo por destacar o trecho do relato de Dona Nena: “É difícil. Você ser líder é difícil. A liderança hoje é aquilo que você é, defende, é seu sonho. É o sonho que você sonha pra se tornar realidade. Ela continua sua narrativa indicando a efemeridade e a solidão que, muitas vezes, se abate na busca por realizar o sonho.

"E você é liderança pelo momento também. Por um tempo. Você tem vez que tá liderando cem pessoas e de repente você combina e não tem dez pessoas com você. Então, você já não é líder de cem pessoas, você já é líder de dez pessoas. E tem vez que você não é líder, está sozinho. Porque nessa caminhada eu passei deserto, deserto e, muitas vezes, eu cheguei a ficar só."

Para espraiar esse enredo, retomo a narrativa de Dona Cecília. Ela evidencia em seu relato a dimensão mágico/religiosa ao pensar sobre o significado de liderança: “Para mim, o que é líder? O líder, só é Deus. Primeiramente, o líder, só é Deus”. A influência do pensamento cristão, católico disseminado pelos movimentos de base perpassa sua forma de ver e se colocar no mundo em suas trajetórias de vida no Subúrbio, assim como nas de muitas outras pessoas que vivem neste grande território, pois aí a rede religiosa foi muito presente na história de formação e consolidação de inúmeras “comunidades”. No plano da vida material, ela entende que “a gente estamos aqui pra melhorar. Se a gente quer alguma coisa, a gente tem que fazer e dar testemunho daquilo que faz”. No sentido ainda atribuído por ela:

"Se eu não tenho testemunha daquilo, como é que eu vou exigir dos outros? Quer dizer, engano, eu tô enganando, e tudo que eu engano não tá certo, né? (...) Porque eu posso dizer: fulano, você vai fazer isso pra mim? Pra eu dizer a você que eu vou fazer pra você amanhã? Não, eu quero ver hoje."

E define, por fim, a liderança como sendo “aquilo que não busca (...) poderes próprios.” Ou ainda, como a prática que “toca em outros, para que outros também possa fazer... [sic] A liderança, também, é aquilo que a gente faz de benefício em função de outros.” Num outro lastro, Dona Julieta vê o lugar da liderança a partir da trajetória do indivíduo.

Para ela, ser liderança significa sair para o mundo, ocupar o espaço público, ao que sentencia dizendo:

"Para mim, um pouco da minha vida. Faz parte da minha vida, a liderança. Não é ser líder, é querer ajudar. Que eu ajudo a mim própria. (…) Faz parte do meu viver... Viver na comunidade... Tentando ajudar... Fazer algo (…) que eu tanto obtenho conhecimento como passo para outros, né isso?” (...) Quando eu fico dentro de casa, eu fico doente, não gosto de ficar dentro de casa. Eu tenho que andar. Não estava marcado para eu ir hoje na Associação da Bahia, mas, eu ia porque eu ia sair de dentro de casa. Eu ia lá... Lá tem movimento."

No relato acima, Dona Julieta inicia sua elaboração sobre o lugar da liderança a partir da trajetória do indivíduo e indica o significado da liderança no movimentar que se constitui no percurso, no sair para o mundo, ocupar o espaço público. Podemos dizer que se realizar no movimento, se movimentar, para essas mulheres, está associado também à noção de cuidado com o outro, de responsabilidade com a vida do outro coletivo. Parece-me possível pensar que haja aí, intrinsicamente, alguma noção de família no espaço público, a família extensa, configurada com laços que ultrapassam as noções de consanguinidade e aliança. A família sustentada na consideração, no parentesco de consideração,[12] que demanda neste sentido o cuidado de alguém.

Dona Railda, de maneira semelhante, alinhava sua trajetória de vida em Salvador e no movimento, andando pela cidade. O movimento é o próprio percurso realizado... Assim, a política e o fazer político se mostram em dinâmica, na ação e atravessando a vida das pessoas em todas as suas dimensões.

Michel Agier (1998b) reflete sobre a multiplicidade de sentidos produzidos e apreendidos pelos sujeitos no processo de reconstrução de si ao serem forjados como líderes. Agier opera essa noção a partir do modelo do “renunciante”, como uma experiência da passagem do estado de “pessoa” para o de “indivíduo”, em meio às incertezas que configuram as relações formalizadas, a exemplo da escola, do emprego, etc., experiência na qual, ao final se mostra uma revelação, ruptura ou transformação, para ocorrer a modificação sensível na posição social dos indivíduos.

Neste sentido o líder é um renunciante, que experimenta a passagem de uma situação a outra de modo dramático, ao caminhar de maneira diferenciada de seu grupo de origem e se desenraizar das ilusões da sociedade individualista.

Não obstante a dimensão apontada por Agier, em consonância com o que aparece em muitas das narrativas postas aqui em relevo, me parece fundamental indicar os ganhos sociais e o prestígio agregados por estas pessoas ao passarem a fazer parte do movimento e da luta, a exemplo do reconhecimento por diferentes setores da vida social (universidades, ONGs e diferentes órgãos estatais, etc.,) pelo trabalho realizado; do acesso ao ensino formal (escolarização) e a diferentes formas de conhecimentos fora do âmbito local; de novas possibilidades de trabalho, dentre outras. Nesta linha o trabalho de Loera (2009) acompanhando trajetória dos trabalhadores Sem-Terra envolvidos no “movimento” dos acampamentos, vê a “liderança” como uma experiência que envolve não apenas perdas, mas também prestígio a estas pessoas.

Ademais, observei, especificamente, que os posicionamentos das mulheres líderes, além das diversas dimensões já apontadas, sofreram e ainda sofrem influências – algumas vezes sutis e outras vezes diretas – da dimensão do cuidado, do seu “lugar social” de gênero dominante. Isso se reflete na forma como elas pensam o seu espaço de atuação e na forma como se percebem, enquanto lideranças, quando atuam nos espaços públicos. Ser liderança, para boa parte das mulheres entrevistadas, sugere uma dimensão de cuidado que revela a construção cultural feminina, respaldada em algumas das noções que se agrupam no conceito de feminilidade.

A condição de migrante destas mulheres vindas para a capital baiana em meados 1970 e a década de 1980 lhes colocava diante da necessidade da busca pelo trabalho fora do espaço doméstico para continuar na cidade; por outro lado, muitas se viam impossibilitadas, pois não tinham (e muitas ainda não têm) com quem deixar seus filhos. Mesmo observando uma demanda grande por creches e escolas em muitos dos bairros do Subúrbio, este é um dos lugares da cidade com maior concentração deste tipo de instituições. Estas mulheres acabam por estender para o espaço público características de sua atuação no espaço doméstico, especialmente, em se tratando do cuidado e dos espaços que assumem para atuar.

O cuidado com as pessoas do local não só é visto em termos de infraestrutura, mas, especialmente, destacam-se características subjetivas, emotivas – o belo, a autoestima. Em se tratando de atuação em movimentos de bairro, onde ainda é maior a presença de mulheres podemos perceber mais nitidamente esta forma de conduzir a luta e exercer a liderança. Justamente por que as mulheres estendem os cuidados que têm com o espaço doméstico para os cuidados com o espaço de lazer dos seus filhos, de educação dos mesmos e das outras crianças, em creches.

'As mulheres daqui não tinham emprego, nem nada'. E onde as mulheres conseguiam emprego? De doméstica, era na Pituba. Aí, eu disse: 'como é que eu vou fazer? Eu tenho que lutar para eu conseguir a linha Pituba', uma linha para a Pituba”, [bairro de classe média].

> No relato de Dona Cecília observamos esta dimensão do cuidado de forma extrapolada para diferentes relações. Neste caso, vejo uma extensão de solidariedade com as outras mulheres do local. Não obstante, a raça e classe marcam a inserção e atuação dessas mulheres na cidade. Os registros etnográficos analisados apontam que o movimento feminista à época tinha um perfil que não atraia essas mulheres negras para aderirem a certos valores, entre eles, a negação do cuidado e da noção de família. Isto porque tais valores permanecem na vida dessas mulheres na militância e constituem categorias que parecem importantes para as mulheres com as quais dialogamos, elas vindas do interior.

***

De volta às linhas traçadas por Dona Railda ao chegar a Salvador, observo aspectos expressivos de sua condição de pobreza, os quais aparecem como característicos de uma moral positivada, mas que ao mesmo tempo, são alvos de resistência e subversão. Ou seja, como disse Dona Railda: “fugi do interior calçada numa sandália Havaiana, ainda com um arame embaixo da sandália”. Essa imagem pode nos ajudar a entender a representação que ela faz do percurso de renúncia e superação que produz na cidade. Nessa narrativa ela ensaia um conjunto de imagens acerca de uma cidade que, aos seus olhos interioranos, ao mesmo tempo em que lhe assustava, também lhe inebriava de fascínio.

Antigamente, quando eu vim à rodoviária ainda era na Sete Portas”. Sua inserção na cidade começava, dessa forma, pelas “Portas” da cidade. Seus primeiros dias dormindo nas dependências da rodoviária são preenchidos com a procura por trabalho, o que conseguiu através de ligações “no telefone público”, “nunca tinha visto aquilo [telefone de ficha]” e enfatizou: “Consegui achar um trabalho na casa de uma mulher, fui trabalhar. Consegui ficar lá porque naquele tempo não pedia referência nem nada. Eu era de menor, mas fugi com o registro na mão. Dessa maneira, ainda criança, acessou o “mundo do trabalho” remunerado, como empregada doméstica, numa casa no bairro de São Lázaro.

No fragmento que destaco, Dona Railda informou sobre a maneira como conseguiu driblar a curiosidade dos patrões acerca da origem e paradeiro de sua família. Afinal ela era de menor e apareceu ali sem estar ligada a nenhuma rede de referência conhecida deles.

Dona Railda:"E aí sempre que eles falavam de minha mãe e meu pai. Eu dizia que tava bem. Fim de semana quando eu tinha folga eu passava o dia na rua, andando pra lá e pra cá, por que eu não conhecia nada. Ficava mais ali próximo ao Cemitério do Campo Santo [localizado no bairro da Federação], por que eu morava por ali, a moça que eu trabalhava morava ali perto, na entrada de São Lázaro [bairro entre a Federação e Ondina], onde era uma Escola de Engenharia e que hoje é uma faculdade. (...) E aí eu ficava o dia na rua e ela pensava que eu estava em casa. Eu menti que morava aqui, porque eu tinha uma tia que morava em Plataforma e disse que morava em Plataforma, e ela não sabia, realmente, nem quem eu era."

Como notei, ao analisar outros relatos, a inserção na cidade de Salvador para muitas das mulheres entrevistadas aconteceu através desse mesmo universo: o trabalho doméstico. Além dela, no quadro geral das trajetórias analisadas, Mãe Ciça consolidou sua presença em São Salvador através do serviço em “casa de família”. O trabalho doméstico a levou a romper os limites territoriais do Estado da Bahia até a capital do Estado de São Paulo. A literatura estudada indica para a importância do trabalho doméstico como ponto de chegada e permanência de muitas mulheres que têm suas experiências marcadas pela migração e sucessivos deslocamentos em diferentes cidades brasileiras (KOFES, 2001a; PACHECO, 2008)

Embora não sejam só mulheres que tenham vivenciado trajetórias de chegada e permanência em Salvador, marcadas pelo trabalho doméstico, é entre elas maior a recorrência. Para muitas delas, ao que se averiguou, o espaço do trabalho era também o lugar da morada. Nestes casos, a ruptura com o espaço do trabalho significava a perda desse lugar; e mais, significava a confirmação da necessidade da casa própria e a busca dela; afinal a manutenção do aluguel ou mesmo “morar de favor” na casa de parentes e amigos não era algo fácil de manter.

Como registrou Dona Railda, “em toda família sempre tem o mais pobre e tem um que tem uma situação financeira melhor e minha mãe tinha uma tia que morava dentro mesmo da cidade de Catu”. E foi junto a esta tia, em “situação financeira melhor”, que Dona Albertina recorreu com a esperança de reencontrar a filha fugida, como destacou em seu relato que transcrevo a seguir:

Dona Railda: "A filha dela [da tia de sua mãe] era casada com um advogado, o qual até já morreu, e minha mãe pedindo socorro a um e a outro, que eu tinha fugido, procurou em Catu, as pessoas conhecidas. Aí começaram a me procurar e aí esse advogado – eles ouvia na Rádio Sociedade da Bahia um programa que tinha "O Forró da Pioneira", que era cinco horas da tarde. Aí esse advogado veio aqui pra Salvador e botou uma matéria na rádio falando sobre Sussu – que era o meu 'apelide' –, mas por nome Railda. E aí foi quando ela [sua patroa] estava em casa e ouvia o rádio e aí me perguntou: "Railda, você tem algum 'apilide'?" Eu estava na cozinha, já tinha dois anos lá, aí eu disse assim: Tenho. "Qual é o seu 'apelide'?". Eu: Sussu. Mas eu falei já tava acostumada lá e tudo. Ela veio com um pedacinho de papel – ela era professora e o nome estava anotado –, ela falou: "Sussu mesmo?" Aí eu disse é. "Você é de onde?" Minha família mora em Plataforma, eu continuei sustentando. Aí ela disse: "Você é de Pau Lavrado...". Aí disse nome de minha mãe, nome de meu pai, e tudo. Aí ela falou: "Vá pegar o seu registro [de nascimento] ali que eu quero ver".  Aí eu não tive como mentir mais. Ela me botou, eu fui lá, peguei o registro e entreguei a ela, foi um dia de quinta-feira, aí quando foi na sexta-feira de tarde ela me botou dentro do carro mais o marido, foi na Rodoviária, comprou uma passagem, fez eu passar o torniquete e pegar o ônibus e ir embora. Ir em casa visitar meus pais. Só que ela mandou eu ir e ela, quando ela mandou eu passar no torniquete, ela foi embora e eu fiquei olhando. Quando ela deu as costas eu voltei de novo. Porque eu tinha medo de apanhar, porque eu apanhava muito."

O medo de apanhar a segurou em Salvador. Não queria retornar a Catu por isso, mas não só. Tratava-se, sobretudo, de se distanciar de um universo de trabalho na roça que ela havia experimentado desde criança e do qual não sentia saudade. Nos termos de Dona Railda: “eu comecei a trabalhar com sete anos de idade eu já trabalhava plantando capim nas fazenda [sic]. Quando eu coçava, a pele vinha na unha. Sempre eu trabalhei, ajudei meus pais”.

A rodoviária, mais uma vez, foi o porto seguro aonde se manteve por mais alguns dias. A partir daí reiniciou a procura por um novo trabalho, o que aconteceu. Dona Railda, novamente se inseriu no espaço privado de outra casa de família. Nela compartilhava com outros funcionários os serviços da casa:

Dona Railda: "tinha eu, que eu era copeira, tinha lavadeira, tinha cozinheira, lá não tinha criança. Tinha o jardineiro, tinha o motorista. Foi à família Barreto, que foi uma família muito boa como patrão... Foram muito bons pra mim, Dra. Lúcia, Dra. Quinha, e a mãe deles também, Dona Robélia, que era Matos Nascimento, eram pessoas muito boa[ênfase dela] e que eu não gastava dez centavos do meu dinheiro. [sic]. Todo mês Dra. Lúcia pegava o meu salário e botava numa caderneta [de poupança] no nome dela e me dava um papelzinho – por que eu era de menor e não podia botar dinheiro e nem tirar – aí ela botava no nome dela e me dava um papelzinho. Aí quando eu fui embora, resolvi ir em casa, ela foi lá e tirou todo o meu dinheiro e me deu. E fora as coisas que eles me deram para eu levar. Aí eu fui pra casa e pedi perdão para minha mãe, meu pai ."[grifos meus].

Ela retornou a Catu tempos depois. Em seus termos: “aí eu fui pra casa e pedi perdão para minha mãe, meu pai”. E os vínculos com a família, há mais de cinco anos rompidos, foram reatados. Sobre esse episódio diz que: “Quando eu voltei, eu já voltei, acho, que uma outra pessoa. Meu pai também já não era mais aquele que maltratava minha mãe”. As mudanças operadas com os deslocamentos e o tempo haviam “dissolvido” os conflitos que há muito cindiram a relação entre eles. Os laços familiares e a relação de reconhecimento e respeito tinham sido restabelecidos. 

Mas a trajetória é também de colocações. O desejo de ter outras possibilidades pulsava em Dona Railda e, apesar de considerar como positiva sua passagem naquela casa de família, queria buscar outras oportunidades no retorno a Salvador. Assim continuou seu percurso e produziu outros enredos na cidade. Foi trabalhar numa loja de roupas no bairro da Barroquinha, nas imediações da Baixa dos Sapateiros. A partir daí pôde ampliar os circuitos pela metrópole ao passo que novos pontos iam sendo cingidos em sua rede de relações; embora a proliferação deles fosse acontecer quando passou a vender cosméticos e outros produtos de catálogos de revista.

Ao ofício de vendedora, Dona Railda considera uma importante característica da sua vida, pois delineou contornos nos rumos, no conhecimento e no controle dela sobre a vida social e política da cidade. E, em especial, para a conquista do terreno onde construiu sua casa e pôde conhecer e participar dos “movimentos sociais por moradia”.

Por ora, talvez possamos dizer que para as mulheres negras da periferia de Salvador, pelo menos com as quais convivi e pude saber um pouco mais sobre suas histórias, os universos do trabalho e da família apresentam uma dimensão importante dentre os valores afirmados por essas mulheres; assim como estar em casa de família, onde a despeito de todas as contradições, conforme dito anteriormente, é ao mesmo tempo refúgio e trincheira, sobrevivência econômica e “acolhimento” familiar, alimentando e as levando a luta pela moradia a partir também desse “estar na rua”.

2.  Invadir, ocupar, resistir e consolidar: passos dos movimentos

Ao se deslocar, Dona Railda passou por diferentes lugares na cidade. Residiu em Plataforma, Uruguai, Paripe e Alto de Coutos – bairros no Subúrbio Ferroviário ou em suas bordas – como nos relata nesse trecho:

Dona Railda: "Olha, por exemplo, em Plataforma eu morei com a minha tia um tempo, né! E depois eu morei com a minha irmã também. A gente alugou um quarto e morou uns dois meses. Ah! No Uruguai morei com um tio também, mas foi pouco tempo. Aí, depois que eu comecei a trabalhar numa loja, aí eu arranjei um namorado e a gente foi morar junto em Paripe. Moramos dois ou três meses, mas como ele não gostava de pagar, (risos)os donos da casa botava pra fora e a gente arranjava outro quarto, passava mais dois meses, vencia a fiança, pagava um outro mês. Quando não pagava mais já saia novamente. E assim fui vivendo de aluguel... Até que eu fui pra Lobato ."[grifos meus].

Se apoiando na rede de parentes ou, mesmo, criando novas alianças, criou possibilidades de permanecer em Salvador. No sistema de aluguel valia também como arranjo sair de uma casa para outra quando vencia a fiança e “os donos da casa botava pra fora”.

Como observei, ela passou a fazer parte de um universo familiar que serviu como elo de garantia para o deslocamento de outras pessoas de sua família e conhecidos do interior para a capital baiana. Sua família começou a migrar em etapas, inicialmente com a vinda de algumas de suas irmãs para Salvador, em busca de trabalho; depois, de seus pais e dos irmãos mais novos, que antes viveram durante alguns anos nas imediações do CIA, como indiquei na seção anterior.

Railda chegou ao bairro do Lobato em 1986, com mais ou menos 24 anos de idade. Ir para lá significou a ruptura com a constante circulação a procura por moradias na cidade e a tomada de consciência de que o problema de exiguidade de moradia, não era apenas dela; e que ao caminho da luta não havia alternativa. “O Lobato foi uma luta muito árdua, mas que valeu a pena”, assim começa sua narrativa sobre o lugar onde reside, fruto da conquista da luta.

Entretanto, antes de chegar ao Lobato, Dona Railda buscou um lugar para se instalar definitivamente na invasão do Uruguai.[13] Por não existirem mais terrenos para invadir neste local, foi orientada por “uma pessoa que fazia parte da comissão”, a procurar um lugar numa invasão mais recente. Lá lhe indicaram “um lugar ali que fizeram (...) um barraco, só que levaram todo o material. Se a senhora tiver peito pra invadir”. Ao que respondeu:

Eu tenho. Aí fui e arranjei uns pau na casa de meu tio lá no Uruguai; arranjei uns plásticos, infinquei e fiz um barraco. Infinquei quatro pau no chão, botei uma tauba em cima, uma esteira [sic]”. Em seus termos, ainda: “a festa durou pouco”, porque “à noite o dono do terreno, com o facão cortou o plástico todo, rancou os paus e jogou pra lá. Aí, eu voltei de novo ;[sic]”.

As primeiras ocupações coletivas, denominadas invasões começaram a surgir em Salvador nas áreas do Miolo de Salvador e na península de Itapagipe, nas imediações do Subúrbio Ferroviário, respectivamente: a invasão do Corta-Braço, em 1946, hoje o bairro do Pero Vaz e os Alagados, hoje área que compreende vários bairros (Vila Rui Barbosa, Massaranduba, Uruguai, Lobato, Rua Direta, Jardim Cruzeiro etc.,), conforme Moura (1990). Além delas, vale registrar as invasões de Calabar, Roça da Sabina, Saboeiro, Saramandaia, Nordeste de Amaralina, Santa Cruz, União Paraíso, Marotinho.

Hoje, algumas destas invasões são reconhecidas como bairros consolidados. Para tal, muitas delas, ao longo do tempo, foram adotando outros nomes como estratégia social e política para ganhar, junto ao imaginário da cidade, representações mais positivadas, distantes do senso comum que as associavam a lugares “marginais” – o sentido relacionado à delinquente e criminoso.

Durante a década de 1970, a luta por moradia propiciou o surgimento do movimento social das invasões, com grande participação popular, descentralizado e multifacetado, que mais tarde se ampliou e diversificou, abarcando questões relacionadas à família, à infância e à juventude, às relações de gênero, à violência, ao acesso a serviços públicos, à capacitação para o mercado de trabalho e à discriminação racial, sobretudo com a participação de mulheres.

No cenário do Subúrbio, nesse período, os movimentos sociais por moradia constituíam os antecedentes da história dos chamados novos movimentos sociais, que se difundiram amplamente no Brasil durante a década seguinte.

Embora esse fenômeno tenha sido razoavelmente bem estudado, a partir de então, as pesquisas tenderam a focalizar o contexto de seu surgimento e disseminação, bem como suas implicações macropolíticas (DOIMO, 1995; SOUZA, 2010; GARCIA, 2009). Ou seja, trata-se de estudos de caso de movimentos de expressão nacional – ou no mínimo regional – com mais recursos financeiros e mais bem estruturados, vinculados, em geral, à Igreja Católica ou aos partidos políticos de esquerda que surgiam nos anos finais da Ditadura Militar (1964-1985). Pesquisas que abordassem movimentos menos estruturados e no contexto da vigência da Ditadura Militar têm sido raras (MOURA, 1990; DOIMA, 1995).

No âmbito geral, observo que as reivindicações e a busca por acesso aos bens sociais e culturais emergiram na eminência da sociedade moderna como um fenômeno de extrema relevância na busca por reformulações e mudanças sociais. Estes movimentos, observados também em outras partes do mundo, reivindicavam o acesso a bens de consumo coletivo, sejam no campo da educação, da saúde ou da moradia, e a bens imateriais, como identidade, valores ou cultura. No Brasil os movimentos sociais vão apresentar momentos diferentes em suas constituições e práticas.

Conforme analiso em outro trabalho SOUZA (2010), os “movimentos populares” se constituíram de um coletivo socialmente heterogêneo, oriundos de diferentes setores da sociedade, que reivindicavam melhores possibilidades e condições de sobrevivência no espaço urbano e que tiveram grande impulso a partir da década de 1970, com o apoio e articulação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Os alicerces deste processo começaram a ser erguidos a partir de segmentos da Igreja Católica, em meados da década de 1960. Estes experimentaram a ruptura com as práticas litúrgicas tradicionais, afirmando valores de solidariedade e justiça social, através de uma prática de intervenção e trabalho pastoral coletivo. Esta orientação previa o contato com a população fora das fortificações de cal e pedra da Igreja.

No interior da Igreja, esta demanda por renovação levou a um plano pastoral cuja ideia central era “ir onde o povo está”, constituindo as primeiras CEB's no Brasil. As Comunidades Eclesiais foram fundamentais nos anos de chumbo, pois em seu espaço ocorriam as reuniões políticas de oposição à Ditadura. Em fins da década de 1970 e início dos anos 1980, elas se configuraram no espaço de gestão e desenvolvimento dos movimentos sociais populares, a exemplo do Movimento do Clube de Mães e Movimento pela Carestia/Custo de Vida e sindicais. (SOUZA, 2010).

A literatura analisada indica que após duas décadas, em meados dos anos de 1980, ocorreu um processo de conformação de novos espaços de participação social – respaldado no “princípio democrático” – no seio da sociedade civil, constituído, principalmente, pelos avanços e pelas conquistas dos movimentos populares e pluriclassistas – mulheres, negros, ecológicos, dos indígenas, dos migrantes, das crianças, dos jovens, dos mais velhos, dentre outros. A influência de segmentos progressistas da Igreja Católica ainda se mantinha nestes movimentos. (MOURA, 1990; DOIMA, 1995).

Na história mais recente do Subúrbio observei a tendência acima descrita, guardadas as suas particularidades. As CEB's estiveram fortemente presentes na constituição de alguns dos movimentos neste território, e influenciaram a formação e as práticas dos migrantes que tomaram a luta como estratégia para permanecer na cidade, como destaco agora: “Eu comecei minha vida ativa, aqui, de comunidade... Eu já era católica, né? Sempre, mas, sempre foi atividade de olhar mais através de ver a carência... Eu ingressei na CEB's e a CEB's fala muito da gente olhar para si e para os outros, não é?”, narra Dona Cecília.

Eu participei muito do movimento de educação de base e depois da Juventude Agrária Católica e com esse processo da Ditadura no pré-golpe e no pós-golpe, quer dizer, participei como adolescente. Já estava envolvida nisso lá em Cachoeira”, relatou Antônia Garcia, ex-moradora de Plataforma – militante negra, feminista, uma das fundadoras de uma das mais antigas associações populares de luta por moradia e dignidade social na periferia da capital baiana –, ao iniciar sua narrativa sobre a luta por moradia no Subúrbio, nos anos de 1970.

Continua Antônia Garcia,

"Mas a intenção era muito mais o processo político. E aí fui e fiz estágio em Feira de Santana, depois o pessoal me chamou e eu comecei a participar desde o processo de organização, que era uma coisa muito de viajar, de acompanhar, os grupos formados pela Ação Católica. "

Ela enfatizou que sua ligação e formação nestas bases populares da Igreja lhe fez percorrer por diferentes lugares do interior do Estado e a levou para Salvador e para novas lutas. Os caminhos seguidos por Antônia no curso do ativismo social, por exemplo, forjaram as escolhas e o olhar que vai imprimir sua inserção como acadêmica e intelectual.

Como sinalizou Milton Moura “o aumento de famílias que necessitavam promover a moradia de modo rápido e pouco dispendioso e as restrições à continuidade do antigo sistema de ocupação configuraram o quadro onde se rebenta a instituição da invasão. (1990, p. 27). Vale enfatizar que as invasões significaram um momento e uma forma de luta dos movimentos por moradia em Salvador, num momento em que a cidade começava a viver mudanças significativas no processo de crescimento e acumulação de riquezas, mas também de questionamentos das classes trabalhadoras.

Os pobres começam a reivindicar uma maior participação na riqueza da cidade: acesso a educação, ao trabalho e à moradia. Dessa perspectiva, Moura remete ao aspecto de que as invasões em Salvador se consolidaram em dois momentos distintos na sua constituição geral. O primeiro, na invasão propriamente dita do terreno, com a rápida construção de barracos de lonas, madeirite, papelão, madeira.

Os barracos quase sempre eram derrubados e novamente erguidos, havendo por vezes enfrentamento e violência, finalizados em espancamentos e mortes. Para a polícia, eram todos marginais, pois estavam invadindo propriedade privada ou da União. O segundo momento está ligado à busca da garantia de benefícios de infraestrutura e serviços (água, luz, abertura de vias de acesso, escolas, centros médicos, correios, telefones, etc), que propiciassem o mínimo de condições de sobrevivência.

Outro aspecto singular ao olhar do autor acerca do fenômeno das invasões em Salvador está na sua denominação. Os nomes usados sempre buscaram uma identificação com algum movimento social, personalidades, políticos etc. Cito alguns exemplos: a Nova Constituinte, associada à Constituição de 1988, ou ainda lugares como Bate Coração, (slogan de campanha da candidatura do jornalista Mário Kertsz à prefeitura de Salvador); Yolanda Pires, personalidade do cenário político baiano, esposa do senador Waldir Pires; as Malvinas associada à guerra das Malvinas, dentre outras tantas.

O termo invadir, ou melhor, ação da invasão, segundo sinalizou Moura, é algo contínuo, pois permanecer na invasão é renovar as estratégias de permanência. “A legitimação coincide com a percepção de que invadir, além de oportuno, conveniente e necessário, é justo e desejável. Em suma, é normal invadir. É a maneira de prover a habitação” (ibidem). Está na base dos movimentos de invasão uma afirmação de que os protagonistas se constituem sujeitos de suas histórias.

Antônia Garcia (2009) em sua tese de doutorado compara os bairros de Bangu, no Rio de Janeiro, e Plataforma, em Salvador para desconstruir o “discurso” e o “mito” a eles atribuídos de que são favelas. Para Garcia estes bairros são de origem operaria do setor têxtil. Neles, teriam constituído modos de vida locais ligados a esta origem. Ao voltar-se para os aspectos e a dinâmica de expansão do bairro de Plataforma, a autora indica a importância das invasões no processo.

Ainda sobre a importância das invasões na conformação de território da capital baiana e as distinções conceituais e de sentido atribuídos a elas no próprio processo da “luta” e consolidação delas, em relação às favelas, Antonia Garcia relatou:

"[A] história de Salvador que na verdade é essa autoconstrução gigantesca, quer dizer: a maioria [da população] aqui em Salvador foi um processo popular, tomou pra si, fez e sempre chamou isso de invasão, não é? Os acadêmicos, passaram a imitar a linguagem do Sudeste, né!? Que era favela. Mas o movimento importante que aconteceu em Salvador é que as pessoas, que acompanharam várias invasões na década de setenta, oitenta (...), é que as pessoas chamam de invasão até certo momento, depois é bairro. O próprio bairro da Liberdade que nasceu Corta Braço, uma das primeiras na década de quarenta, chamou de invasão. Invasão, mas ninguém chama a Liberdade de invasão, não é? Nenhum! Quer dizer, só tem invasão da Polêmica, que eu saiba que continua o nome ."(Entrevista realizada em 06 de novembro de 2010).

No invadir, erguer e derrubar que caracterizou a experiência da luta por moradia em Salvador, Railda se refez. Conseguir fincar chão e se manter no terreno só foram experiências possíveis por conta dos conhecimentos construídos em seus percursos pela cidade, vendendo produtos em catálogos de revistas. Para ela, isso lhe possibilitou conhecer a cidade e outras pessoas e ter uma compreensão sobre o mundo. A venda de revista lhe garantiu trabalhar, ganhar um dinheirinho e participar do movimento.

Por fim, foi dessa maneira que ela deu mais um passo para adquirir o terreno onde mora; através da vizinha de uma de suas irmãs, “que morava aqui em cima na Maré e que comprava Avon na minha mão – que eu vendia também Avon e Christian Gray”. Refere-se à ocupação de Novos Alagados, erguida sob a maré, em casas de palafitas e com uma trajetória mais consolidada na luta, nessa época, como analisei anteriormente. Essa vizinha lhe propôs vender o “terreno”, sob o argumento de que “lá só tem vagabundo, só tem marginal”. A ação dela foi cercar de imediato o terreno, como diz: “Só que eu já cerquei o terreno, tá cercado. Se você pagar os paus, o terreno é seu". Como não dispunha de recursos financeiros para pagar o terreno, a alternativa foi pagar com “desodorante... Rosaly e Sherazad”, da Christian Gray e do Avon, respectivamente.

Porém, os processos de afirmação e pertença social, material e simbólica sob esse lugar só estavam no início. Para erguer o barraco, ela “saía catando pedacinho de madeira, durante o dia e suspendendo as paredes.” Foi desta forma que “consegui fazer um barraco pequeno. Só que aí um patrão, um rapaz que eu tinha trabalhado na Barroquinha, (...) ele fez uma reforma na loja e ele me deu toda a madeira”. Seu barraco foi derrubado quatro vezes e reconstruído cinco. A estratégia de controle dasinvasões” adotada pelo Estado nos anos 1970 e 1980, era a derrubada sistemática dos “barracos”.

Sobre a última investida do Estado, nos anos 1970, através da Habitação Alagados Melhoramentos S/A – AMESA (atual Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia –CONDER), para desestruturar a invasão, apoiados pela polícia, colocaram “gasolina no pé dos barracos e aí tocou fogo .O barraco queimou todo e a gente perdeu tudo; de madeira, a telhado. As telhas com o fogo subia, rachava tudo, quebrava tudo, voava os pedaços. Foi muito duro.”, revela Dona Railda.

Nos anos 1980, outras estratégias começam a entrar em cena. Nos depoimentos isto é evidenciado. Conforme os termos de Railda:

[;;;]não sei se você já ouviu falar, uma ocupação que tinha, as invasão da Rocinha do Stiep, Cai Duro, Baixa Fria e Baixa do Tubo. Que é ali – onde hoje, não tem o Shopping Salvador, aquela área ali do Shopping Salvador, até lá embaixo, no Costa Azul? Aquilo ali era ocupação. Tudo ali era área de ocupação, que foi tirado, teve uma resistência em [19]87. Porque não conseguiu? Porque uma das maiores lideranças creditada pelo povo, ela se vendeu para o prefeito, que na época foi o Mário Khertz."

A necessidade de criar espaços de diálogo e negociação com o Estado, em meio às pressões, era premente. O primeiro passo foi a criação de uma Comissão de Moradores. No caso do Lobato, a Comissão de Moradores “foi formada por Renato Soares, que na época a gente conheceu, que eu conheci foi Renato Soares, era Dante, a finada Marina, José Carlos”, revela Railda. Mais tarde essa Comissão, tornou-se uma Associação de Moradores. Essa é uma narrativa que figura em outros relatos sobre as invasões no Subúrbio e em outras áreas da cidade.

Com a organização de associações de moradores, a formação de líderes comunitários e a articulação com outros movimentos sociais, os sindicatos, igreja e intelectuais, aparece a perspectiva de tentar criar um conceito unificador e livre do sentido negativo de invasão nos momentos de negociações e de legitimação dos interesses. Surge, assim, o termo ocupação como reclamo de legitimidade e reconhecimento (pois o termo invasão estava associado à criminalidade, a posse indevida de terras particulares).

Invadir era uma ação criminal e os sujeitos dessa ação, incriminados. Este sentindo de criminalidade acompanha, ainda, muitas de tais populações, mesmo depois da consolidação e da melhoria de infraestrutura dos locais assim conquistados. Vale ressaltar que algumas invasões começaram como loteamentos clandestinos; em muitos casos, os proprietários requeriam reintegração de posse após a valorização da área. Para o governo do Estado, segundo Moura (1990), esta expansão era um benefício, por causa da renda adquirida através da companhia de eletricidade.

Renato Soares pediu apoio em outras comunidades: “Ele já conhecia o Movimento em Defesa dos Favelados – MDF. E aí apareceu lá foi Fernando Conceição, Vera Lazaroto, Bitonho, Conrado e dona Nenzinha, do Alto da Terezinha.” O MDF formava na Bahia uma “federação”, com sede no Pelourinho, no Centro Histórico de Salvador, onde aconteciam reuniões entre os diferentes “movimentos”; trocavam experiências; e planejavam ações conjuntas.

Era um movimento que ele tinha mais de sessenta 'associação' filiadas por essa área urbana todinha. Por exemplo: Pela Porco; Polêmica; Calabar – que é uma ocupação dentro do centro da cidade, ali na Centenário e que hoje é consolidada, mas o pessoal, pra permanecer ali, sofreu muito. Polêmica, também, ali do lado do, depois do Iguatemi, também sofreu. O Pela Porco, ali do lado de Brotas, também.

A rede de associações engendradas pelo MDF possibilitava a ligação e o compartilhamento, não só institucional; mas, sobretudo, entre os lugares e moradores. Em seus deslocamentos na luta, essas pessoas acompanhavam e construíam, acima de tudo, as mudanças no cenário da cidade, produzindo-lhe novos sentidos e representações. Railda recorda as eleições de 1988 para o Executivo, quando Waldir Pires foi eleito governador do Estado da Bahia, marco de um período de tranquilidade: “um período que a gente que estava dentro das ocupações teve mais descanso, que foi diferente”. As repressões da polícia cessaram; as invasões receberam atenção direta do governo; algumas áreas foram beneficiadas com projetos de infraestrutura e programas de construção habitacional e acesso a serviços.

As invasões produziram uma dinâmica, uma sequência, por assim dizer, em seus percursos: invadir, ocupar, resistir e consolidar. Etapas essas que não ocorriam de maneira mecânica e linear. Em algumas das grandes áreas que serviram como palco de luta, esses momentos podiam ocorrer simultaneamente em diferentes lugares da mesma invasão. No horizonte das invasões despontava um projeto: a conquista definitiva da moradia, mediante a posse da terra e o acesso a benefícios de infraestrutura e serviços básicos para a comunidade.

O discurso feito pelas lideranças mais antigas, que já orquestravam a luta em suas comunidades e se faziam ouvir em outros cantos da cidade, afirmava, conforme Railda: “Não dá pra vocês ter uma investida e continuar com medo, tem que partir mesmo pra luta”. Uma estratégia adotada pelos movimentos em diferentes lugares, como o ocorrido no Lobato. Segundo lembra Railda, eles enganavam a fiscalização, fazendo novas invasões e construindo barracos à noite, durante a ausência dos fiscais.

E quando era de noite, quando ele saia [o fiscal] da área, depois de seis horas. Escureceu e pronto. 'Vumbora' mãos à obra. Aí era, facão descia! De noite a gente construía três, quatro barracos. Quando os caras chegavam de manhã: 'Não, não pode construir de dia'. Mas de noite a gente pode”.

Entretanto, a luta não findava com a consolidação da comunidade, o passo seguinte era rumo à construção e melhoria das habitações – para muitos um processo contínuo – e acesso a benefícios de infraestrutura e, por fim, a posse legal das terras.[14] Enfim, a conquista do que estava no plano mais visível da luta. Mas nas entrelinhas, o projeto era também a construção de outros sentidos e significados acerca dos seus lugares, que não fossem alimentados apenas por aspectos pejorativos e estigmatizantes, que encapsulavam esses lugares e os associavam recorrentemente a um script de violência, delinquência e “marginalidade”.

Os últimos anos da participação de Railda nos movimentos por moradia foram marcados por intermitências. Ficar afastada dos movimentos foi algo que não conseguia. “O movimento é minha vida”. Atualmente participa do movimento de cultura popular, que se organiza numa federação. Quanto ao “movimento por moradia”, se desvinculou dele em 2004, definitivamente, com o fim da atuação do MDF na Bahia. Para ela, o MDF e a luta das invasões deixaram um legado de conhecimentos e conquistas ao Movimento dos Sem-Teto da Bahia – MSTB. Em outros depoimentos isso também é enfatizado.

O MSTB aparece como uma continuação do MDF e, de forma geral, dos movimentos de moradia; tanto em termos de projeto, quanto de estratégias de luta: invadir, ocupar e resistir; e, dependendo do lugar “invadido”, validam a prerrogativa: consolidar. Este legado, como é reconhecido e afirmado na narrativa de Dona Railda é apreendido e repetido por Dona Mira, como dito antes, hoje uma das “lideranças” do MSTB em Salvador, especialmente no Subúrbio.

Por fim, ao me debruçar sobre a experiência dessas mulheres negras da periferia de Salvador, marcadas pelo envolvimento no movimento e na luta por moradia, nos movimentos de invasão, em especial de Dona Railda, observei que elas estiveram em estado de mobilização e de luta individual e coletiva contra as diferentes formas de subordinação e dominação. Os registros documentais e orais nos reportam a uma série de ações cotidianas importantes de resistência que, desde a escravidão, foram lideradas e exercidas por mulheres negras que subverteram lugares sociais sem excluir e ou hierarquizar as experiências de raça, gênero e classe.

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Nota Biográfica

Cristiane Santos Souza

Doutora em Antropologia Social, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com bolsa da Ford Foundation e Capes; atua como professora Adjunta da UNILAB/Campus Malês; coordenadora do curso de Licenciatura em Ciências Sociais e lidera o Grupo de Pesquisa Processos Sociais Memórias e Narrativas Brasil/África – Nyemba - CNPq.


 

[1] Sobre trajetórias e experiências de vida trabalhei com as referências de KOFES (2004; 2001b).

[2] No discurso corrente no Estado, assim como em Salvador, todo e qualquer lugar que se localize fora da capital é interior, mesmo que esteja na faixa litorânea. Porém, como veremos mais adiante, essa noção aparece forjando múltiplos sentidos e será retida por mim enquanto categoria analítica. O interior ocupa, ao que vejo, uma dimensão identitária importante para os habitantes de Salvador; em particular, para aquelas que têm experiências constituídas a partir de múltiplos deslocamentos.

[3] Conforme GUIMARÃES (2009), raça deve ser entendida como “categoria do mundo real” fundamental para pensar a experiência do racismo no Brasil. Vale ressaltar que a noção de raça é compreendida enquanto categoria política.

[4] Ediane Lopes, historiadora, negra, feminista foi colaboradora na pesquisa que desenvolvi para a reconstrução da memória dos movimentos sociais do Subúrbio Ferroviário de Salvador que também serviu como base empírica para o trabalho de doutoramento. 

[5] As quatro filhas “de sangue” nasceram dos dois relacionamentos conjugais que teve ao longo de sua vida, os quais não lhes trazem boas lembranças.

[6] O termo grafado entre aspas assume o sentido de uma organização, causa e luta social e política. Além do sentido aqui atribuído por estas mulheres, em alguns momentos ele ganhas o sentido real do termo, de movimentar, mover-se, que ao mesmo tempo é característica, aspecto fundamental para envolver-se na luta política, seguir, caminhar em busca de melhorias sociais, respeito, dignidade enquanto mulheres, mulheres negras e pobres.

[7] O Movimento em Defesa dos Favelados (MDF) nasceu no Rio de Janeiro e foi um importante movimento de enfrentamento do regime militar e de contribuição para o processo de democratização do Brasil em finais dos anos 1970 e os anos 1980, e sinalizando para uma série de demandas sociais que substanciaram a Constituição de 1988. Em 1970, chegou a Salvador através de “lideranças” das bases progressistas da Igreja Católica que se deslocaram como missionários, ou ainda fugidos da repressão da ditadura militar. Em Salvador o MDF foi muito atuante e marcou a história de muitos outros “movimentos populares” e a trajetória dos participantes destes movimentos.

[8] Trago a trajetória de Dona Mira por revelar aspectos importantes no processo de se fazer liderança na busca pela moradia, num momento em que a luta coletiva é feita no âmbito do movimento dos sem tetos de salvador (que marca outro momento desta luta na cidade), bem como por explicitar a experiência e combate ao racismo.

[9] Naquela época existiam quatorze escolas comunitárias em Salvador. Na Lei Orgânica do Município consta a indicação e percentual para as escolas filantrópicas, confessionais e comunitárias, no artigo. nº 191, parágrafo. 2º. Em 2009, no âmbito da Câmara Municipal de Salvador estava sendo discutido o processo de regularização das escolas comunitárias junto à Secretaria Municipal de Educação. Um dos objetivos era resolver os problemas dos atrasos no repasse. Conforme, consta no boletim informativo da Câmera Municipal de 20 de agosto de 2009, um dos principais problemas indicados na audiência sobre a situação das escolas comunitárias de Salvador para viabilizar a regularização cadastral das instituições era a questão fundiária, “essencial para garantir o alvará de funcionamento e os demais benefícios legais”.<http://www.cms.ba.gov.br/noticia_int.aspx?id=500>, acesso em 30 de outubro de 2013.

[10] Refere-se ao Geledés Instituto da Mulher Negra. Geledés - Instituto da Mulher Negra, “Foi criado em 30 de abril de 1988. É uma organização política de mulheres negras que tem por missão institucional a luta contra o racismo e o sexismo, a valorização e promoção das mulheres negras”. Cf.: <https://www.facebook.com/geledes/info>. Acesso em 20 de outubro de 2013.

[11] A este respeito, ver SOUZA: et al (2012). Nele trabalho mais detidamente estas diferentes dimensões, alargado meu escopo de entrevistas com sujeitos nascidos na cidade.

[12] Sobre o parentesco de consideração ver os trabalhos de Marcelin (1999), dentre outros.

[13] Sobre a história dos movimentos de invasão em Salvador consultar os trabalhos de MATTEDI (1979), GORDILHO-SOUZA (1990) e LIMA (2009).

[14]  Boa parte das áreas ainda “desocupadas” da cidade pertence a alguns poucos proprietários, à Igreja Católica e ao Estado; elas configuram áreas de grande concentração de terras e especulação imobiliária e estão nos centros dos conflitos por regularização e legalização fundiária na cidade. Grande parte do Subúrbio Ferroviário e do bairro do Pirajá, a exemplo pertencem à família “Catarino”, para os quais inúmeras famílias ainda pagam, há décadas, como herança familiar, o “foro”.

 

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