Labrys
estudos feministas/ études féministes
agosto/dezembro 2005 -août/ décembre 2005

 

A voz da louca, a voz da Outra

Cíntia Schwantes

Resumo:

As mulheres loucas tornaram-se personagens presentes na literatura ocidental desde o séc. XVIII, em diferentes perspectivas. A ficção de mulheres, e principalmente a partir do final do séc. XIX, vai tratar do tema da loucura de forma empática, inclusive dando voz a personagens loucas e mesmo usando-as como protagonistas. Essas personagens habitam duplamente as margens: tanto por serem mulheres, quanto por serem loucas. Dessa forma, elas ocupam, de forma cabal, o lugar do Outro. Espaço de reflexão sobre o Mesmo, as mulheres loucas da literatura talvez prefigurem o cansaço de algumas das estruturas sociais vigentes.

 

O psiquiatra italiano Franco Basaglia afirmava que as mulheres são acometidas por várias formas de sofrimento mental em maior número que os homens não por causa de qualquer fragilidade intrínseca, mas porque sobre elas pesa uma quantidade maior de pressões. Em uma sociedade patriarcal que depende do silenciamento do Outro para se manter funcional, os espaços de expressão pessoal reservados às mulheres são escassos e restritos. Assim, não chega a ser surpresa que tantos personagens dentro da ficção criada por mulheres enlouquecem de alguma maneira, em alguma medida.

Tampouco chega a surpreender que as mulheres loucas, na literatura como na vida, são extremamente perturbadoras. Elas o são não apenas pelo fato da loucura em si, mas porque lançam dúvidas sobre nossos conceitos de feminilidade. Loucas não se comportam dentro do padrão de decência, pudor, inocência e doçura que é socialmente esperado de pessoas do sexo feminino, e assim as personagens – elas são, freqüentemente, violentas, lascivas, descontroladas. Seu comportamento é, então, explicado nos termos de sua patologia – medida necessária para que nossas certezas sobre a natureza das mulheres permaneçam intactas.

Quando essa louca pertence a outra cultura ou etnia, sua alteridade é potencializada, como acontece com as protagonistas de Jean Rhys. Mas a loucura, aliada à feminilidade, já basta para trancar uma personagem do lado de fora das convenções, como bem nos demonstram Esther Greenwood e Susan Kaysen, protagonistas de The Bell Jar e Girl, interrupted, respectivamente.

Talvez a mais famosa das mulheres loucas da literatura escrita por mulheres seja a Berthe Rochester, personagem de Jane Eyre, mais tarde retomada por Jean Rhys. Aparte qualquer ressonância autobiográfica, as personagens femininas de Jean Rhys enlouquecem ou são acometidas de doenças psicossomáticas, ou mesmo físicas. Não raro elas são as protagonistas. Ignez Best, de Outside the Machine, Selina Davis, de Let them Call it Jazz, e a mais celebre das personagens de Rhys, a Antoinete Mason (depois Berthe Rochester) de Wide Sargasso Sea, sucumbem a diferentes estados de doença e angústia.

Ignez Best inicia o conto Outside the Machine hospitalizada. Na enfermaria feminina do Hospital Inglês de Paris, encontram-se hospitalizadas diversas pacientes, todas de origem inglesa, e uma delas, depressiva, tentara suicídio várias vezes, sendo finalmente internada pelo marido. As outras pacientes criticam-na abertamente: como ela pode se comportar dessa maneira, tendo dois filhos lindos e um ótimo marido? Apenas Ignez, que questiona a propriedade de trancar uma mulher depressiva em uma enfermaria, e Mrs Tavernier, uma velha senhora inglesa radicada na França, que, por sua idade, já havia, como ela diz, visto muito da vida, se abstém de qualquer crítica. Embora a sua seja uma doença de origem física (o conto não explicita qual seja, mas ela precisa submeter-se a uma cirurgia), não será por mero acaso que Ignez se identifica com a paciente depressiva a ponto de tomar-lhe as dores e defende-la agressivamente contra os ataques das “corretas” senhoras inglesas. Afinal, a paciente depressiva também está, como ela mesma,  “fora da máquina”

Selina Davis, por sua vez, sofre de anorexia, uma doença diretamente ligada à falta de controle que o doente sente ter sobre sua própria vida. A doença precede sua institucionalização (ela é presa por distúrbio à ordem pública, após discutir com a vizinha da casa onde está morando de favor, que a toma por prostituta, o que ela não é) e durante um certo período, tudo o que ela consegue ingerir são doses, e ainda assim moderadas, de bebidas alcoólicas. É apenas depois de ouvir a canção da outra presa, que ela cantarola incessantemente a partir daquele momento, que “as coisas começam a acontecer” – tanto interna quanto externamente. Selina passa a comer novamente, conversa com o médico, é solta, tudo no espaço de poucos dias. Após chocar-se com as instituições repressoras da sociedade ocidental e patriarcal, ela é salva por um antídoto inusitado: uma canção, vinda da cela de isolamento. A vizinha, uma guardiã da moral e dos bons costumes, apenas prefigura a prisão onde Selina é confinada – mas, ironicamente, é um fato acontecido na prisão que a liberta.

Antoinette, em Wide Sargasso Sea, o mais famoso dos romances de Rhys, não tem sorte igual: alcoólatra e louca, ela é levada pelo marido para uma mansão gelada na Inglaterra de onde lhe é impossível escapar, seja por que meio for. Não há canção de Holloway para ela. O destino final de Antoinette é uma espécie de institucionalização, uma vez que ela será trancada em um sótão, tendo por companhia apenas a enfermeira, Grace Pole, e sendo ocasionalmente visitada por um médico. Sua virtual prisão em Thornfield corresponde exatamente ao tipo de institucionalização praticada pelas famílias ricas durante o período vitoriano.

Bertha Mason, a louca do sótão, a quem Rhys dá voz em sua releitura de Jane Eyre, tem seu próprio nome – símbolo de sua identidade – modificado pelo marido. Ela é presa no sótão e entregue muito mais à vigilância do que aos cuidados de Grace Pole por não corresponder às expectativas de Rochester. Ela não é pudica como seria uma esposa inglesa vitoriana e o fato de que ela usufrui o sexo tanto, ou mais, que ele, perturba o marido (implicitamente, ela seria potencialmente uma esposa adúltera, embora quem cometa adultério seja ele, e não ela). Nesse caso, a etnia é fator de enlouquecimento tanto quanto a feminilidade.

As questões colocadas pela loucura feminina são abordadas por Elaine Showalter em The Female Malady (1987). Analisando The Bell Jar, ela o identifica como um dos romances da década de 60 que traçam paralelos entre esquizofrenia e identidade feminina e que atribuem a loucura feminina aos

limited and oppressive roles offered to women in modern society, and deal very specifically with institucionalization and shock treatment as metaphors for the social control of women. P. 213

The Bell Jar é talvez o romance com protagonista louca mais lido e analisado de todos os tempos. É claro que essa quantidade de estudos propicia uma grande quantidade de aportes e leituras distintas da obra. Um ponto, no entanto, é recorrente: o que enlouquece Esther Greenwood, a protagonista, é a condição feminina sob o patriarcado. A operação de silenciamento voltada para o Outro é particularmente nociva para uma jovem artista em processo de formação, tentando encontrar uma voz própria. Essa operação, no entanto, não é nociva apenas para uma protagonista de Künstleroman. Se concordarmos que o pensamento passa pela linguagem, o silenciamento não tem apenas a função política de interditar a representação, mas atinge a própria existência e a auto-imagem da personagem feminina, não importa qual seja o gênero literário em que ela está inserida.

Em The Yellow Wallpaper, a louca, como em The Bell Jar e em Girl, interrupted, fala a si mesma. Narradoras autodiegéticas, elas utilizam os artifícios da linguagem para contar sua experiência de enlouquecimento. Sujeitas a uma autoridade masculina, institucionalizadas, elas procuram, com as armas que tem, resistir. Presas no sótão, encarceradas, internadas em manicômios, as loucas são, em alguma medida, enquadradas: elas devem se adequar às regras do comportamento feminino, ou bem permanecerão institucionalizadas, tratamento que é, ao mesmo tempo, punição. É significativo que Susan Kaysen receba alta da instituição onde está internada ao aceitar um pedido de casamento. Exercer o papel de esposa – caber nas definições aceitas de feminilidade – é demonstração suficiente de sanidade mental. A não nomeada protagonista de The Yellow Wallpaper, por outro lado, termina o conto tão incapaz de exercer a maternidade quanto no começo – ou ainda mais, pois ela passa de um quadro de depressão para outro de loucura evidente. Seu enlouquecimento deriva, muito claramente, do próprio tratamento utilizado para cura-la, o confinamento. É de se perguntar, portanto, se o tratamento visa propriamente curar, ou é apenas uma forma de punição pelo comportamento desviante.

Não por acaso as mulheres escritoras do séc. XX dão espaço para as mulheres loucas. A loucura é uma das formas de explicitar a injustiça e a irracionalidade de uma sociedade que divide e hierarquiza seus membros de acordo com seu g~enero (e sua etnia, podemos acrescentar). Por exemplo, Doris Lessing fala extensamente a favor da mulher louca e uma de suas personagens mais cativantes é uma louca confinada em um porão. Em uma reescritura ao avesso de Jane Eyre, a governanta resgata a esposa louca e ambas vão morar juntas em um pequeno apartamento alugado. A loucura, aqui, é apresentada como uma forma superior de conhecimento. Essa é uma visão da loucura que foi bastante corrente na Idade Média. No entanto, os ecos de sua sobrevivência, quando chegam até nós, são mais aplicáveis a personagens masculinos que a femininos.

Afinal, o que é típico da loucura não desafia o conceito corrente de masculinidade, ao contrário, pode se configurar como uma exacerbação das qualidades masculinas.

Esther Greenwood bem o demonstra: intensamente autocentrada (ao contrário do que se espera de uma mulher – abnegação, empatia, capacidade de doação), Esther sabe que está a contrapelo das convenções. Não é por mero acaso que a maternidade – símbolo máximo da doação feminina – é uma preocupação tão central no romance, multiplicando-se em uma miríade de representações grotescas.

São diferentes os desvios de comportamento que levam as diferentes personagens femininas à institucionalização (embora, em sua maioria, eles tenham como pano de fundo o exercício da sexualidade). Esther Greenwood não aceita a subordinação inscrita no papel de gênero feminino, especialmente na maternidade, e o mesmo acontece com Susan Kaysen, Antoinette não é pudica, a protagonista de The Yellow Wallpaper recusa a maternidade, Ignez Best e Selina Davies são punidas por um mau comportamento que revela sua condição de proletárias e nascidas nas colônias (dançar, falar alto, falar palavrões). Isso pode nos levar á conclusão de que não basta cumprir  alguns dos requisitos do bom comportamento feminino para que uma personagem esteja a salvo: falhar em qualquer deles basta para torna-la passível de ser diagnosticada como louca e conseqüentemente institucionalizada. A segunda conclusão é que um dos focos de maior repressão da mulher continua sendo o exercício de sua sexualidade.

As mulheres loucas ou institucionalizadas de alguma forma nos romances góticos que o digam. Afinal, como afirma Engels, o aparato ideológico utilizado através da história para reprimir a mulher tem como objetivo principal garantir ao patriarca uma linhagem legítima.

Assim, podemos dizer que a literatura de autoria feminina tem debatido a questão da loucura feminina, suas causas e seus desdobramentos, de forma mais ou menos intensa (a quantidade de personagens loucas ou desviantes em suas obras é significativa) porque essa é a forma encontrada de discutir as diferentes restrições inscritas no exercício da feminilidade dentro de uma sociedade patriarcal. Como afirma Eugênia Delamotte, a grande quantidade de loucas, deficientes, desviantes, nas obras escritas por mulheres, aponta para uma fraturada identidade feminina e é a forma de expressão daqueles sentimentos menos aceites, especialmente nas mulheres: raiva, ressentimento, desejo.

Por fim, a mulher, enquanto Outro de uma cultura falologocêntrica, constitui-se como espaço privilegiado para a análise e discussão do Mesmo. Dessa forma, no final da Idade Média, quando o sistema de lealdades que operava como rede de sustentação do feudalismo começava a perder a funcionalidade, a literatura ficou povoada de esposas infiéis. Sem descartar a possibilidade de uma mudança efetiva na vida cotidiana da população, o fato literário aponta para uma modificação das próprias estruturas sociais. Não seria de se supor que, igualmente, a proliferação de mulheres loucas na literatura a partir do século XIX é também um sinal de cansaço das estruturas sociais vigentes?

Referências:

DeLAMOTTE, Eugenia C. Perils of the night. A feminist study of nineteenth century gothic. Oxford: Oxford University Press, 1990.

FLEENOR, Juliann (ed). The female gothic. Montreal: Eden Press, 1983.

GILBERT, Sandra and GUBAR, Susan.  No Man’s Land. The Place of the Woman writer in the Twentieth Century. New Haven: Yale University Press, 1994.

KAYSEN, Susan. Girl, interrupted.

MUSSEL, Kay. Women’s gothic and romantic fiction. A reference guide. London, Greenwood Press, 1981.

PERKINS, Charlote Gilman. The Yellow Wallpaper.

PLATH, Sylvia. The Bell Jar.

RHYS, Jean. Let Them Call It Jazz. London: Penguin, 1995.

________. Wide Sargasso Sea.

SHOWALTER, Elaine. A literature of their own. British women novelists from Brontë to Lessing. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1977.

_________. The Female Malady. Women, Madness, and English Culture, 1830-1980. New York: Penguin, 1985.

VARMA, Devendra. The gothic flame. New York, Russel and Russel, 1966.

Nota  BIográfica

Cíntia Carla Moreira Schwantes fez graduação em Letras no CEUB (1982), mestrado
em Literatura Brasileira na UnB (1989)e doutorado em Literatura Comparada na
UFRGS/Indiana University (1998). Sua área de pesquisa são os estudos de gênero,
trabalha com o romance de formação feminina nas literaturas de língua inglesa e
portuguesa. Publicações mais importantes: Trilogia do assombro: a literatura no
feminino, pela editora da UFPEL (1994), Brazilian Literature in the 1970s:
Censorship and the Culture Industry, em Literary Cultures of Latin America. A
Comparative History, organizado por Mário Valdés,pela Oxford University Press,
e artigos em revistas dsa área de Literatura.

 

Labrys
estudos feministas/ études féministes
agosto/dezembro 2005 -août/ décembre 2005