Labrys
estudos feministas
número 4
agosto/dezembro 2003

Sutileza, Ironia e Zombaria: instrumentos no descrédito das lutas das mulheres  pela emancipação

Rachel Soihet

Resumo:
Apresentar uma modalidade de violência, que sob formas sutis, engenhosas se tem exercido sobre as mulheres constitui-se no meu objetivo. Trata-se da utilização do deboche, da zombaria como forma de constranger mulheres, que lutaram por direitos, buscando frear quaisquer alterações nas relações de gênero, aprisionando-as em papéis que lhes impossibilitassem o exercício de plena cidadania. À primeira vista, visava-se apenas divertir o público leitor, depreende-se, porém, dessa atitude forte conservadorismo, revelador do receio da perda do predomínio masculino nas relações de poder entre os gêneros, contrastante com a atitude supostamente progressista desses grupos em outras dimensões.

Palavras-chave: violência, deboche, ironia, revistas


"Não será da nossa parte que as legítimas aspirações do sexo gentil, da mais simpática e apreciável metade do gênero, encontrarão qualquer embaraço, por mais insignificante que seja, à sua justa expansão. Confiamos muito no bom senso e na inteligência servida pela educação para recear que as mães, as irmãs e as esposas abandonando a serenidade dos lares se atirem à política, aos meetings obrigando-nos a velar pela cozinha e pelos recém-nascidos. Não! a mulher manter-se-á na órbita que lhe convém e se alguma exceção houver, estamos certos que esse papel ficará reservado às sogras."

A Revista Ilustrada, dirigida por Angelo Agostini, na qual foi publicada esta crônica, constituía-se num importante periódico que utilizava o humor e a irreverência na abordagem de temas candentes da política e sociedade brasileira. Dentre tais temas, destacam-se as questões da escravidão e do governo imperial que, em suas páginas, mereceram críticas consideráveis, em que o deboche era uma arma significativa. Verifica-se aqui, porém, que a pretensão manifestada por algumas mulheres de terem seus direitos reconhecidos, em termos de participação na esfera pública mereceu o mesmo tratamento, num jornal que se caracterizava por ter posições políticas avançadas na época. Fato que revela que as contradições de gênero atravessavam as diversas colorações políticas e de classe.

Assim, o comportamento feminino reivindicador de uma participação mais plena na sociedade é visto como uma ameaça à ordem estabelecida, sob o signo dos interesses masculinos, na qual se teme a perda de seu predomínio nas relações de poder entre os gêneros. Inclusive, tais pressupostos adquiriam naquele momento legitimidade nos saberes hegemônicos da época. A filosofia afirmava nas mulheres a inferioridade da razão como um fato incontestável, cabendo-lhes, apenas, cultivá-la na medida necessária ao cumprimento de seus deveres naturais: obedecer ao marido, ser-lhe fiel, cuidar dos filhos.

A medicina, por sua vez, durante o século XIX, conferia a essas idéias respaldo científico, assegurando serem características femininas, por razões biológicas, a fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação maternal. Em oposição, o homem conjugava à sua força física uma natureza autoritária, empreendedora, racional, e uma sexualidade sem freios.

Tal quadro serve de apoio às medidas que buscam ridicularizar as militantes, fato manifesto no texto acima, quando o autor declara a sua confiança de que a mulher manter-se-á na órbita que lhe convém, o que na sua concepção significa manter-se na esfera doméstica exercendo funções que lhe são naturais. E aquelas que assim não pensassem são identificadas a uma figura merecedora de inúmeras zombarias: a sogra. A utilização de discursos cômicos para desmoralizar a movimentação feminina quanto à obtenção de direitos constituía um instrumento de potencial inegável, com vista à reconstrução cotidiana dos mitos da inferioridade e domesticidade feminina (Skinner, 2002: pág. 7).

Um outro aspecto do texto a ser ressaltado é o emprego da ironia, tropo literário que empresta ao discurso um caráter satírico, como se pode depreender do seguinte trecho: Confiamos muito no bom senso e na inteligência servida pela educação para recear que as mães, as irmãs e as esposas abandonando a serenidade dos lares se atirem à política, aos meetings obrigando-nos a velar pela cozinha e pelos recém-nascidos.

Nele, o autor procura demonstrar o que considera absurdo na pretensão de participação política, por parte de mulheres dotadas de bom senso e inteligência, buscando, caricaturalmente, assinalar o avesso da ordem das relações entre os gêneros. O epílogo seria trágico, ou seja, levaria a uma mudança nos papéis de gênero: homens teriam que velar pela cozinha e pelos recém-nascidos. Este argumento far-se-á recorrente em inúmeros momentos. E a crônica apresentada a seguir segue o mesmo diapasão.

Através do malicioso título de “Emancipada”, crônica publicada em 1909 na Revista Careta, pretende-se passar na mensagem o terror e o grotesco das mulheres no exercício de atividades profissionais consideradas próprias dos homens. Para muitos, tal situação configurava-se catastrófica e era objeto de grosseiras caricaturas. Assim, Madame Linhares, após um longo dia no escritório, encontra a casa em polvorosa os meninos ainda não haviam jantado. E não haviam jantado porque o Cazuza Linhares não havia acertado com o meio de fazer a sopa e o assado.

A cozinheira tinha saído às compras e, numa situação de inversão que a crônica buscava ridicularizar O Cazuza ficara em casa tomando conta dos filhos, todo atrapalhado presta contas das suas desventuras, informando à esposa que o almoço tinha sido a carne fria da véspera e ovos quentes. Já estava há três horas tentando sem êxito preparar o jantar, pois o fogo custou a acender como o diabo... O fato, sem dúvida, se destinava a provocar preocupações aos mais "sensíveis", acerca dos prejuízos da ausência materna do lar.

O diálogo que se segue acentua a subserviência do marido e o autoritarismo da mulher. Era a inversão do quadro habitual, que ameaçava as famílias de bem.

-Também você para nada presta

-Mas Milú se eu nunca aprendi a fazer isso...

-E o que foi que aprendeu, não me dirá? O senhor é um imprestável.

-Mas Milú...

-Cale-se homem, cale-se!

-Mas eu...

-Irra! Molenga! Banana! Pastelão!

-Eu só queria ver você na cozinha...

-Sim? Queria? Pois esse gosto não há de ter meu caro. Então eu, uma mulher superior, vou lá me ocupar com esses cuidados domésticos.

-E as crianças?

-Pois, aí não tem queijo? Não tem pão? Vá ferver água para o chá.

-Chá, pão e queijo? Mas isso é lá um jantar?

-E basta. Também você só cuida da barriga.

Madame Linhares desloca-se em seguida para os seus aposentos majestosa e lenta ...acompanhada pelos olhares dos filhinhos que o dedo à boca não ousaram aproximar-se, temerosos. Servido o chá, segue-se outra discussão entre os cônjuges, derramando a madame o chá fumegante pela cabeça do Linhares e aquela para finalizar decide: E passará a dormir na sala de visitas durante três meses. É para ensiná-lo a respeitar uma mulher emancipada.

Apesar do tom caricatural, tal comportamento feminino não distava daquele propagado, no momento em foco, por criminalistas e médicos, acerca do perigo representado pelas mulheres intelectualizadas como parece ser a personagem. Para Cesare Lombroso, médico italiano e nome conceituado da criminologia em fins do século XIX, embora a mulher normal apresentasse algumas características negativas que a aproximavam da criança, tais como, senso moral deficiente, tendência exagerada à vingança, ao ciúme, de maneira geral esses defeitos eram neutralizados, entre outros, pela maternidade, sua frieza sexual e sua menor inteligência. Em contraposição, as mulheres dotadas de forte inteligência se revelavam extremamente perigosas, constituindo as criminosas natas. Eram incapazes da abnegação, da paciência, do altruísmo que caracterizam a maternidade, função primordial das mulheres a que estaria subordinada toda a organização biológica e psicológica daquelas normais.

Higienistas, no Rio de Janeiro, concordavam com tais asserções. Discorrendo sobre os motivos que levariam a mulher a cometer o terrível crime do infanticídio, o Dr. Augusto Militão Pacheco aponta as “mulheres originais” como capazes de fazê-lo. Estas divergiriam das demais e se caracterizariam: pela sua extrema devassidão ...pelo gosto infrene de pintar, escrever, viajar, etc. Nesse caso, enquadra, em primeiro lugar, a mulher infiel e, em segundo, a mulher emancipada.

Nesse particular, para os higienistas a independência da mulher não poderia extravasar as fronteiras da casa e do consumo de bens e idéias que reforçassem a imagem da mulher mãe. A mulher intelectual, emancipada, em fins do século XIX e início do XX, constituía-se num mau exemplo para outras mulheres, levando-as a acreditar que poderiam subsistir sozinhas sem o concurso do marido, comprometendo toda a organização da sociedade. Voluntariamente, recusando-se a restringir seu universo à maternidade e à casa, desprezando suas funções naturais, as intelectuais eram a fonte de todos os flagelos sociais (Soihet, 337: 1989).

Nenhum meio foi desprezado na difusão do princípio de que os cuidados com os filhos exigiam que a esfera feminina fosse aquela da casa, nessa campanha desenvolvida, a fim de salvaguardar  os privilégios masculinos, inclusive, a música popular carnavalesca vai abordar a questão. A campanha era feita, mantendo-se o tom de zombaria carregado de fortes tintas de exagero, caso se concretizassem os anseios femininos. Deixava-se claro que, além dos males acarretados aos filhos, a competição, que se desenvolveria entre homens e mulheres, prejudicaria o relacionamento conjugal, levando à ruína da instituição do matrimônio.

Numa dessas músicas, de 1923, intitulada A Mulher de Hoje, fica assinalada a reação masculina, ante as iniciativas femininas de ganhar o espaço público através do voto e do trabalho. Ameaça-o a mulher toda garbosa que vai para rua passear, ficando preocupado com a possibilidade, sempre repisada, do homem ficar em casa para as crianças tratar. A inversão dos papéis e a independência que as mulheres aspiram adquirir o apavoram. Frente à perda possível de sua preeminência, já que pode a mulher todo trabalho do homem querer fazer, decide não se casar...

O homem já perdeu o jeito

Já não pode fazer nada

O homem hoje fica em casa

Para as crianças tratar

E a mulher toda garbosa

Vai para rua passear

Pode a mulher todo trabalho

Do homem querer fazer

Mas...eu só tenho uma vingança

Homem não pode ela ser

Por isso mesmo não me caso

P’ra mulher não me mandar

Este conselho dou a todos

Que se quer amarrar

Ai, ai, ai,

Tudo ela quer

Pois seja tudo

Mas seja sempre mulher

Claro está que o autor Euclydes Tavares parece referir-se aos segmentos médios, pois para as mulheres pobres, via de regra, chefes de família, o exercício do trabalho configurava-se como base da sobrevivência e, portanto, era parte indissociável de suas vidas. O que não significa, porém, que as idéias contrárias ao feminismo não circulassem também nas camadas populares, e o papel de provedor, destinado aos homens na organização familiar patriarcal, constituía-se em um ideal que não escapava a essas camadas, embora dificilmente se concretizasse.

A caricatura foi outro recurso utilizado nesse processo que buscava ridicularizar mulheres que lutavam por direitos. Sobre a eficácia do caráter corrosivo dessa forma de representação, são significativas as palavras de um dos seus cultores. Joaquim da Fonseca, ao mesmo tempo em que afirma a sua importância em termos de expressão artística, inteligência e criatividade, acentua a sua dimensão cruel e, até injusta, já que seus alvos, mesmo na condição de donos do poder, raramente, dispõem desta mesma arma para resposta. Por outro lado, esta modalidade de linguagem adquire enorme importância, diante da sua facilidade de absorção, multiplicando significativamente, o seu raio de alcance. 

Dos caricaturistas que satirizaram o feminismo, destaca-se em primeiro plano Raul Pederneiras, intelectual de larga atuação no cenário do Rio de Janeiro, em cuja obra Scenas da vida carioca (álbum) tal temática mereceu espaço significativo. Foi um crítico implacável das iniciativas de mulheres que visavam ampliar a sua esfera de atuação, ultrapassando o âmbito da esfera privada que lhes era destinada em caráter exclusivo. Dentre as cenas que privilegia, busca realçar a incompatibilidade entre o exercício de atividades extra-domésticas, o trabalho em especial, com as suas funções de mãe.

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–        Acuda! Estão apitando lá fora!

–        Não vê que estou presa?

Assim, na caricatura intitulada A mulher polícia, observa-se uma mulher gorda, pesadona, de rosto carrancudo, vestida com um uniforme policial, enquanto amamenta uma criança ao colo. O conjunto pretende denunciar o caráter grotesco da situação, já que a figura está longe de representar a idealização difundida da fragilidade e docilidade das mães. A policial é instada por um homem a tomar uma medida, o que é mostrado, não apenas através da postura deste na figura, como da frase: Acuda!...estão apitando lá fora! Ao que ela responde: Não vê que estou presa? Assim, o autor procura desmoralizar as pretensões das mulheres de acumularem as duas funções de mãe e de profissional, demonstrando a sua impossibilidade e o perigo que representaria para a sociedade nelas confiar. O caso ilustra uma situação limite, apresentando uma séria ocorrência que exigia presteza na ação. A policial permanece imóvel, ante o chamamento da natureza, ou seja, a fome de seu filho, podendo os supostos marginais agirem a seu bel-prazer.

Por outro lado, quando a mulher decidia-se por sair de casa o velho fantasma reaparecia, ou seja, o homem teria que ficar com as crianças, invertendo-se os papéis. E tal representação não poderia deixar de aparecer numa das charges de Pederneiras.

A patroa ainda não chegou

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 Nela um homem sentado em uma poltrona, dá a mamadeira a seu filho, impaciente, olhando fixamente, o relógio, frente a uma outra poltrona vazia, indicativo da saída da esposa. Abaixo, um dístico: ...porque a "patroa" ainda não voltou da modista. Mesmo não se tratando de uma ausência motivada por questões profissionais e, sim, por algo visto como um motivo frívolo, que na época se costumava considerar próprio das mulheres, o desacerto era total. Cena similar é objeto da atenção de outro prestigiado caricaturista, J. Carlos, uma exceção na representação que faz das mulheres. Em geral, suas imagens femininas pertencem aos segmentos superiores, são extremamente sofisticadas, belas, preocupadas com a aparência, sedutoras, conforme o esperado da mulher segundo o ideário dominante. Mas as preocupações com o avanço do feminismo são tamanhas que ele se rende às mesmas, fato explícito em duas de suas charges.

Na primeira, publicada na Revista Para Todos em 1926, o pai está sentado, totalmente rendido ao cansaço, curvado, com um pijama amarfanhado, chinelas saindo dos pés, segurando o bebê ao colo com a infalível mamadeira. clicar para aumentar

Em torno, observam-se brinquedos espalhados e mais três crianças, uma puxa a orelha do cachorro, outra parece querer serrar o rabo do mesmo, enquanto a terceira enfia um chapéu feminino enfeitado de fitas no pai. Uma confusão total...Ao mesmo tempo, chega a mãe, super bem vestida, canotier masculino, recurso utilizado para acentuar a masculinização de todas as que exerciam funções no espaço público, pintada, bengalinha em punho, indiferente à confusão...E o título da caricatura: Emancipação.

A segunda charge, intitulada Mater Dolorosa, publicada em 1935 na Fon-Fon, J. Carlos apresenta também a mesma temática, um homem derreado ao lado do bebê, cercado de grande quantidade de brinquedos espalhados.

  clicar para aumentar  Mater dolorosa

Voltando a Pederneiras, este aponta a solução para esses problemas. Em meio a um painel de quatro caricaturas, cada um representando um dia na rotina da mulher, um único é intitulado "Dia útil". Justamente aquele que representa uma mulher com traços delicados, o filho ao colo, à frente do fogão mexendo uma panela. Esta era a mulher ideal para a boa ordem da sociedade, segundo os desígnios masculinos. 

Dia da mulher

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dia útil

Havia, portanto, que se alertar sobre os perigos advindos da participação feminina em esferas consideradas do domínio dos homens, expondo-os a situações incompatíveis com a sua natureza. Mas não apenas a questão da profissionalização feminina mereceu severas críticas, também, as demais reivindicações desse gênero com vista ao exercício da plena cidadania, particularmente a luta pelo voto, eram objeto de chacotas, com o propósito de ridicularizá-las. Um exemplo é a crônica Mais uma reivindicação feminina (Fon Fon: 1908).

Já não são somente nas profissões, já não se limitam aos direitos civis e políticos; não param também nos vestuários as reivindicações das nossas ardentes feministas. Há agora uma tendência pronunciada para usar coisas até agora permitidas ao sexo feio. É assim que brevemente aparecerá uma obra da ilustrada sra.X.... reivindicando o direito de senhoras usarem barbas também

Utilizando-se de um exemplo absurdo e grotesco, no caso, a aspiração pelas mulheres ao uso da barba, o autor busca induzir os leitores a encarar, igualmente, como tolas ou supérfluas as demais reivindicações. Ao longo da narrativa, não faltam alusões à indignação por tal pretensão de "trazerem os rostos femininos os pelos macios que o homem ciosamente reserva para o seu exclusivo uso". Na utilização da barba, como exemplo de demanda das feministas, pode estar implícita a pretensão de mostrá-las como masculinizadas ou invejosas, postulantes não apenas de papéis vistos como privativos dos homens, mas igualmente de seus atributos físicos.

Afinal, Freud não enxergaria nas mulheres uma forte inveja do pênis? E, para terminar, o autor assinala mais uma das propaladas fraquezas femininas - a tagarelice -, não escondendo o esforço em apresentar as mulheres como seres inconseqüentes. Assim, afirma que o referido uso da barba servirá ...para demonstrar a falsidade da alegação de que toda mulher é tagarela, pois necessariamente terão de ficar caladas, ao menos, enquanto fizerem a barba.

Alguns tentam manifestar sua oposição às mudanças pretendidas pelas feministas, apelando para um tom cavalheiresco, próximo ao pieguismo. Aqui, o articulista não deixa de ressaltar a dimensão sacralizada da mulher - a maternidade -, através da qual inicia o homem na sua caminhada pela vida, e este obedece-a, e, sem nunca mais poder esquecê-la... Seu "poder mágico" exerce-se não pela arrogância, não pela imposição máscula e viril que são os predicados do homem, mas pelo tom sentimental com que move todas as suas ações, mesmo matando quando ri, mesmo traindo quando beija.

Em tom grandiloqüente, acentua a importância da sensibilidade, privativa da mulher, através da qual dominando o homem, guia as crianças e governa o mundo. Em seguida, ressalta o caráter específico das qualidades femininas que não passam pela atividade intelectual ou política (Careta: 1919).

Não concebo a mulher fora do seu ciclo, apostrofando os deuses ou discutindo a origem das espécies. Ela foi feita para domar o homem. Que será da humanidade o dia em que ela, rasgando o peignoir de rendas, envergar o grosso capotão masculino e sair para a rua, não mais com a leve sombrinha de seda, mas com o humilhante cacete do capanga eleitoral? Desaparecerá o encanto dos salões, a alma da paisagem, o amor do lar....

Repetem-se velhos estereótipos, acerca da importância de serem respeitados os diferentes atributos dos homens e mulheres, concepção presente na religião, atualizada e sofisticada pelos filósofos iluministas e utilizada pela ciência. O tom da crônica caracteriza-se pela sisudez, em que pese sua excessiva pieguice, até chegar ao seu final, quando lança mão de um artifício por demais vulgar, àquele de que só ...as muito feias hão de querer se emancipar... coitadas! As bonitas não...  porque a elas nunca faltará um adorador. E, sem mais delongas ...Que nos importa as feias! Salvem-se as belas, que a humanidade se aperfeiçoará.

Aliás, é recorrente a preocupação em acentuar o caráter imprescindível da beleza para as mulheres. A ausência desse atributo representa um pesado ônus, já que, infalivelmente serão rejeitadas pelos homens. E, caso ocorra a possibilidade de serem escolhidas, existe sempre o perigo de que o tenham sido pelo dinheiro. Crônicas se detêm na questão, propondo estratégias para superação desse obstáculo e garantir às feias a possibilidade de realização daquela que é considerada a única aspiração legítima para as mulheres - o casamento. 

O feminismo não deixará de ser utilizado como ameaça à concretização de tal anseio. Assim, um cronista destaca que na Europa e nos Estados Unidos as sufragistas vinham demonstrando energia e preparo suficientes para não comprometerem as suas idéias, tornando-se ridículas. Já as militantes brasileiras merecem dele comentários desrespeitosos, ao afirmar que sua atuação decorreria da ociosidade, recomendando maldosamente que  se não tiverem com o que se distrair em casa, vão para as fábricas, namorem ou façam-se telefonistas. Finaliza ameaçando com o supremo castigo, ou seja, se persistirem nessas  bobagens....ficarão todas solteironas, o que é o diabo!(Careta: 1918)

Um outro, após discorrer sobre uma prática existente na antigüidade, destinada a possibilitar o casamento de moças bonitas mas também das feias, através de leilões, assim termina seu arrazoado: Talvez fosse esse o único, excelente, maravilhoso meio de acabar duma vez com as sufragistas, as literatas, as neurastênicas, as cochichadeiras e as beatas, horríveis espécies femininas nascidas da classe imensa, descontente, vingativa e audaz das vieilles-filles (Fon-Fon:1918). Depreende-se, desta colocação, que as mulheres que se decidem à luta pelo reconhecimento de direitos, e buscam disseminar suas idéias, fazem-no apenas por frustração.

Ou seja, não sendo privilegiadas com a beleza, vendo-se relegadas à triste situação de vieille-fille, vista na época como extremamente humilhante para as mulheres, buscam vingança através do questionamento de sua condição. Em nenhum momento, preocupam-se os "donos destas verdades" em lembrar que o casamento e a maternidade, vistos como obrigatórios para as mulheres, são uma construção predominantemente masculina. Através da religião, da filosofia e das ciências, os formuladores desses saberes buscaram demonstrar a vocação "natural" e única das mulheres para tal forma de existência.  Os adeptos dessas idéias passam a apresentá-las como "caçadoras de homens" incautos, ridicularizando-as a todo o momento quer por essa atitude, quer por seu fracasso, mantendo-se "solteironas". clicar para aumentar Na caricatura, tais imagens, também, estão presentes.       Numa delas, intitulada "Miss Alma (Tipo Feminista)" vê-se uma mulher extremamente magra, feia, sapatos masculinos, chapeuzinho, portando um livro, conjugando a imagem estereotipada da solteirona e a de intelectual, que, como já  foi  exposto, não representava um signo feminino positivo. Na outra, temos uma mulher mais velha, gorda, ar arrogante, apresentando as mesmas características: feiúra, masculinidade e o indefectível livro, sendo alocada, muito a propósito, na seção Sapatos (Pederneiras: 1926). 

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A crítica não se limitava aos homens.  A revista feminina Única, publicação mensal, contendo matérias sobre literatura, arte, elegância e sociologia, dirigida por uma mulher incorre, igualmente, na questão; em que pese contar com diversificada colaboração de mulheres significativas na época, como a poetisa Cecília Meireles e até de militantes do movimento feminista. Contudo, em 1926, noticia a invasão dos prados de corridas e quarteirões elegantes londrinos por mulheres apaches de porte másculo e muito bem vestidas, pertencentes a um bando de nome bizarro, bando dos quarenta elefantes. Tais criaturas, dedicam-se ao roubo nos grandes estabelecimentos, à violação das fechaduras, à chantagem e até ao assalto à mão armada... resultado dos direitos equiparados da mulher.

À primeira vista, esta maneira burlesca de apresentar as mulheres empenhadas na luta por direitos não guardaria maiores conseqüências, visava apenas divertir o público leitor. Na verdade, porém, percebe-se um aspecto perverso nessas insinuações, o que me faz enquadrar tais colocações numa das modalidades de violência simbólica contra as mulheres. Isto porque, a reiteração da comicidade na abordagem de suas reivindicações tende a difundir uma imagem de falta de seriedade das preocupações femininas, ao contrário das masculinas.

Por outro lado, não poucas mulheres tendem a incorporar esse discurso, divulgado nos diversos meios de comunicação, identificando as feministas como "viragos", pesadas como elefantes, perigosas, inclinadas a incorrer em transgressões criminais. Imagens que se contrapõem ao ideal feminino, constantemente atualizado, de beleza, meiguice, delicadeza, paciência, resignação, o que, muitas vezes, levam-nas a rejeitar sua inserção no feminismo e até a combatê-lo (Chartier, 1995: 40).

Aqui, também, cabe lembrar Lombroso que menciona o fato de muitas mulheres honestas estarem incorrendo em delito, devido ao seu acesso à instrução elevada. Segundo ele, na medida em que estas encontram dificuldades de atuação profissional, face à manutenção dos preconceitos nesse campo, muitas acabam reduzidas à miséria. Outrossim, "tendo perdido ou quase a esperança de encontrar um último recurso no casamento (pela habitual repugnância do homem vulgar pela mulher instruída) não lhe resta senão o suicídio, o delito ou a prostituição" Assim, mais uma vez, a ciência mescla-se com o senso comum, corroborando o perigo de uma escolha daquela espécie.

Apesar desse bombardeio, mais e mais mulheres reagem no sentido de alterar a sua posição no tocante às esferas pública e privada. Assim sendo, não poucas assumem abertamente a campanha pela obtenção de seus direitos. Organizam-se em associações; fazem pronunciamentos públicos, utilizando-se fartamente da imprensa; buscam o apoio de lideranças nos diversos campos, constituindo grupos de pressão visando garantir apoio de parlamentares e de outras autoridades, da imprensa, da opinião pública, etc. Mas, apesar disso, em sua maioria, procuram revestir o seu discurso de um tom moderado. Não apenas porque tenham incorporado que esta seria a forma adequada de expressão feminina mas, igualmente, por estratégia política.

Destaca-se nesse sentido a atuação de Bertha Lutz, cujo movimento assumiu caráter hegemônico naquele momento. O exercício do trabalho, o acesso à educação, a plenitude de direitos políticos e civis constituíram-se nas suas principais reivindicações. Apesar da multiplicidade de atividades que conseguiu empreender, abrindo várias frentes de luta, a conquista do voto, de acordo com o espírito da época, mereceu prioridade. Acreditava que o acesso aos direitos políticos era essencial à obtenção de garantias com base na lei. Esta sua opção foi objeto de críticas, uma vez que que esta foi uma luta inglória, limitada às reivindicações formais do liberalismo burguês. De acordo com esta perspectiva, esta conquista se reduziria, a uma concessão quando assim interessou à classe dominante, em seu confronto com as massas urbanas que ameaçavam o equilíbrio do jogo político liberal (Moreira Alves, 1980: 181).

Uma posição desta natureza desdenha, porém, as lutas empreendidas por várias gerações de mulheres já preocupadas com a questão. Particularmente quanto a Bertha, não há como negar sua ação num momento decisivo, em meio aos preconceitos nos mais diversos âmbitos, a começar pelo Congresso, nas páginas da Imprensa, nos teatros de revista, etc. Afinal, penetrar na esfera pública era um velho anseio, por longo tempo vedado às mulheres. Significava uma conquista, possibilitando-lhes, segundo Hannah Arendt, assumir sua plena condição humana através da ação política, da qual haviam sido violentamente excluídas.

Referências

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária/EDUSP, 1981;

CHARTIER, Roger. "Diferenças entre os Sexos e Dominação Simbólica (nota crítica)" in Cadernos Pagu (4). Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1995.

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LOMBROSO, Cesare et Ferrero, Guglielmo. La femme criminelle et la prostituée. (traduction de l´italien), 1896;

MOREIRA ALVES, Branca. Ideologia e Feminismo. A luta da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis, Ed. Vozes, 1980, p.181.

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SKINNER, Quentin. Hobbes e a Teoria Clássica do Riso. São Leopoldo RS: UNISINOS, 2002;

SOIHET, Rachel. Condição Feminina e Formas de Violência. Mulheres Pobres e Ordem Urbana. 1890-1920. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1989.

VARIKAS, Eleni. “Gênero, Experiência e Subjetividade: a propósito do desacordo Tilly - Scott” In: Cadernos Pagu n. 3. Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, Campinas, 1994.

Rachel Soihet, historiadora, é professora da Universidade Federal Fluminense- UFF e desde 1974 faz História das Mulheres. Em seu doutorado, realizado na USP , estudou a "Condição Feminina e Formas de Violência. Mulheres Pobres e Ordem," Forense Universitária,1989. Fez seu pós-doutorado em Paris, e publicou na Revista CLIO, o artigo Histoire, Femmes et Sociétés . Dentre vários trabalhos destacam-se: Subversão pelo Riso, FGV, R.J.; "História, Mulheres, Gênero: Contribuições para um Debate". In AGUIAR Neuma (org.) Gênero e Ciências Humanas. RJ, Rosa dos Tempos, 1997; "Violência simbólica. Saberes masculinos e representações femininas", Estudos Feministas.Vol.5 N.1,1997; "A pedagogia da conquista do espaço público pelas mulheres e a militância feminista de Bertha Lutz". Revista Brasileira de Educação N.15. ANPEd. Campinas, 2000; "Sutileza,Ironia e Zombaria.Instrumento no descrédito das lutas das mulheres pela Emancipação", Revista Saúde,Sexo e Educação, n.25, 2001.

número aproximado de páginas em word, times new ronam,( 12 )- 16

* Professora do Departamento de História da UFF - Universidade Federal Fluminense. Ressalto a colaboração no trabalho com as caricaturas da bolsista Cecy Barbosa do Nascimento Monroy, que me foi concedida pelo CNPq e que elaborou sua monografia de final de curso de graduação, intitulada  Um olhar indiscreto a respeito dos conflitos de gênero no Rio de Janeiro. 1925-1935, através das caricaturas, 2000, sob a minha  orientação.

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