labrys, estudos feministas, études féministes
agosto / dezembro 2004- août / décembre 2004
número 6

 

A masculinidade abjeta em Mulan

Ruth Sabat

           

A filósofa americana Judith Butler propõe considerar o gênero como performativo, pelo fato de ele não ser uma afirmação ou uma negação, mas sim uma construção que se dá através da repetição de atos que tenham alguma correspondência com as normas sociais e culturais. Portanto, um gênero é um modo de subjetivação dos sujeitos, pois da mesma forma, “o ‘eu’ nem precede nem se segue ao processo de atribuição de gênero, mas surge, apenas, no interior e como matriz das próprias relações de gênero”. (Butler, 1999, p. 153).

 Butler argumenta que o sexo, assim como o gênero, é materializado através de práticas discursivas, de normas regulatórias que nunca são finalizadas, pois permanecem num processo constante de reafirmação. Tal processo é indispensável para garantir a hegemonia das leis regulatórias sob pena de fragilizar e abrir espaços para a contestação dessas leis.

            De maneira breve, apresento neste texto um olhar sobre o filme Mulan desde as argumentações de Judith Butler. O filme é a história de Mulan, uma garota chinesa que se disfarça de homem e vai para a guerra lutar no lugar de seu pai, acompanhada de Mushu – um pequeno dragão, enviado por seus ancestrais – que será responsável por sua segurança. Mushu tem a aparência de um monstro, entretanto, atua como um elemento regulador que repete as normas de conduta específicas aos diferentes gêneros.

Ele é pura ambigüidade: ao mesmo tempo em que apresenta um perfil de malandro, espertalhão e transgressor, é ele quem lembra durante toda a história quais são os comportamentos e atitudes que Mulan deve assumir para que possa ser identificada com o masculino (já que durante a maior parte da narrativa a garota encontra-se na fronteira dos gêneros). Temporariamente, Mulan – que adota Ping como nome masculino – encontra-se na zona de abjeção, correndo risco de identificar-se com um gênero que “originariamente” não é o seu.

            Considero que os pontos mais importantes desta narrativa são as constantes reiterações das qualidades e comportamentos adequados às mulheres e aos homens; entretanto, essas reiterações apresentam o homem, a masculinidade, ou seja, a identidade de referência, como abjetos, como aquilo que causa repulsa. Mas, ainda assim, é essa identidade abjeta que Mulan precisa adotar como estratégia de sobrevivência naquele contexto de combate, que envolve a morte e a honra. Tais reiterações, paradoxalmente, funcionam também para evitar que Mulan atravesse a fronteira da identidade masculina.

            É sabido que existe uma série de normas regulatórias que operam no sentido de estabelecer formas de sentir e de agir que sejam adequadas aos homens e às mulheres. As normas regulatórias, que são enunciadas pelo dragão, são necessárias para a constituição de dois tipos de masculinidades: a masculinidade hegemônica, representada pelos oficiais, e a masculinidade abjeta, relacionada aos soldados. A repetição de um conjunto de declarações apresentadas durante a narrativa, permite ao público relacionar cada um dos comportamentos masculinos citados como próprios de um grupo específico de homens – no caso deste filme, o grupo de soldados de patente inferior.

Considerando que grande parte da masculinidade é vivenciada “como certas tensões musculares, posturas, habilidades físicas, formas de se movimentar” (Connell, 1995:. 189), é possível observar a composição da personagem dos soldados como uma mistura entre determinados comportamentos e tipos físicos específicos. Assim, torna-se inevitável que a forma pela qual os homens são representados no filme leve o público a atribuir significados a cada tipo de masculinidade representada, e estabelecer relações entre comportamentos, tipos físicos e, ainda, classe social.

            A partir do momento em que Mulan penetra no acampamento e que o jovem Shang assume o comando da tropa, grande parte das ações se desenvolve em torno dos soldados e, principalmente, em torno da garota. Portanto, é em relação a um grupo disforme, indisciplinado e indolente que Mulan consegue se destacar, o que torna possível afirmar que, além dos enunciados performativos, é possível identificar ainda um conjunto de atos e imagens performativos que operam no sentido de reiterar uma determinada masculinidade como algo abjeto.

É o que observamos na forma como os soldados são representados graficamente: muito baixo, muito gordo, muito alto ou muito magro – o único que possui o corpo de acordo com os padrões hegemônicos de beleza é Shang, o oficial comandante da tropa. Assim, esses “performativos gráficos” se direcionam todos para um ponto comum que tem como objetivo consolidar um tipo específico de masculinidade, qual seja, uma masculinidade abjeta.

            Embora no filme tais performativos estejam voltados para a identificação de um tipo específico de masculinidade, representado pelo grupo de soldados de patente inferior, eles reforçam uma cadeia de enunciados que rotulam todos os homens como insensíveis, sujos, toscos, indelicados; e, se consideramos que grande parte da narrativa se desenvolve em torno desse grupo, talvez seja este o caminho para tentar entender o processo identificatório, que faz com que tais qualidades sejam alargadas para todos os homens e não se limite apenas àqueles soldados negligentes, constituindo, naquele contexto, uma espécie de masculinidade dominante.

Mas, nem todas as setas apontam para esta direção: há o grupo de oficiais e, entre eles, Shang, por quem, desde o início, Mulan demonstra um certo interesse. Entendo que este espaço de subversão no qual a masculinidade é apresentada como abjeta e o feminino desloca-se para o lugar de hegemonia – por conter características socialmente aceitáveis e desejáveis – constitui-se, simultaneamente, como um efeito da produção de um domínio de abjeção. Dito de outro modo, o exterior constitutivo de Mulan é representado pela masculinidade abjeta dos soldados. Nesse sentido, entendo que os enunciados performativos presentes no filme funcionam, simultaneamente, de modo reiterativo e subversivo.

            Assim, a produção do domínio de abjeção, a que me referi, funciona tanto para constituir e reafirmar a identidade feminina de Mulan, quanto para constituir a identidade masculina hegemônica de Shang, pois, como afirma Butler (1999), esse domínio da abjeção é fundamental na constituição da identidade: o sujeito constitui-se a partir da identificação com um determinado sexo e o que fica fora desse quadro identificatório, o que é recusado pelo sujeito, passa para o domínio da abjeção; é a partir dessa recusa que o sujeito emerge e constitui-se como tal. Esse processo de identificação é afirmado na regulação de práticas identificatórias que, entre outras coisas, funcionam para materializar o sexo. Mulan temporariamente, e paradoxalmente, precisa estar naquela zona de abjeção masculina e sua passagem por ela serve, principalmente, para consolidar sua identificação com sua identidade feminina.

         A narrativa não apresenta nenhuma sexualidade “desviante” (mas sim identidades de gênero “desviantes”) e, ainda assim, o que observamos são medidas preventivas permanentes no sentido de apontar a heterossexualidade como a sexualidade única e normal, como possibilidade aceitável; por isso, sustento que no filme, essas “outras” masculinidades – a masculinidade dos soldados de classe inferior – são jogadas para o campo da abjeção, por meio de enunciados performativos como os citados anteriormente.

As “outras” masculinidades são apresentadas como meio de circunscrever o domínio do sujeito a partir de sua posição de exterioridade. Aqui tal sujeito é a masculinidade hegemônica, representadas pelo oficial Shang. Entendo que essas personagens que fogem à masculinidade hegemônica exercem temporariamente uma posição abjeta; e mais, considero que aqueles soldados de baixa patente não desfrutam do “status” de sujeito hegemônico, daquele que agrega características aprovadas socialmente; eles são, sim, sujeitos abjetos que ocupam temporariamente uma zona de abjeção.

            Assim, afirmo que é possível perceber a chamada zona de abjeção não como algo fixo, mas instável, de modo que o habitar uma zona de abjeção não deve ser compreendido como uma condição definitiva e permanente. A aparente novidade e “subversão” do filme Mulan consiste em inverter a polaridade masculino/ feminino, utilizando a estratégia de jogar a masculinidade para o campo da abjeção.

 Entendo que tal estratégia pode funcionar como um meio de inversão desta polaridade, colocando o feminino temporariamente na posição hegemônica, por meio de enunciados performativos que funcionam no sentido de atribuir qualidades e comportamentos desejáveis às mulheres e qualidades e comportamentos desprezíveis aos homens. Paradoxalmente, esta mesma estratégia funciona para reafirmar o lugar subordinado do feminino, já que no embate de Mulan com seu outro, o masculino, esse é apresentado como abjeto, desprezível, como o que não se deve (querer) ser.

Referencias:

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 153-172.

CONNELL, Robert W. Políticas da masculinidade. In: Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n.º 2, jul./dez., 1995, p. 185-206.

Filmografia:

MULAN. Direção: Barry Cook e Tony Bancroft. Produção: Pam Coats. Roteiro: Rita Hsiao, Christopher Sanders, Philip Lazebnik e Eugenia Bostwick-Singer. 1998. 1 filme (88 min), son., color., 35mm.

Ruth Sabat , Professora do Centro Universitário Feevale e da Faculdade de Ciências e Letras de Osório - RS

 

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