Labrys
estudos feministas
número 4
agosto/dezembro 2003

Santas ou feiticeiras: a construção social do corpo feminino

Christine Détrez

tradução: tania navarro swain

Resumo

 O corpo, apesar de parecer o lócus do intimo e do pessoa, constitui o nó onde se articulam o individuo e o grupo, a natureza e a cultura, a coerção e a liberdade. Se as sociedades tradicionais  marcam a lei sobre a pele como sobre um pergaminho, em nossas sociedades  contemporâneas, as partilhas sociais toma corpo modelando as morfologias e as maneiras de se comportar, de acordo com suas representações culturais. Mas os estereótipos modeladores são hierarquicamente ordenados : o corpo das mulheres torna-se assim mais frágil, passivo, hormonal, etc. em relação ao do homem. Os argumentos biológicos e científicos intervêm para justificar a dominação sofrida pelas mulheres, desde o início de sua educação. Os saberes sobre os corpos são assim poderes, políticos e simbólicos.

Palavras-chave: corpos femininos, dominação, poder político / simbólico

Se a frase de Simone de Beauvoir "não se nasce mulher, torna-se mulher" obteve tanto sucesso,foi sem dúvida porque nela e resume  o processo de socialização, regente da existência dos indivíduos. Esta socialização é igualmente incorporação, modelagem dos corpos pelas normas e as representações culturais e simbólicas ,próprias a cada sociedade. Assim, paradoxalmente, o corpo, muitas vezes visto como o locus por excelencia do íntimo e do pessoal, pode ser considerado como o laço da interação entre o individuo e o grupo, a natureza e a cultura, a coerção e a liberdade.

Natureza e cultura

>Longa é a tradição que funda as características do individuo em sua natureza biológica: a medicina hipocrática, a fisionognomonia se baseiam sobre o equilíbrio dos humores componentes do corpo humano ( a bile, atrabile, o sangue e a linfa). A unidade de composição justifica, fisicamente, as ordens sociais, como o mostram os contos do século XVIII, onde rainhas e reis são sempre os mais belos do reino.

A associação entre tipologia física, moral e social, através dos tempos, inspirou a literatura do século XIX , baseau a antropometria, com a associação entre o comportamento do individuo e a medida de seu cranio, por exemplo. Podemos encontrar nos séculos XX e XXI, derivados fecundos desta biologização da moral, quer seja como base de explicações racias, durante a segunda guerra mundial, quer seja como explicativa do comportamento humano, notadamente em departamentos americanos de comunicação não verbal, em certos ensinamentos da criminologia, da morfopsicologia e da sociobiologia.

Coube à antropologia o rompimento com a evidência do corpo natural: Marcel Mauss afirma assim que "em suma, não existe talvez ' um modo  natural' para o adulto”, mas cada gesto, cada atitude depende da sociedade à qual pertence, é modelada pela educação e pela  imitação. (Mauss, 1950) Esta visão pioneira encontrou notáveis aplicações , nos anos 40, em contextos onde  a reação às teses raciais se faziam presentes.

Em uma perspectiva sociológica, esta pregnância da dimensão cultural é declinada segundo o pertencimento social: de acordo com o meio em que evoluem, os indivíduos se comportam de forma diferente. O conceito de habitus, desenvolvido por Pierre Bourdieu permite unificar as praticas e explicar como a posição social de um individuo, modelando seu gosto, sua alimentação, suas práticas esportivas ou em questões de saúde determinam seu corpo de maneira diversa. (Bourdieu, 1979).

Entretanto, a ruptura da evidencia biologica não se limita às fronteiras da pele  e não se refere unicamente ao corpo em movimento. A morfologia, a morbidade e a mortalidade estão ligadas ao nível social: quando se pertence às classes sociais favorecidas, tem-se uma maior probabilidade de ser grande, em boa saúde e de  viver mais tempo…. As demarcações das sociedades tradicionais, que, através de traços, tatuagens, pinturas ou vestimentas, indicavam o nível, o lugar do individuo  no grupo , não desapareceram de nossas sociedades contemporâneas. Se a lei social não se marca mais sobre a pele como sobre um pergaminho, em troca ela se interiorizou, incorporada ao nível mais essencial da morfologia.

 Mesmo as sensações, que aparentemente respondem à processos bioquímicos traduzíveis em equações, com toda a força de generalização e de universalização que comporta a linguagem matemática, não escapam à relativização: passam  igualmente por uma decodificação cultural, variável segundo o país. O corpo, como um idioma, é submetido às grades culturais de cada país, grupo social, segundo "um código, secreto e complicado, escrito em nenhum lugar,  não conhecido por ninguém, mas seguido por todos"( Sapir, 1967).

O corpo aparece, portanto, como a interface entre a individualidade no que tem de mais singular , e o grupo, mas igualmente entre a biologia e o social.

As configurações do corpo feminino

O corpo do bebê, da criança que cresce, do adulto , é , antes de mais nada, aquele de uma menina ou de um menino e isto cada vez mais cedo no espírito da mãe e do pai, pela generalização da ecografia, conhecida pelos usos feitos na Índia ou na China[1] Mas as ditas evidência biológicas parecem existir apenas para serem melhor negadas: a adequação entre órgãos sexuais, "gênero" social e identidade psicológica, o "corpo vivido" [2], está muito longe do universal.

Além dos exemplos antropológicos, que mostram as múltiplas combinações possíveis destes elementos, de modo geral a identidade sexual é o produto de um processo de sexuação ou de incorporação  de princípios sexuadores. Se o fato de ser uma menina for um dado da natureza, ser feminina, comportar-se como uma menina, é o produto de um aprendizado.

 Aprender a ser mulher, é assim, antes de tudo, aprender a se comportar corporalmente como uma mulher. A publicidade, os anúncios matrimoniais oferecem ocasiões de expor estes estereótipos corporais, introjetados a tal ponto que funcionam , na maioria das vezes, implicitamente. A educação mesmo é sexuada e o corpo ( a maneira de ser, de se vestir, de se alimentar, etc) é um elemento central nas práticas educacionais, pois cada gesto é um signo em si e reflete-se no aspecto  exterior ( musculação do corpo, etc.) A maneira de se vestir  é crucial, neste nível,  ( saia,vestido) pois devem "fazer" a menina: mal moldada, a menina é considerada um "meio menino", maneira outra de sublinhar a diferença de valor dada a cada um dos sexos. (Bouraoui : 95)

A diferença biológica entre mulheres e homens, inscrita na anatomia, intervém como uma justificação a posteriori, pelo recurso à natureza, da diferenciação social dos gêneros. Os esquemas presentes nos manuais de medicina ou as maneiras como o corpo é ensinado às crianças pelos livros  para jovens, mostram  o quanto a ciência está a serviço desta essencialização das "qualidades" atribuídas aos sexos.

Durante longo tempo, o sexo das mulheres era representado como um órgão masculino invertido, imperfeito. Mas a medicina atual é sexuada da mesma forma: em seus manuais; neles,  as mulheres são representadas quando se trata de mostrar o coração, lócus dos sentimentos, ou de explicar a  reprodução, como se seu corpo fosse essencialmente reduzido à sua função reprodutiva. Nos livros para crianças, as imagens anatômicas reproduzem o corpo de um homem, ou de um menino, ao se situar os músculos ou o cérebro. O corpo feminino é utilizado para explicar o sistema linfático, o sistema sanguíneo, o sistema digestivo.

O saber ensinado é assim particularmente orientado, e a maneira de ensiná-lo reforça esta dimensão. As metáforas utilizadas não são neutras: o corpo é uma máquina, uma usina, um  motor. É  passível de ataques, de agressões, de revanches. Quanto à reprodução, coloca em cena espermatozóides valentes e conquistadores, batendo-se para chegar em primeiro lugar no centro do óvulo, imóvel e passivo,coisa  inerte  esperando ser conquistada.

Mas mesmo se estamos longe das teorias de Aristóteles, onde o ventre feminino não era senão o receptáculo do pneuma, o princípio de vida masculino, certas descrições, entretanto, reproduzem a mesma dicotomia entre ativo e passivo. As ilustrações são igualmente edificantes: nos capítulos consagrados aos músculos: as meninas ninam bonecas ( músculos do braço) enquanto  os meninos chutam bola ( músculos da pernas). As meninas se vestem com saiote de dançarinas, os meninos mostram os bíceps. As meninas comem maçãs, os meninos hambúrgueres. Os meninos fazem flexões, escalam, correm, as merinas dormem ou descansam em uma rede O título é eloqüente "mais nervos! (capítulo sobre os nervos, em  Le corps humain, Nathan)). No melhor dos casos elas dançam, ou nadam ( reencontrando assim seu elemento, o líquido). Se  a socialização repartindo os papéis e tarefas  entre os sexos existe nas revistas e livros para crianças, esta orientação das enciclopédias para crianças é ainda mais eficaz, pois utiliza a força de legitimação da ciência, detentora autorizada dos saberes sobre os corpos nas sociedades contemporâneas.

Pela força das representações anatômicas, as diferenças sociais encontram-se naturalizadas, inscritas em profundidade no biológico: a menina aprende assim rapidamente que o corpo da mulher é linfático, submetido aos fluidos e hormônios ( como se o sistema hormonal não existisse entre os homens…) Ela aprende igualmente nestas páginas que sua realização e sua razão de ser biológicas estão ligadas à maternidade. Ser-lhe-á ensinado, em seguida - contos, álbuns e desenhos animados em reforço - que é sua a função de cuidar das crianças, vesti-las, nutri-las, assegurar a manutenção do lar, enquanto seu marido trabalha fora e volta, a noite, exausto.

O corpo feminino: um desafio

Pois a construção social e cultural dos corpos não é gratuita. O corpo age também como o suporte de valores simbólicos, hierarquicamente organizados. Segundo as culturas, os atributos são designados a cada um dos sexos, de acordo com uma organização dicotômica ( frio/ quente; úmido/ seco, ativo / passivo), mas a valoração que lhes é dada varia: em diferentes sociedades estudadas, o termo feminino é hierarquicamente inferior. A naturalização da diferença dos sexos serve assim de fundamento biológico à desigualdade entre mulheres e homens.

>Para Françoise Héritier, (Héritier, 1996) a explicação "natural" da inferioridade das mulheres reside assim em seu corpo, local de poluição, principalmente por causa do sangue menstrual: as mulheres seriam aquelas que fazem correr seu sangue, passivamente, enquanto que os homens decidem quando o sangue deve correr, pela guerra, caça, etc.

A ritualização do corpo feminino é assim instrumento de sua domesticação, de sua dominação: as/ os historiadoras/ os da moda e da vestimenta mostraram como o espartilho feminino era um tutor físico, da mesma forma que o pai, marido ou irmão eram tutores legais. Até a metade do século XX, as mulheres, como os bebês, tem a carne mole que deve ser aprisionada, o belo sexo tornado-se , finalmente, o sexo fraco, ou mesmo um sexo animal que deve ser mantido na ordem e na civilização ( pode-se mesmo ver nas cintas e sutiãs atuais a mesma função…).

Ao dualismo corpo/ espírito corresponde assim o equivalente homem/ mulher: ao homem a criação, a razão, a esfera do público, à mulher a procriação, as emoções e as paixões. Esta partilha de esferas é evidentemente organizada hierarquicamente, pois toda a tradição judeu-cristã e filosófica associa o corpo ao pecado, ao túmulo da alma. Para ser artista, as mulheres devem assim negar seu lado feminino, mortificar seu corpo pela anorexia, a recusa da maternidade e da sexualidade.

 É interessante observar que a reivindicação artística das mulheres do fim do século XX passa justamente por uma valorização do corpo,[3] tanto nas artes plásticas quanto na literatura; mas , paradoxalmente, à forca de focalizar o corpo e suas expressões, não existe o risco de reforçar, de uma outra maneira  , a associação entre  mulher e corpo, substituindo o "mulier in utero" antigo, por um "mulier in vagino" moderno? (Détrez, Simon, 2003, 2004 b)

Carreados por uma legitimidade científica, os saberes sobre o corpo são igualmente poderes, simbólicos ou físicos (Kleinman, Desjarlais, 1994) : em certas  sociedades, apagam-se dos livros médicos o clitóris - este órgão cuja única função encontrada é o prazer feminino… em outros locais, ele é excizado… O corpo das mulheres é igualmente uma questão política: nos países em paz, regula-se a natalidade pelas leis e direitos sociais, e é violado nos países em guerra. 

Não é de se espantar, deste modo, que a reivindicação de autonomia, da parte das mulheres, passe pelo desejo de recuperar os direitos sobre seus corpos  desde as santas anoréxicas e as feiticeiras da Idade Média (Frank, in Featherstone, 1991) , até os combates feministas. Que as revoltas históricas das  santas e feiticeiras, na maior parte dos casos, tenha resultado em um fracasso final, que é a destruição do corpo pela fome ou pelo fogo, isto , de fato, pouco importa. Através dos séculos, elas nos mostram que o corpo, local de todas as dominações  em jogos e questões de poder, são igualmente,  um lócus de desafio, de rebeldia..

Referências

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Nota biográfica

Christine Détrez  é  maître de conférences em sociologia na Ecole Normale Supérieure Lettres et Sciences Humaines de Lyon. Suas pesquisas se debruçam sobre a sociologia da cultura e a sociologia do corpo ; publicou, entre outras obras, Et pourtant ils lisent, (com Christian Baudelot et Marie Cartier, Seuil, 1998) e La construction sociale du corps (Seuil, 2002). Trabalha atualmente, em colaboração com  Anne Simon, sobre a representação do corpo feminino na literatura feminina contemporanea.



[1] Na Índia e na China, como já foi amplamente divulgado pelos movimentos feministas, a ecografia serve também como indicativo para o aborto, no caso em que o bebê seja uma menina. Na China já existe uma grande defasagem no número de mulheres e homens, devido a esta prática. NT

[2] noção desenvolvida por Toril Moi. NT

[3]  popr exemplo, Annette Messager, Marina Abramovic ou Cindy Sherman, escritoras cujos romances descrevem as realidades  mais cruas  e materias do corpo, nos anos 70.

 

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