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janeiro/junho / 2015  - janeiro/junho 2015

Eu, Alice e o feminismo: o encontro e a amizade

Maria de Lourdes N. Schefler

 

 

Ali

bem ali

dentro da Alice

só Alice

com Alice

ali se parece

(Paulo Leminski)

Os versos em epígrafe evocam meu sentimento e pensamento sobre a singularidade dessa mulher especial, afirmativa, generosa e de características únicas como defino Ana Alice. Sempre franca e transparente, a companheira, “chegava e causava”, “não deixava por menos”, não economizava palavra e assumia os riscos e o preço para dizer quem era, como era e a que veio. Nossas experiências em comum são perpassadas por lutas e folias compartilhadas nesses quase vinte anos de prazerosa convivência.

Nessa escrita recupero minha participação no ciclo de homenagens, denominado “TRIBUTO A ANA ALICE[1]”, quando me dei conta de que, a despeito de dispor de um roteiro, a comoção do momento, carregado de dor e de luto, fez sumir da minha comunicação pontos que desejaria destacar sobre a homenageada.

No presente texto, pretendo repor essa falta, usando este espaço para refletir sobre aspectos que perpassam momentos correlatos e marcantes na minha vida: meu encontro e convivência com essa companheira, o NEIM e o feminismo. Ao recuperar esse percurso, ressalto experiências como estudante, profissional e militante feminista, partilhadas com esta valorosa mulher, cientista social, professora, militante, companheira e amiga de todos os momentos. Recorro ao seu exemplo de vida para testemunhar e exaltar uma prática feminista, posicionada para além dos muros da academia, abrangendo diversos e diversificados espaços de poder que vão das organizações da sociedade civil às instituições governamentais, na busca de possível interlocução e produção de atos de resistência individual e /ou coletiva, a um poder que existe e opera tanto no plano interpessoal e micropolítico, quanto no nível estrutural, macropolítico, como nos ensina Michael Foucault (1995). A luta consistia em estabelecer novos discursos, novas práticas sociais e novas práticas de si, articulando mudança individual à transformação social.

Com a Professora Ana Alice aprendi que as lutas e folias são parte de um mesmo movimento de transformação, de reconstrução e afirmação da subjetividade, que se faz no dia a dia, no viver cotidiano, em casa, no trabalho, na escola, no bar, na rua, no público e no privado, concebidos como espaços políticos. Se tudo é luta, se o pessoal é político, rompem-se as barreiras entre público-privado – base de todo pensamento liberal sobre as especificidades da política e do poder político – e recoloca-se a forma de entender a política e o poder e as formas em que este é exercido.  Movida por essa utopia e posicionada na vanguarda do feminismo, no Brasil e na Bahia,, a companheira engrossou as fileiras de um movimento que re-significou o poder político e a forma de entender a política em nosso país, ajudando a repensar e colocar em prática outra visão de mundo, onde o poder e a política são concebidos para além do conteúdo formal que lhes é atribuído, sobrepondo-se aos espaços institucionalizados, incluindo à própria vida cotidiana. (RAGO, 2011). 

As reflexões de Margareth Rago (2011) têm mostrado que as feministas intensificaram as práticas de cuidado de si, experimentando novos modos de existência através de um exercício crítico e libertário. Apoiada nas concepções foucaultianas sobre estéticas de existência, a autora nos leva a pensar nos modos de viver feministas, propiciados pelo que denomina “estéticas feministas da existência”, implicados em práticas de cuidado de si e fomentados por laços de amizade entre mulheres. Trata-se de relações diferenciadas que buscam contrariar formas capitalistas, androcêntricas, competitivas, autoritárias, e/ou opressivas de produção de subjetividades. Sob essa ótica, a amizade é aqui re-significada e vista como potência, vez que traz a perspectiva de reconstrução da subjetividade ou a construção de uma ética de si, na qual se questionam e se confrontam permanentemente as certezas que nos são impostas ao longo da vida. A amizade, neste texto, é assim concebida, como potência, situada desde o nosso ”encontro”, aqui entendido à luz da concepção deleuziana, ou seja, como um acontecimento capaz de produzir novos modos de existência, novas possibilidades de viver a vida, como o foi para mim e tem sido para tantas mulheres.

A oportunidade de desfrutar da presença dessa companheira em diferentes grupos, seja para a exclusiva militância e/ou ação profissional na academia, na implementação de políticas públicas ou ações políticas encabeçadas pelos movimentos sociais, seguiu em paralelo aos encontros de lazer e prazer, etílicos ou não, mas vividos como espaços de liberdade, momentos para conversar, rir, dançar, trocar experiências passadas e presentes, se comover e chorar, momentos múltiplos que suscitaram a solidariedade, o cuidado e o carinho entre amigas, munidas de presença, palavras e abraços.

O encontro

Meu “encontro” com Ana Alice, aconteceu, concretamente, na segunda metade da década de 1990, quando, motivada pela inserção pioneira da perspectiva de gênero em um programa de desenvolvimento rural implementado no estado da Bahia, entrei em contato com o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre as Mulheres – NEIM/UFBA, grupo de excelência capaz de dar conta dessa abordagem inovadora, até então desconhecida do aparato técnico estatal, no desenvolvimento das políticas públicas para o meio rural. Tal acontecimento e a convivência com a equipe do NEIM levaram-me a compreender que o mundo era masculino e os porquês da minha indignação, até então, latente. Descobri com a teoria feminista que a exclusão social e a discriminação de gênero não eram fatos naturais, constando como uma das formas de exercício de poder e dominação na sociedade.  

Inspirada nas reflexões de Susel O. Rosa (2013), penso esse “encontro” como um “acontecimento[2]” - que,  sob a concepção de DELEUSE e PARNET, (1998: 6) seria talvez a mesma coisa que um devir ou núpcias, quando muitas vezes encontramos pessoas, mesmo sem as conhecer, e encontramos também movimentos, idéias, acontecimentos, entidades. Os bons encontros se dão quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso e com toda ou com uma parte da sua potência, aumenta a nossa (DELEUSE, 2002: p. 29 apud ROSA (2013: p. 117). Para esse autor, todos os indivíduos estão na natureza como se estivessem sobre um plano de consistência (imanência) formando, a cada momento, uma figura inteira e variável, afetando-se uns aos outros, pois, a relação estabelecida por cada um, forma determinado grau de potência, aqui entendido como o poder de ser afetado.

            Tal entendimento é iluminado por Orlandi (apud ROSA, 2013: 113), quando afirma que os encontros cognitivos aumentam nossa potência de pensar, incitados pelos afetos, acrescentando que “os afetos é que nos obrigam a pensar e essa é a grande contribuição de Deleuse à Filosofia”. E mais, o mundo é uma indagação permanentemente instigada a cada encontro. De fato, meu encontro com Ana Alice, o NEIM e o feminismo, se constituiu um divisor de águas em meu caminho, suscitando acontecimentos – entendido sob a concepção foucaultiana como ruptura, movimento de forças que faz com que as coisas sejam percebidas de forma diferente, capazes de alterar o curso da minha própria história.

Esse encontro e a convivência por quase vinte anos deram lugar a outras inquietações. Meu sentimento era o de quem embarcara numa viagem em que, à medida que avançava, ia desaprendendo o caminho de volta. Esse descaminho foi propiciado pelas descobertas, aprendizados e possibilidades de subversão dos regimes de verdades que interditam nossos caminhos. Penso então com FOUCAULT (1984: p. 15) quando questiona: ”De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?”

No meu caso, a busca por novas formas de ler o mundo, “incluindo as mulheres”, conduziu-me a outras tantas descobertas, produzindo significativas mudanças na minha própria vida. Nesse percurso, dei-me conta de que estava irremediavelmente comprometida com essa dimensão do social e passei a vislumbrar a possibilidade de, através da academia, aprofundar e contribuir com a produção de conhecimentos e pesquisas que ajudassem às mulheres a transformarem a posição subordinada que ocupam na sociedade[3]. Já naquele momento, a minha visão de ciência pode ser identificada à concepção de Giffin (2006: p. 644), “[...] um empreendimento inteiramente social, de interpretações ativas realizadas por sujeitos situados social e historicamente e autorizados por uma coletividade”, perspectiva esta que implica em se assumir uma posição e requer que nos tornemos responsáveis por aquilo que aprendemos a perceber (HARAWAY, 1995). Desta feita, encontrei no feminismo uma forma de saber diferenciada, uma sociologia alternativa que, de acordo com Smith (1987: p. 92) “[...] deve ser reflexiva, isto é, deve preservar a presença, preocupações e experiência do sociólogo como conhecedor e descobridor”.

Amizade e afeto: tempero das lutas e folias

Penso que falar dessa relação requer uma pequena reflexão sobre a amizade, considerada, historicamente, um tema que pertence ao universo masculino. Sem dúvida, as mulheres ainda constam no imaginário social, como incapazes de estabelecer laços de amizade entre si ou com o sexo oposto. Entretanto, ao contrário do que postula os discursos filosóficos sobre tal incompatibilidade, os estudos feministas têm evidenciado a natureza, a qualidade e o significado das relações entre mulheres, que representam, historicamente, tanto no plano individual como coletivo, um verdadeiro exercício de transformação intersubjetiva e de construção ética e libertária (RAGO, 2004). Evidenciando o sentido da solidariedade feminina e feminista, os estudos têm buscado desvendar o universo social feminino, questionando pseudo-evidências filosóficas e científicas para inverter os discursos que versam sobre o lugar das mulheres nas relações de amizade, tecidas não só entre mulheres, mas entre estas e diferentes sujeitos de pertencimentos sociais diversos. As análises demonstram a capacidade feminina de se unir e se solidarizar para empreender ações de ajuda mútua, seja como estratégias de sobrevivência, seja como ação política transformadora. Nesse sentido, IONTA (2006) assinala que os discursos canônicos sobre a amizade são alimentados por regimes de verdade que traduzem relações do saber poder, os quais são reproduzidos e consumidos socialmente, favorecendo a geração de estereótipos vinculados às noções de masculinidade e feminilidade. E mais, as crenças dominantes sob a ótica de gênero, formam “uma espécie de repertório de saber sobre a amizade.” (IONTA, 2006).

As construções discursivas que alimentam as crenças sobre a amizade feminina, difundida ao longo dos séculos – e ainda presentes no imaginário social ocidental – remontam à tradição filosófica, estando presentes desde Platão a Montagne, de Aristóteles a Kant Ionta (2006). Todavia, Ionta (2006), chama a atenção que o resgate da filosofia nietzschiana pelos intelectuais franceses contemporâneos tem reposicionado o vínculo de amizade, que vem sendo pensado como “[...]  um mecanismo de formação e transformação, em que o conflito e a heterogeneidade desempenham um papel importante, não para reforçar a identidade, mas para transformá-la. Dessa forma, acrescenta, a amizade torna-se, na verdade, uma ascese, um exercício sobre o corpo e a alma; ou seja, uma atividade de autotransformação e aperfeiçoamento, tornando perfeitamente plausível as relações entre homens e mulheres e o estabelecimento de relações na diferença.

Penso que a amizade entre mulheres, concebida como um acontecimento, poderá ser estratégica frente às ofensivas misóginas e sexistas do cotidiano, além de propiciar rupturas ante a ordem sexista e androcêntrica estabelecida (SELEM, 2013). Tais laços  podem constituir-se em combustível a mover, impulsionar e mobilizar atos feministas de resistência às relações de poder hegemônicas, contribuindo com a produção de subjetividades libertárias e cada vez mais comprometidas com a  tarefa de produzir “[...] um modo feminista de ler e interpretar o mundo e de produzir discursos que interfiram nos contextos em que atuamos”. Frente ao seu compromisso histórico, o feminismo,  concebido  como  “[...] uma arena, um campo teórico, uma prática interpretativa e um lugar político”, conforme Schmidt (2004: p.18 ), pressupõe ativismo político e militância

Nesse caso, minha experiência junto a Ana Alice e demais componentes do NEIM como militante feminista, me permitem afirmar que, mais do que dedicar uma parte do tempo a uma causa, ou assumir um papel e uma identidade social, a militância feminista representa a possibilidade de questionamento e desconstrução de verdades que modelam a nossa subjetividade e de podermos nos inscrever em um sistema de trocas e obrigações recíprocas. E mais, a militância feminista se constrói em espaços onde as amizades são lugares de distinção de relações eletivas ou de afinidades, em confronto àquelas que não o são, constituindo-se, assim, em espaços de sociabilidade, onde grande parte das relações sociais integra o contexto da militância e dos círculos ativistas.

Finalizo acrescentando que a minha atuação feminista, nesses quase vinte anos de convívio, foi temperada e enriquecida por essas práticas de amizade, vividas na academia e fora dela, nos espaços políticos, no bar, na rua, no mundo. Esta experiência me autoriza a reiterar com as feministas, a necessidade de recuperação de práticas de amizade entre mulheres, que propiciem a construção de relações entre si e com o outro, mais livres, solidárias e múltiplas, bem como a reinvenção de novas formas de existência, novas subjetividades e enriquecimento do empobrecido mundo social e dos afetos, conforme nos lembra Ionta (2006).

Referências

DELEUSE, Giles e PARNET, Claire. DIÁLOGOS. Escuta, 1998. Disponível em:

http://www.filoczar.com.br/filosoficos/Deleuze/Gilles%20Deleuze%20e%20Claire%20Parnet%20-%20Di%C3%A1logos.pdf acesso em: 08/04/2015.

FOUCAULT, Michel. Ditos e EscritosRio de Janeiro: Forense Universitária. Vol. 5 Ética, sexualidade e política,1995.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal. 1984.

GIFFIN, Mary Karen. Produção do conhecimento em um mundo “problemático”: contribuições de um feminismo dialético e relacional In: Estudos Feministas, v. 14, n. 3,  Florianópolis: 2006, p.635-653.

HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”, Cadernos Pagu, (5), São Paulo: 1995, p. 07-41.

IONTA, Marilda aparecida. O texto de Marilda Ionta As mulheres e os discursos da amizade In: Labrys. Estudos feministas. Janeiro/junho 2006. Disponível em: http://www.labrys.net.br/labrys9/libre/marilda.htm. Acesso em  08/04/2015.

ROSA, Susel Oliveira da In: RAGO, Margareth e MURGEL, Ana Carolina Arruda de Teledo (Org.) Paisagens e Tramas. O gênero entre a Hitória e a arte. São Paulo: Intermeios,  2013, p. 111-123.

RAGO, Margareth. “Escritas de si, parresia e feminismos”. In: Veiga Neto, A. ; CASTELO Branco,  G. (Org.) Foucault, Filosofia e Política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 251-67

RAGO, Margareth.”Feminismo e subjetividade em tempos pós-modernos”. In: Lima Cláudia C e SCHMIDT Simone P. (Org) Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Editora mulheres, 2004, p. 31-41.

SELEM, MARIA CÉLIA ORLATO. Que tan lejos: uma viagem rumo a descolonização do feminino In: RAGO, Margareth e  MURGEL, Ana Carolina arruda de Teledo (Org.) Paisagens e Tramas. O gênero entre a HiStória e a arte. São Paulo: Intermeios,  2013, p. 125-144.

SCHMIDT, Simone  P.  Como e por que somos feministas. In: Estudos Feministas, 1 2 (Número Especial.) Florianópolis: 2004, 17-22.

SMITH, Dorothy.  “A perspectiva das mulheres como crítica radical à sociologia” Mimeo. Trad. Maurício, revisado por Cecília Maria B. Sardenberg. “Women’s Perspective as a Radical Critique of Sociology”, In HARDING, Sandra (ed), Feminism & Methodology. Bloomington, Indiana: Indiana: Open University Press, 1987. p. 84-96.

Maria de Lourdes Novaes Schefler é socióloga, Mestra em Geografia Humana e Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora Associada do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre as Mulheres – NEIM/UFBa  


 

[1] O evento foi proposto como atividade de integração pelo NEIM/PPGNEIM/BEGD/UFBa, Semestre 2015.1. Minha participação, refere-se à mesa 4, intitulada Ana Alice, mulher das lutas e das folias, sob a coordenação da Prof.ª Dra.ª Silvia Ferreira

[2] ROSA (2013) analisa a trajetória de Danda Prado, destacando a potência “dos bons encontros” na construção de uma estética feminina da existência.

[3]Entre 2000 e 2006, cursei o Mestrado e o Doutorado, no Instituto de Geociência e na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade federal da Bahia, elegendo como objeto de estudo Mulheres Agricultoras Rurais e Mulheres Trabalhadoras Sem Terra do MST, respectivamente.

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