labrys, estudos feministas, études féministes
agôsto/ dezembro 2004- août / décembre 2004
número 6

Os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e a teoria queer

 como políticas de conhecimento[i]

Guacira Lopes Louro

 Constituídos a partir de uma militância e de uma teorização freqüentemente inseparáveis, os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e a teoria queer parecem, muitas vezes, aparentados entre si. Marcados por paixões e por polêmicas, neles, teoria e política se confundem e se nutrem mutuamente. Seria razoável considerá-los, pois, como uma espécie de continuum, no qual sutis diferenciações de temáticas ou de estratégias acabariam por produzir, cumulativamente, deslocamentos significativos? Ou seria mais adequado compreendê-los como campos que se cortam e se tensionam uns aos outros? Não sou capaz de dar uma resposta decidida a essas questões. Prefiro assumir que esses são campos teóricos e políticos marcados por afinidades e alianças e, ao mesmo tempo, atravessados por debates e divergências perturbadoras.

Como estudiosa e pesquisadora venho me aproximando desses campos numa ótica pós-estruturalista, o que tem feito com que minha atenção se volte mais para os discursos e práticas constituidores dos sujeitos e para as disputas por representação que são empreendidas pelos vários grupos culturais. Tal perspectiva leva-me a assumir o caráter construído e incompleto, a provisoriedade e a instabilidade de todas identidades sexuais e de gênero. Passo a duvidar que alguma instância ou algum grupo seja o portador da “Verdade”, e admito que podem coexistir (e se confrontar) muitas “verdades”.

Desconfio das grandes generalizações e, então, aprendo a lidar melhor com o local e o particular. Não me proponho a responder questões “fundamentais”, como as que indagam sobre as origens da opressão feminina ou sobre as causas da homossexualidade; mas me vejo atraída, sim, a conhecer e a questionar as formas como uma sociedade (esta em que vivemos, particularmente) trata as mulheres e os grupos homossexuais; quero descrever as relações de poder que aí circulam e as resistências que são exercidas; por onde passam essas relações, que sutilezas e disfarces assumem, como se expressam. Tento escapar do raciocínio que obriga a decidir se algo (ou alguém) é isto ou aquilo para pensar que algo (ou alguém) pode ser, ao mesmo tempo, isso e aquilo. Procuro desmanchar dicotomias, desconstruir binarismos, incluindo aqui as oposições, supostamente sólidas, entre masculino/ feminino, heterossexual /homossexual.

Entendo que os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e a teoria queer são campos teóricos e políticos que vêm promovendo novas políticas de conhecimento cultural. Não são apenas novos temas ou novas questões que têm sido levantadas. É muito mais do que isso. Há algumas décadas, os movimentos e grupos ligados a esses campos vêm provocando importantes transformações que dizem respeito a quem está autorizado a conhecer, ao que pode ser conhecido e às formas de se chegar ao conhecimento. Desafiando o monopólio masculino, heterossexual e branco da Ciência, das Artes, ou da Lei, as chamadas “minorias” se afirmam e se autorizam a falar sobre sexualidade, gênero, cultura. Novas questões são colocadas; noções consagradas de ética e de estética são perturbadas.

Áreas e temáticas consideradas, até então, pouco “dignas” de ocupar o espaço e o tempo dos sérios acadêmicos passam a ser objeto de centros universitários e núcleos de pesquisa. Sobre o mundo do privado e do doméstico; sobre as muitas formas de viver o feminino e o masculino, a família, as relações amorosas, a maternidade e a paternidade; sobre o erotismo e o prazer, sobre a pornografia e as “perversões”  fazem-se teses, escrevem-se livros, realizam-se seminários e cursos. Para tanto, mobilizam-se, freqüentemente, outras estratégias e métodos de estudo e análise, reinventam-se técnicas de investigação, valorizam-se “fontes” até então desprezadas. Minha aposta é que as transformações trazidas por esses campos ultrapassam o terreno dos gêneros e da sexualidade e podem nos levar a pensar, de um modo renovado, a cultura, as instituições, o poder, as formas de aprender e de estar no mundo.

Para manter “oxigenados” esses campos de conhecimento, contudo, é necessário aceitar o risco de incompreensões, é preciso estar disposto a ser continuamente subversivo. Essa disposição se mostra particularmente complicada de ser assumida por aqueles e aquelas que, como eu, lidam com o campo da Educação – um campo historicamente disciplinador, usualmente comprometido com a integração social e pouco afeito às transgressões. A grande dificuldade talvez seja, precisamente, reinventar a educação na pós-modernidade.

Para muitos analistas contemporâneos, as políticas de identidade e as que se auto denominam pós-identitárias (como a teoria queer) não seriam apenas constitutivas da pós-modernidade; na verdade, se poderia dizer que são elas que tornaram (e tornam) possível a pós-modernidade. Os protagonistas dessas políticas ousam se assumir diferentes, e aqui me interessam, particularmente, aqueles e aquelas que se assumem como diferentes no gênero e na sexualidade. Ao longo do tempo, os movimentos que constituem essa história se multiplicaram, assim como seus propósitos. Essa dinâmica foi provocando mudanças nas teorias e, ao mesmo tempo, foi sendo alimentada por elas.

Localizo alguns dos pontos de tensão nesse processo. Algumas estratégias da política de identidade, que podem ser centrais para a afirmação feminista, gay e lésbica, são problematizadas pelos teóricos e teóricas queer. Para esses últimos, uma política de identidade pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual ela pretende se insurgir na medida em que ela mantém como referência para construção de suas demandas ou de suas lutas a “norma”, isto é, o sujeito masculino heterossexual. Para teóricos e teóricas queer, seria necessário pensar, agora, numa política e numa teoria pós-identitária, que se voltasse não propriamente para as condições de vida de homens e mulheres homossexuais, mas que tivesse como alvo, fundamentalmente, a crítica da oposição heterossexual/ homossexual onipresente na sociedade; a oposição que, segundo suas análises, organiza as práticas sociais, as instituições, o conhecimento, as relações entre os sujeitos

Na perspectiva queer, não se terá, propriamente, como objetivo introduzir um contra-conhecimento ou um (outro) saber que se contraponha ao saber dominante. A ambição é de outra ordem: trata-se de pôr em questão o próprio conhecimento; trata-se de fazer pensar para além dos limites do pensável.  Em outras palavras, trata-se de pôr em questão o que é possível conhecer; como se vem a conhecer e, principalmente, como se vem a desconhecer alguma coisa; o que se suporta conhecer e o que se prefere ignorar.

Volto-me particularmente para o campo da Educação: é possível pensar que os currículos de nossas escolas e universidades são uma espécie de texto “generificado” e sexualizado (ou seja, são textos que acabam por constituir os gêneros e as sexualidades de estudantes e professores/as) (Louro, 2004). Ali usualmente se reafirma a premissa que diz que um determinado sexo indica um determinado gênero e este gênero, por sua vez, indica ou induz o desejo. Nessa lógica, supõe-se que o sexo é “natural” e se entende o natural como “dado”.

 O caráter imutável, a-histórico e binário do sexo vai impor limites à concepção de gênero e de sexualidade. Natureza é, de algum modo, equacionada com heterossexualidade, então, o desejo “natural” só pode se voltar para sexo/ gênero oposto. A heterossexualidade se constitui, assim, na forma compulsória de sexualidade. Dentro desta lógica, os sujeitos que, por qualquer razão ou circunstância, escapam da norma e promovem uma descontinuidade na seqüência sexo/gênero/sexualidade serão tomados como “minoria” e serão colocados à margem das preocupações de uma educação que se pretenda para a maioria. Paradoxalmente, esses sujeitos “marginalizados” continuam necessários, pois servem para circunscrever os contornos daqueles que são normais e que, de fato, se constituem nos sujeitos que importam.

O limite do “pensável”, no campo dos gêneros e da sexualidade, fica circunscrito aos contornos dessa tal sequência “normal”. Já que essa é uma lógica binária, acaba-se por ter de admitir a existência de um pólo desvalorizado – um grupo designado como minoritário que talvez possa ser tolerado como desviante ou diferente. É insuportável, contudo, pensar em múltiplas sexualidades. A idéia de multiplicidade escapa da lógica que rege toda essa questão. Conseqüentemente, é freqüente ouvirmos muitos assumirem (até mesmo com orgulho) que ignoram formas não-hegemônicas de sexualidade.

Chegamos, aqui, a uma questão importante: a ignorância. Para a Educação, a dicotomia conhecimento X ignorância sempre foi central e, nesse campo, usualmente, a ignorância é vista como uma falta ou como uma ausência de conhecimento. Mas, perguntam algumas estudiosas queer, não seria possível pensar a ignorância como o efeito de um jeito de conhecer? Não se poderia pensar conhecimento e ignorância como mutuamente implicados? Se assim for, a ignorância talvez deva ser compreendida como sendo produzida por um modo de conhecer. Deborah Britzman diz que “qualquer conhecimento já contém suas próprias ignorâncias”; a ignorância seria uma espécie de “resíduo” do conhecimento.

Quando formulamos determinados problemas fazemos com suporte numa determinada lógica que nos permite formulá-los; uma lógica  que, por outro lado, deixa de fora outros problemas, outras perguntas. A própria formulação do problema indica o que será objeto do conhecimento e o que deverá ficar “desconhecido”, o que será reconhecido, admitido e o que permanecerá irreconhecível, impossível de ser reconhecido como verdade.

Existem, por certo, conhecimentos em relação aos quais há uma “recusa” em se aproximar; conhecimentos aos quais se nega acesso, aos quais se resiste. Não discuto, aqui, tal recusa em termos individuais ou psicológicos, embora isso também possa ser importante, mas quero enfatizar essa recusa ou resistência ao conhecimento em termos culturais, ou seja, aquilo que uma dada cultura não se permite conhecer. Há coisas e há sujeitos que são impensáveis no interior de uma determinada cultura, conforme ensinou Foucault. Eles não se enquadram numa lógica ou num quadro admissíveis àquela cultura, naquele momento. Essas práticas e esses sujeitos transgridem a imaginação, são incompreensíveis e então são recusados, são ignorados.

Para educadoras e educadores, essa recusa se coloca, geralmente, como intransponível. A partir desse ponto-limite deixamos de formular questões, pois não sabemos como sustentá-las dentro da lógica consagrada. Não costumamos acolher curiosidades impertinentes, a menos que possamos torná-las “pertinentes”, quer dizer, a menos que possamos domesticá-las. Mas talvez pudéssemos subverter essas práticas questionando a própria resistência ao conhecimento e indagando quando, em que ponto, algo deixa de “fazer sentido”. Talvez pudéssemos perguntar, como fazem várias estudiosas queer : “o que se pode aprender com a ignorância?”  E, então, forçar esse ponto-limite, tentar ir para além dele, pensar através dele, por meio dele...

Já se disse, muitas vezes, que sem a sexualidade não haveria curiosidade e sem curiosidade o ser humano não seria capaz de aprender. Tudo isso me leva a apostar que teorias e políticas voltadas, inicialmente, para a multiplicidade da sexualidade, dos gêneros e dos corpos possam contribuir para transformar nossos modos de pensar e de aprender, de conhecer e de estar no mundo em processos mais prazerosos, mais efetivos e mais intensos.

Referências:

BRITZMANN, Deborah. O que é essa coisa chamada amor. Identidade homossexual, educação e currículo. Educação e Realidade. Vol.21(1), jan/jul.1996: 71-96.

LOURO, Guacira. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

Guacira Lopes Louro é pesquisadora e professora no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 1990, fundou o GEERGE (Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero), da UFRGS, grupo no qual continua participando.


 

[i] texto apresentado no II Congresso da Associação Brasileira de Estudos de Homocultura (ABEH) realizado de  16 a 19 de junho de 2004, em Brasília, DF, Brasil

 

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