Labrys
estudos feministas
número 4
agosto/dezembro 2003

CORPOS QUE ESCAPAM 1

 

Guacira Lopes Louro

 

Resumo

Ao longo dos séculos, os sujeitos vêm sendo examinados, classificados, ordenados, nomeados e definidos pelas marcas que são atribuídas a seus corpos. Os corpos somente são o que são na cultura. Sendo assim, os significados de suas marcas não apenas deslizam e escapam, mas são também múltiplos e mutantes. Uma drag queen, em sua paródia de gênero, pode levar a pensar essas questões de forma mais radical. Sua figura estranha e insólita permite pôr em questão a originalidade e a autenticidade dos gêneros e das sexualidades, sugerindo que as formas através das quais todos nós nos apresentamos são, sempre, formas inventadas e sancionadas por circunstâncias culturais.

Palavras-chave:corpos, sujeitos,gênero, sexualidade

Na tradição do humanismo ocidental, aprendi a pensar o corpo como o elemento menos nobre de uma série de pares: corpo-alma, corpo-espírito, corpo-mente, corpo-razão. Nesses pares, ele ocupava o lugar da natureza em oposição ao da cultura; o local do primitivo em oposição ao do civilizado; o lado animal e instintivo em oposição ao racional ou ao humano. Para que tais dicotomias “funcionassem” era preciso tomar seus pólos como exteriores um ao outro, como independentes e incontaminados. O corpo, nesta lógica tradicional, não poderia ser pensado como instância da cultura ou como esfera da política.

No entanto, pergunto: como as sociedades têm distinguido seus filhos e filhas? Para onde se voltam os olhares quando se quer classificar e “localizar” alguém? Quais as referências a que se recorre para, de imediato, dizer quem alguém é ?

A determinação das posições dos sujeitos no interior de uma cultura remete-se, usualmente, à aparência  de seus corpos. Ao longo dos séculos, os sujeitos vêm sendo examinados, classificados, ordenados, nomeados e definidos por seus corpos, ou melhor, pelas marcas que são atribuídas a seus corpos.

Diz o Dicionário Houaiss, que aparência é “a configuração exterior de alguém ou de algo, aquilo que se mostra imediatamente, o aspecto”. A aparência é, pois, algo que se apresenta ou que se representa. Vê-se o que se mostra, o que aparece; e ao que se vê se atribui significados. Pele, pêlos, seios, olhos são significados culturalmente. Muitos são os significados atribuídos ao formato dos olhos ou da boca; à cor da pele; à presença da vagina ou do pênis; ao tamanho das mãos e à redondeza das ancas.

Significados que não são sempre os mesmos — os grupos e as culturas divergem sobre as formas adequadas e legítimas de interpretar ou de ler tais características. Alguns desses aspectos podem ser considerados extremamente relevantes (para alguns grupos) e, então,  podem vir a se constituir em marcas definidoras dos sujeitos — marcas de raça, de gênero, de etnia, de classe ou de nacionalidade, decisivas para dizer do lugar social de cada um. Para outros grupos, as mesmas marcas podem ser irrelevantes e sem validade em seu sistema classificatório. De qualquer modo, há que admitir que, no interior de uma cultura, há marcas que valem mais e marcas que valem menos. Possuir (ou não possuir) uma marca valorizada permite antecipar as possibilidades e os limites de um sujeito; em outras palavras, pode servir para dizer até onde alguém pode ir, no contexto de uma cultura.

O dicionário também diz que a aparência pode ser “uma ilusão, um disfarce”. Neste caso, o dicionário faz supor que existe, embaixo desse disfarce, uma “verdade”. Se for à aparência dos corpos que se está referindo, então, a verdade deveria ser, provavelmente, a da natureza, ou melhor, a da biologia. Não é à toa que as discussões sobre gênero e sexualidade, embora pretendam aceitar a importância da cultura, acabem por se remeter, sempre, a uma “verdade” inexorável dos corpos. Ainda que comportamentos, códigos e normas culturais sejam reconhecidos, eles são considerados, de certa forma, como algo que se agrega, como algo que é “posto sobre” uma superfície preexistente.

É como se os corpos portassem, desde o nascimento, a essência e a certeza dos sujeitos. Como se os corpos possuíssem um núcleo que poderia ser disfarçado ou transfigurado pela cultura, mas que se constituiria, ao fim e ao cabo, essencialmente, em sua verdade. Mas onde fica essa essência, esse núcleo? Quais as certezas possíveis sobre os corpos, hoje, num tempo em que as intervenções são tantas, tão refinadas, sutis e significativas que se tornam, muitas vezes, absolutamente imperceptíveis e, ao mesmo tempo, absolutamente subversivas? Como, onde, através de que recursos pode-se estabelecer um limite entre natureza e cultura, entre biologia e tecnologia? O que é, de fato, natural? Onde começa o artifício? Os corpos são, em algum momento, somente biológicos? É possível dizer que na tela do aparelho de ecografia que mostra os primeiros momentos da vida de um feto, temos, enfim, um corpo ainda não nomeado pela cultura?

As respostas a essas perguntas indicam a impossibilidade de isolar a natureza, a impossibilidade de definir onde “começa” a cultura. Tomaz Tadeu da Silva afirma que “não existe nada mais que seja simplesmente ‘puro’ em qualquer dos lados da linha de ‘divisão’: a ciência, a tecnologia, a natureza puras; o puramente social, o puramente político, o puramente cultural. Total e inevitável embaraço” (SILVA, 2000:.13). Por tudo isso, é imprescindível admitir que os corpos são o que são na cultura. A linguagem, os signos, as convenções e as tecnologias usadas para referi-los são dispositivos da cultura. E se ele, o corpo, “fala”, o faz através de uma série de códigos, de adornos, de cheiros, de comportamentos e de gestos que só podem ser “lidos”, ou seja, significados  no contexto de uma dada cultura.

Os significados dos corpos deslizam

Os significados dos corpos deslizam e escapam, eles são múltiplos e mutantes. Até mesmo o gênero e a sexualidade — aparentemente deduzidos de uma “base” natural — são atributos que se inscrevem e se expressam nos corpos através das artimanhas e dos artifícios da cultura. Gênero e sexualidade não são definições seguras e estáveis, mas históricas e cambiantes. Deve-se reconhecer que a maioria das sociedades possui algum tipo de distinção masculino/ feminino e que essa distinção geralmente é relacionada ao corpo. Contudo, isso não quer dizer que os corpos são “lidos” ou compreendidos do mesmo modo em qualquer tempo ou lugar, nem que seja atribuído valor ou importância semelhante às características corporais em distintas culturas.

Geográfica e historicamente, os significados atribuídos aos corpos mudam.  Linda Nicholson lembra como o significado das características físicas dos corpos de homens e mulheres modificou-se, ao longo dos séculos. Diz ela: “de um sinal ou marca da distinção masculino/ feminino passaram a ser sua causa, aquilo que dá origem” (Nicholson, 2000:. 18). Houve tempo em que a Bíblia era a “fonte de autoridade”, lembra a autora, e nela se buscava a explicação sobre o relacionamento entre mulheres e homens e também sobre qualquer diferença percebida entre eles. Neste tempo, o corpo importava pouco como fonte da distinção, mas, posteriormente, tudo mudou: o corpo tornou-se causa e justificativa das diferenças. Os significados das marcas dos corpos se alteram, pois, ao longo da existência das sociedades e dos sujeitos: mudam as fontes da autoridade, mudam os discursos, mudam os códigos, muda a medicina, a tecnologia e a moda, mudam os hábitos; os sujeitos envelhecem, adoecem, morrem.

Os significados dos corpos deslizam e escapam não apenas porque são alterados, mas porque são objetos de disputas. Distintas instâncias culturais falam dos corpos, afirmam o que eles são, explicam-nos, dizem como são, como devem ser. Decidem sobre a sexualidade, sobre a vida, o prazer, o nascimento e a morte. Foucault afirma que, nos últimos séculos mais do que nunca, se produziu um “saber sobre o prazer” e, simultaneamente, o “prazer de saber” — “o sexo foi colocado em discurso” (FOUCAULT, 1993).

A sexualidade, os corpos e os gêneros vêm sendo, desde então, descritos, compreendidos, explicados, regulados, saneados e educados, por muitas instâncias, através das mais variadas táticas, estratégias e técnicas. Estado, igreja, ciência – instituições que, tradicionalmente, arrogavam-se a autoridade para definir e para delimitar padrões de normalidade, pureza ou sanidade – concorrem hoje com a mídia, o cinema e a televisão, com grupos organizados de feministas e de “minorias sexuais” que pretendem decidir, também, sobre a sexualidade, o exercício do prazer, as possibilidades de experimentar os gêneros, de transformar e viver os corpos.

Mais do que nunca, o corpo tem de ser compreendido, agora, como “um projeto” (cf. SCHILLING, 1997), um empreendimento que é passível de mudanças e de alterações. Marcam-se os corpos social, simbólica e materialmente. Marcas distintivas, expressivas, sutis ou violentas, que podem ser infligidas pelo próprio sujeito ou pelo grupo social.

Seja de quem for a iniciativa, é indispensável reconhecer que essa “marcação” tem efeitos. Uma multiplicidade de sinais, códigos e atitudes produz referências que “fazem sentido” no interior da cultura e que definem (pelo menos momentaneamente) quem é o sujeito. A marcação pode ser simbólica ou física, pode ser indicada por uma aliança de ouro, por um véu, pela colocação de um piercing, por uma tatuagem, pela implantação de uma prótese...

E essa marcação terá, além de seus efeitos simbólicos, expressão social e material. Ela irá permitir que o sujeito seja reconhecido como pertencendo a uma determinada identidade; que seja incluído ou excluído de determinados espaços; que seja acolhido ou recusado por um grupo; que possa (ou não) usufruir de direitos; que possa (ou não) realizar determinadas funções ou ocupar determinados postos; que tenha deveres ou privilégios;  que seja, em síntese, aprovado, tolerado ou rejeitado.

Como um “projeto”, o corpo é construído. A marcação que sobre ele se executa é cotidiana; supõe investimento, intervenção. Processos que se fazem ao longo da existência de cada sujeito, de forma continuada e permanente. Processos que estão articulados aos inúmeros discursos que circulam numa sociedade e que podem ser compreendidos como pedagogias voltadas à produção dos corpos. Essas pedagogias são,  usualmente, reiterativas das normas regulatórias de uma cultura: suas normas de gênero e sexuais, em especial. Elas não são, contudo, sempre convergentes ou homogêneas. Os sujeitos são alvo de pedagogias distintas, discordantes, por vezes contraditórias. Tudo isso torna cada vez mais problemática a pretensão de tomar os corpos como estáveis e definidos. Tudo isso torna cada vez mais impossível a pretensão de tomá-los como naturais.

 É indispensável admitir, ainda, que o sujeito não é um mero receptor de pedagogias exteriores a ele, mas sim que ele participa, ativamente, deste empreendimento. Os discursos produzidos e veiculados pelos institutos oficiais de saúde, pelas revistas e jornais, pelo cinema, pela Internet ou pela moda certamente têm efeitos sobre seus corpos e mentes, mas seus efeitos não são previsíveis, irresistíveis ou implacáveis. Os sujeitos não somente respondem, resistem e reagem, como também intervêm em seus próprios corpos para inscrever-lhes, decididamente, suas próprias marcas e códigos identitários e, por vezes, para escapar ou confundir normas estabelecidas.

Num tom um tanto nostálgico, David le Breton afirma:

Nas nossas sociedades, a parte da bricolagem simbólica se ampliou (...) A maleabilidade de si, a plasticidade do corpo tornam-se lugares comuns. A anatomia não é mais um destino, mas um acessório da presença, uma matéria prima a aperfeiçoar, a redefinir, a submeter ao design do momento. O corpo tornou-se, para muitos contemporâneos, uma representação provisória, um gadget, um lugar ideal para realização de “efeitos especiais” (LE BRETON, 1999:.23).

Seu texto sugere uma crítica ou um lamento pelas certezas que agora escapam. Seu texto também parece sugerir que o corpo foi — em algum momento ou num tempo remoto ideal — um lugar intocado pela cultura; um lugar no qual hoje, lastima ele, se realizam “efeitos especiais”, pirotecnia, artifícios inusitados, invenções. Contudo, podem os corpos ser considerados, em alguma circunstância, como um lugar não-marcado, não-referido?  Acompanhe-se ou não as idéias do autor, parece imprescindível reconhecer que os corpos sempre foram e são, agora, de uma forma talvez mais visível do que nunca, ditos e feitos na cultura. É imprescindível admitir que os artifícios e as invenções se constituem na possibilidade mesma de fazer o corpo falar e dizer de si.

O autor prioriza, na sua análise sobre a maleabilidade dos corpos, as intervenções que o próprio sujeito impõe a seu corpo. Atravessa toda sua análise um tom voluntarista que dá ao sujeito a responsabilidade e a autoria pela definição ou redefinição de sua aparência. Seria interessante lembrar, contudo, que os corpos são também marcados, fortemente, a partir da exterioridade do olhar e do dizer do outro. Os corpos são nomeados e discriminados conforme se ajustem, ou não, aos ditames e às normas de sua cultura. Portanto, os corpos são feitos, inventados, também, por tudo que — de fora — se diz ao sujeito, sobre o sujeito, para o sujeito.

O gênero e a sexualidade deslizam

Analisando os corpos de transexuais, Le Breton afirma que, para estes, a feminilidade e a masculinidade, longe de serem evidentes, “são objeto de uma produção permanente pelo uso apropriado de signos”  e, desta forma, tornam-se “um vasto campo de experimentação (LE BRETON, 1999: 28). Pergunto: essas afirmações deveriam ficar restritas a transexuais? Não seria possível pensar que toda forma de feminilidade e de masculinidade é objeto de uma produção? Ao assumir que os gêneros são produzidos cultural e historicamente, parece ser imprescindível admitir que os gêneros se “fazem”, sempre, com as marcas particulares de uma cultura, com os recursos e signos específicos de um tempo e de um lugar.

Colocando-se em outra perspectiva, estudiosas queer 2 reconhecem ou até mesmo celebram as transformações dos corpos e as transgressões dos gêneros como um importante evento da contemporaneidade. Acompanham Foucault em sua constatação de que se vive, há algum tempo, uma proliferação e uma dispersão de discursos, bem como uma dispersão de sexualidades. Diz o filósofo:

“assistimos a uma explosão visível das sexualidades heréticas, mas sobretudo – e é esse o ponto importante – a um dispositivo bem diferente da lei: mesmo que se apoie localmente em procedimentos de interdição, ele assegura, através de uma rede de mecanismos entrecruzados, a proliferação de prazeres específicos e a multiplicação de sexualidades disparatadas” (FOUCAULT, 1993 :48).

 Intelectuais queer concordam que hoje convive uma “multiplicidade de sexualidades disparatadas”. Assumindo que as posições de gênero e sexuais se multiplicaram, entendem que é impossível lidar com elas apoiadas em esquemas binários. Reconhecem que a ambigüidade tornou-se uma constante e que tal multiplicidade de posições é constituída por e constituinte de profundas mudanças teórico-metodológicas. Conforme Debbie Epstein e Richard Johnson (1988:37):

“A agenda teórica moveu-se da análise das desigualdades e das relações de poder entre categorias sociais relativamente dadas ou fixas (homens e mulheres, gays e heterossexuais) para o questionamento das próprias categorias – sua fixidez, separação ou limites – e para ver o jogo do poder ao redor delas como menos binário e menos unidirecional”

Adotando estratégias descentradoras e desconstrutivas, estudiosas e estudiosos queer vão questionar a heteronormatividade compulsória da sociedade, denunciar a lógica heterossexual/ homossexual como princípio onipresente regulador do conhecimento, do poder e da existência dos sujeitos. Contestando qualquer forma de normalização, algumas dessas estudiosas apelam para a figura da drag-queen para desenvolver suas análises. Escolhem, pois um sujeito que, explicitamente, assume fabricar seu corpo, para, a partir dele, pensar o quanto cada sujeito “comum” também “fabrica”, cotidianamente, seu corpo manejando os signos e códigos de sua cultura. Afirmam que, se a drag-queen propositalmente exagera os traços convencionais do feminino, se exorbita e acentua “marcas” corporais, comportamentos, atitudes e vestimentas, ela não o faz com o propósito de se “passar por uma mulher”, mas sim com o propósito de exercer uma paródia de gênero.

A drag repete e exagera, se aproxima, legitima e, ao mesmo tempo, subverte o sujeito que copia. Conforme acentuam teóricas e teóricos, tal paródia — característica da pós-modernidade — não significa a imitação ridicularizadora, mas sim uma “repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança” (Hutcheon,1991:.47). Isto pode significar apropriar-se dos códigos ou das marcas daquele que se parodia para ser capaz de expô-los, de torná-los mais evidentes e, assim, subvertê-los, criticá-los e desconstruí-los. Por tudo isso, a paródia permite repensar ou problematizar a idéia de originalidade ou  de autenticidade.

E é exatamente neste sentido que a figura da drag-queen é produtiva para se pensar sobre os gêneros e a sexualidade: ela põe em questão a essência ou a autenticidade dessas dimensões e leva a refletir sobre seu caráter construído. Sua figura estranha e insólita aponta para o fato de que as formas usuais e rotineiras com que os sujeitos se apresentam são, sempre, formas inventadas e sancionadas pelas circunstâncias culturais.

            A instabilidade dos corpos e as possibilidades de experimentá-los — circunstâncias que parecem incomodar a Le Breton e a tantos outros — têm de ser compreendidas como eventos da contemporaneidade. O atravessamento das fronteiras de gênero e sexuais hoje já não é mais objeto de espanto; de certo modo, tal atravessamento já se tornou praticamente um lugar-comum que não merece mais a manchete dos jornais de escândalos.

 Isso não significa afirmar, contudo, que o lugar social dos sujeitos que vivem tais práticas seja um lugar reconhecido ou cômodo. Ao desafiar as normas regulatórias dos gêneros e da sexualidade e ao ousar afirmar-se como sujeitos mutantes, tais sujeitos se assumem como “identidades prescritas e proscritas”, como lembra Maria Consuelo Cunha Campos (1999: 39). “A identidade civil, tal como concebida a partir do estado- nação”, diz a estudiosa, “opõe-se aos mutantes processos de identificação individual contemporâneos (inclusive os propiciados por novas tecnologias de gênero)”.

Alguns, no entanto, ousam assumir tal lugar. Eles e elas não apenas transitam de um gênero a outro, de uma sexualidade a outra, mas, por vezes, escolhem a posição de trânsito como o seu “lugar”. Para esses sujeitos, a grande questão não consiste em se opor à identidade ou à cultura centrais; não lhes interessa, também, serem acolhidos ou integrados ao “sistema”. Sua aspiração parece ser a de romper com a lógica hegemônica, melhor dizendo, interessa-lhes romper com a lógica que, a favor ou contra, continua se remetendo, sempre, ao sujeito central (masculino, branco, heterossexual, de classe média). Tais sujeitos se assumem como excêntricos (fora-do-centro) e pretendem viver como tais.

Os desafios para Educação

Como pensar tais sujeitos no campo da Educação? O que dizem sobre eles nossas teorias e nossas tradições? Que recursos ou estratégias teriam de ser acionados para integrá-los a nossos projetos?   

Para o campo educacional, a afirmação desses grupos é profundamente perturbadora. Não se dispõe de referências ou de tradições para lidar com os desafios aí implicados. Não parece mais adequado “encaminhá-los” para os serviços e instituições especializados. Provavelmente será ineficaz tentar “corrigi-los”, reorientá-los. Eles integram a contemporaneidade e, ainda que não se enquadrem nas referências ditadas pelas tradições educacionais e acadêmicas, estão aí, para provocar ou exigir que se inventem novas formas de convivência.

Considerados por muitos como irreverentes e desrespeitosos, eles desafiam e colocam em xeque normas, códigos, comportamentos, que, por sua permanência e estabilidade, pareciam ser, há muito tempo, incontroversos, inquestionáveis,  naturais. Suas críticas são produzidas a partir de um lugar praticamente inabitável, a partir de uma posição desconfortável e indesejada e, por isso mesmo, uma posição incomum. Daí porque suas críticas são inéditas, são desconcertantes. No entanto, por todas essas razões, é possível que essas críticas também possam ser produtivas.

Esses sujeitos estão nas ruas, nos shopping-centers, nas praças e também nas escolas. Não se pode deixar de lhes prestar atenção. Sua ambivalência desconforto e ameaça; mas também fascina. Talvez seja mais produtivo para estudiosas e intelectuais, deixar de lamentar a instabilidade de seus corpos (a instabilidade de todos os corpos) e abandonar qualquer pretensão de retorno a um tempo idílico em que as coisas e as pessoas pareciam estar todas em seus devidos lugares. (E esse tempo terá existido?)

 É inevitável fazer face a essa diversidade de sujeitos e de práticas É indispensável encará-la como constituinte do nosso tempo. Um tempo em que a diversidade não funciona mais com base na lógica da oposição e da exclusão binárias, mas, em vez disso, supõe uma lógica mais complexa. Um tempo em que a multiplicidade de sujeitos e de práticas sugere o abandono do discurso que posiciona, hierarquicamente, centro e margens, dominantes e dominados, em favor de outro discurso que assume a dispersão e a circulação do poder. Um tempo em que a diferença se multiplicou. Um tempo em que a verdade é plural.

Notas:

1 Este texto foi apresentado na mesa redonda “A pedagogização e a politização de corpos de mulheres, jovens e crianças”, na IV Anped Sul, realizada em Florianópolis, em 2002.

2.Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais. (...) Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora (LOURO, 2001, p. 546).

Referências bibliográficas

CAMPOS, Maria Consuelo cunha. Roberta Close e M. Butterfly: transgênero, testemunho e ficção. Revista Estudos Feministas. vol. 7 (1e 2), 1999.

Dicionário Eletrônico HOUAISS  da língua portuguesa. Editora Objetiva.

EPSTEIN, Debbie; JOHNSON, Richard. Schooling Sexualities. Buckinghan: Open University Press, 1998.

FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. Vol.1. A vontade de saber.11ª ed.. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LE BRETON, David. L’Adieu au  corps. Paris: Éditions Métailié, 1999.

LOURO, Guacira. “Teoria queer — uma política pós-identitária para a educação”. Revista Estudos Feministas. Vol. 9 (2), 2001: 541-553.

NICHOLSON, Linda. “Interpretando o gênero”. Revista Estudos Feministas. Vol. 8 (2), 2000

SCHILING, Chris. “The body and difference”. In Woodward, K. (org.). Identity and Difference. Londres: Sage e The Open University, 1997:71-100.

SILVA, Tomaz Tadeu. “Nós, ciborgues: o corpo elétrico e a dissolução do humano”. In ____. (org.) Antropologia do Ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

 nota biográfica

Guacira Lopes Louro é gaúcha de Porto Alegre, onde atua como pesquisadora e professora no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 1990, fundou o GEERGE (Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero), da UFRGS, grupo no qual continua participando. Defendeu seu doutorado na UNICAMP, em 1986, com a tese “Prendas e Anti-prendas: uma história da educação feminina no Rio Grande do Sul.”

 

Labrys
estudos feministas
número 4
agosto/dezembro 2003